93. Labaredas No Céu Sem Estrelas
Tanto sentiu que não soube nomear os próprios sentimentos. Pescou no peito uma pontada de dor e muito rancor, determinação e sede por vingança. Azura caminhou por entre os cinzentos que pareciam sentir o mesmo que ela. Não viu apenas desespero, apesar de esse estar exalando no ar como um delírio coletivo. Viu um povo que preparou-se arduamente para lutar desde antes mesmo de ela começar a andar.
- Azura - uma voz a alcançou. Ela voltou-se para ver Holga correndo para pôr-se em sua frente. A mulher negra arfou. - Lilo disse que o comando é seu. O que vai fazer?
Holga lhe passava tanta imponência quanto qualquer autoridade. Era forte e autoritária, mas parecia disposta a seguir o que ela dizia.
- Não devem ser mais de trinta, quarenta.
- E por que acha isso?
- Vimos um pequeno grupo em Vocra. Se forem só eles...
- Acha que entrariam com menos de uma centena em uma terra onde esperam encontrar resistência?
- Esperam? - Azura contestou. Holga calou-se. - Você conhece a região, Holga. Nos guie então. Se partirmos daqui com cinquenta cabeças, conseguimos bater de frente com eles e segurar as pontas até que nosso povo esteja pronto para dar o fora daqui.
- Nosso povo? - Holga ergueu as sobrancelhas.
- Se não se lembra, sou tão cinzenta quanto você.
Holga abriu a boca para discutir, mas logo a fechou. Achou-a insolente, mas não deixou de admirá-la pela coragem das palavras.
- Cinquenta cabeças, então - concordou. - Esteja no topo da colina em quinze minutos.
- Onde?
- Na casa onde acordaram, garota - Holga gritou, já distante. - Te trarei um exército.
Azura concordou. Com toda a movimentação que lhe cercava, acabou esquecendo de detalhes importantes daquela terra. Estavam cercados por criaturas de dentes navalhados que poderiam acabar com aquilo em segundos, se quisessem. Seus olhos procuraram no céu pela massa preta que chamava de amigo e encontraram Tohrak não tão distante dela, olhando-a como se a seguisse. Seus olhares se cruzaram. Não sabia como fazer com que eles a ouvissem, mas talvez, sendo muito otimista, conseguiria que Tohrak lutasse ao seu lado. Rumou para a colina e certificou-se de que o amigo alado a seguia.
Holga arrumou cinquenta cabeças voluntárias, como prometido. À contragosto. Cinquenta lhe parecia um número tão mísero que nem para bastar de força-tarefa para limpar o templo soava como suficiente. Azura, entretanto, estava decidida. Deslumbrou-se com os que pararam em frente aos seus olhos quando finalmente subiu com Kohan para a colina de onde vieram, uma das últimas casas limiares entre a Cinzas em ruínas e a Cinzas reerguida. Entre eles, poucos rostos conhecidos, entretanto, o que ela achou ser para o melhor. Por mais que o pensamento lhe soasse um tanto egoísta, estava cansada de perder faces conhecidas.
Ouviu o discreto bater de asas sobre sua cabeça e soube que Tohrak a seguia, camuflado à noite como sombra no escuro. Igualmente camuflados por roupas escuras e de tons tão semelhantes à vegetação mergulhada no breu, os cinzentos a olhavam até sumirem de seu alcance. Ela apagou a única tocha que trouxe consigo para se guiar, sentindo-se um tanto infantil perto daquelas pessoas que sabiam se situar na floresta como se de olhos fechados.
- Qual o plano, petrichoriana? - ela ouviu a voz de Holga surgir à sua frente assim que a chama se apagou.
Aproveitando do escuro, Azura riu da audácia de Holga em insistir que ela era de Petrichor e não dali. Com orgulho, era petrichoriana. Só precisava que aquele povo a visse como cinzenta para ganhar seu respeito.
- Sabem como ser sorrateiros - lembrou-a. Sequestraram a ela e seus amigos menos de um dia atrás e ela nem ao menos percebeu o que os acometera até acordar. - Vamos cercá-los e acabar com isso.
- Sanguinária - Holga murmurou. - Gostei - Azura sorriu. Holga continuou. - Me sigam, então - a mulher deu-lhe as costas e trilhou seu caminho, não sem antes acrescentar à petrichoriana: - Mantenha os seus por perto.
- Os meus? - Azura cochichou mais para ela que para a mulher. Olhou para trás e viu apenas Kohan seguindo-a. Entretanto, os olhos do homem estavam flamejantes de fúria ao encarar alguém além dela. Assim que voltou-se para a escuridão, viu a fraca luz do horizonte refletir em olhos conhecidos. Düran fez questão de juntar-se a eles.
- O que faz aqui? - a mulher indagou, incisiva.
- Não ia deixar que fosse sozinha - Düran respondeu com a voz firme de quem estava decidido e não mudaria de ideia.
- Ela não está sozinha - Kohan respondeu por ela. Seus pés estavam cravados na terra como se temesse o que poderia fazer se estes não o impedissem.
Azura procurou pelo olhar de Düran, de costas para o de Kohan. Queria que ele entendesse sem que tivesse que pronunciar. Vá embora, queria dizer. Vai arrumar encrenca.
- Eu quero lutar, Azura - a voz do petrichoriano tinha ao mesmo tempo um tom envergonhado e convencido. - Não pode me mandar embora.
- Fique longe dela e não terá problema nenhum em lutar - Kohan vociferou.
- Quem te deu o direito de colocar palavras na boca dela?
A petrichoriana ouviu Kohan movimentar-se atrás dela, mas não conseguiu voltar-se para ele antes deste rumar na direção de Düran com os olhos transbordando toda a sua fúria. Ela colocou-se em sua frente antes que fizesse algo estúpido, mas o homem não parou, cessando apenas quando ela cravou as unhas em seu peito, centímetros antes de bater de frente com Düran. O petrichoriano, por sua vez, não recuou.
- Quem te deu o direito de pressionar ela como fez? - sua voz soou quase como um sussurro.
Düran, em uma pontada de ódio e uma coragem gritante, riu com escárnio. Seus olhos voltaram-se para os de Azura, que o implorava silenciosamente para não complicar a cena.
- Foi por esse ogro que se apaixonou, Azura?
A mulher abriu a boca, procurando por palavras, mas Kohan desvencilhou-se dela tão rapidamente que não conseguiu nem ao menos segurá-lo quando este ergueu Düran pelo cangote e o empurrou até que desse de costas com uma árvore. Düran manteve-se firme.
- Eu só não acabei com a tua raça naquela praia e não vou fazer isso agora por causa dela - vociferou por entre os dentes cerrados. - É melhor tirar esse sorriso cínico do rosto porque eu não vou te dar uma terceira chance.
- Conhece ela há meses, eu a conheço a vida toda - Düran debateu. - Pare de se achar no direito de...
- De quê? - Azura interviu, furiosa. Mesmo que parecesse inútil, forçou as mãos de Kohan a se abrirem até que este soltasse Düran e os afastou. Seus olhos cinzentos estavam ainda mais efervescentes que os de ambos. - De me ter? Para o inferno, vocês dois!, se for assim que pensam. Pelos Deuses, estamos no meio de uma guerra e estão agindo como crianças! - ela viu os peitos de ambos subirem e descerem, ofegantes. - Não vou lidar com essa merda agora - sua voz soou como se não fosse a menor entre eles, como se toda a decisão viesse dela. E vinha. Ela voltou-se para Kohan. - Vá indo.
- Não vou te deixar sozinha com ele - os olhos do arandiano não desgrudaram de Düran um segundo sequer.
Azura alcançou seu rosto carinhosamente e puxou-o para ela, obrigando-o a olhá-la nos olhos.
- Vá, Kohan, deixe que eu termino isso.
Olhá-la lhe acalmou. Percebeu o quanto deixou que a situação saísse do controle.
- Não demore - murmurou. Beijou-lhe a têmpora antes de ir e, dessa vez, não ousou olhar Düran.
Quando viu que Kohan afastara-se, Azura voltou-se para o amigo de longa data.
- O que está fazendo, Düran?
- Seu amiguinho que perdeu as rédeas, Azura - interpretou a vítima. - Eu só vim lutar.
- Já temos o suficiente - a mulher cruzou os braços. - Fique por aqui, vamos partir logo.
- Alguém precisa cobrir suas costas.
- Eu sei cobrir minhas costas.
- Eu faço isso melhor que você.
Azura bufou.
- Você é muito cabeça-dura, Düran.
- Eu sou persistente - continuou -, e você sempre gostou disso em mim.
A mulher mordeu o lábio, pensativa.
- Só fuja de problemas pessoais - voltou-se para a mesma direção de onde veio Kohan, mas acrescentou: - Eu só quero voltar a tocar nesse assunto infantil debaixo de um sol de quarenta graus!
Holga não esperou que aquela discussão pueril se perpetuasse. Deu-lhes as costas com facilidade e obrigou sua mente a focar no que importava. Não soube como, mas logo a petrichoriana a alcançou, resistindo a mostrar o quanto estava ofegante.
Andaram as duas silenciosamente lado a lado, hora ou outra revezando a dianteira. Logo, Azura percebeu que desciam por um barranco, uma encosta escura e mais frígida por onde não ouviam nada mais que seus passos discretos. Os outros as seguiam de perto, margeando a folhagem como se fosse um caminho tão habitual e corriqueiro, avançando mais quietos que o vento. Azura estudou os poucos que se juntaram à ela. Muitos eram homens fortes, de carrancas fechadas, jovens e mais velhos, poucos com fios brancos na cabeleira. Surpreendeu-se positivamente com a quantidade de mulheres que as seguiam. Gostou do que viu. O exército do rei, diferente deles, era um heterogêneo mar de homens com mesmos rostos e mesmos pensamentos, tão esculpidos nos mesmos moldes que pareciam mais uma unidade acéfala.
- Resolveu seus problemas?
Azura surpreendeu-se com as palavras de Holga. Não conseguiu entender onde aquela conversa cabia naquele momento tão inoportuno e com o clima tão tenso de quem marchava para uma batalha que ainda não tinham ganhado.
- Não é problema para agora - a petrichoriana continuou em frente, sem olhá-la. Esperou que a prosa desnecessária terminasse ali.
- Parece que está no meio de um drama particular - insistiu.
Azura revirou os olhos. Parecia que Holga lhe testava os limites.
- Isso não vai me distrair agora.
- Pobre petrichoriana - Holga cutucou-lhe. - Deve ser tão difícil ter dois homens doidinhos por você...
A petrichoriana avançou bruscamente, dando um passo maior que a perna para parar em frente a Holga.
- Qual o seu problema comigo?
Holga ergueu uma das sobrancelhas, vendo-a tão próxima a ela. Sentiu vontade de rir, mas o sorriso que se esboçou beirava o orgulho por conseguir o que queria.
- Quero ver tua raça - a mulher soltou. - Lilo e Raco confiaram em você rápido demais.
- Isso é problema do xamã, não seu.
- É meu também - Holga cresceu para cima dela.
- Não somos inimigas, Holga. O inimigo está lá fora.
- Quero saber se tem o que precisa para liderar o meu povo.
Azura viu os outros passando por elas, olhando a discussão que perpetuava-se em baixo tom.
- Se a gente perder essa, você recua com o nosso povo e deixo tudo na sua mão.
Holga sorriu, cogitando a ideia.
- Fechado.
Em uma sincronia que não precisou ser verbalizada, entornaram pelas árvores como um rio que desvia de suas pedras. A adrenalina permeou simultaneamente todos os corpos dos cinzentos que silenciosamente marchavam para a guerra, rebuçados nas sombras fechadas da floresta de Cinzas. Aprendiam a usar a vantagem do inimigo a favor de si próprios. Foi só quando transpassaram a barreira que os escondia ali que sentiram as primeiras pontadas de receio. A forte muralha que um dia sustentou a fortaleza de Cinzas agora estava parcialmente inteira, aos frangalhos em trechos escondidos que apenas poucos sabidos conseguiriam encontrar com facilidade e destreza. Dentre os poucos, Holga. Se os soldados achassem as brechas da muralha, logo os atropelariam como insetos, invadindo sem serem convidados.
À mercê do silêncio e dos próprios instintos, apuraram os ouvidos e forçaram os olhos a focarem como próprios gaviões, aves predatórias, prontas para atacar.
Holga cessou as provocações aos novos. Assim que reconheceu a posição em que estava, sua postura imediatamente mudou de zombeteira para líder.
- Como achá-los? - tão baixo soou a voz de Azura em seu ouvido que mais lhe pareceu um esboço.
- Escute - respondeu-lhe a cinzenta.
Azura escutou. Por mais que tentasse, parecia ter tanto a mente quanto a visão conturbadas. Sentiu saudades de ouvir os pássaros, os animais da floresta, mas tudo o que lhe alcançava os tímpanos eram os fantasmagóricos sopros do vento contornando a mata para bagunçar-lhe os cabelos. Mesmo assim, estava tudo tão quieto.
A petrichoriana rodou em mãos a adaga. O território aos poucos planificou-se e o solo enrijeceu-se, como se Cinzas propiciasse o perfeito território para uma batalha. Sem aviso prévio, o peito da petrichoriana doeu, uma pontada involuntária no coração. Angústia. Algo estava errado.
- O que foi? - Holga chamou ao ver a preocupação estampada em seus olhos.
Algo está errado, tentou repetir em voz alta, hesitando um mísero segundo para pensar o que poderia ser. Aquele segundo custou-lhes uma vida. Tarde demais, ouviu a flecha atravessar as árvores e focar em algo ao seu lado. Alguém. Um dos cinzentos urrou de dor ao som do impacto da flecha atingindo seu peito, tombando em seguida sem vida ao lado de Azura, uma morte imediata e dolorosa, assustada. Os olhos da petrichoriana arregalaram-se, vendo que a vantagem que achavam ter era uma mera ilusão. Os encontraram antes.
- Protejam-se! - a ordem de Holga soou tão claramente que souberam imediatamente em que pé estavam.
Azura mergulhou atrás de uma árvore, escapando por pouco da chuva de flechas que pendeu em direção à eles. Estava escuro, mas ela ouviu claramente. Ouviu os gritos dos cinzentos, das flechas vãs acertando as árvores e, por trágicas vezes, acertando seus alvos.
Os subestimei, eram as duas palavras que entravam em cena e fugiam como a própria indecisão. Podiam eles serem poucos, sim, não achava que o inimigo tinha mais de trinta cabeças espalhadas pelas sombras, mas esqueceu-se de que aquelas infelizes almas eram agora regidas por Pouri. Lembrou-se de como estavam os soldados em Vocra, andando no frio congelante como se a neve mórbida fosse areia morna sobre seus pés. Não sabia o que mais podiam fazer.
Como se o próprio Deus das Trevas ouvisse seus pensamentos, uma luz vermelha alaranjada e intensa cortou o céu como labaredas. Estagnaram todos , estupefatos, assistindo ao bater do martelo do destino. Estavam completamente iluminados e com a perfeita visão para perpetuar aquela guerra. Aos gritos dos seus, Azura agiu. Faria da vantagem do inimigo, a sua.
A petrichoriana correu. Ouviu gritarem seu nome, mas não olhou para trás.
A visão que teve de onde estavam era a do beiral de um abismo, uma vasta área que corria até desaparecer na escuridão onde nem a luz macabra de Pouri alcançava, uma visão perfeita da morte e do horizonte morto. Ainda escondendo-se da verdade e das flechadas incessantes atrás de uma árvore mais estreita e irregular do que seria seguro, estudou a vasta imensidão do abismo por dentre a folhagem e os corpos de amigos e inimigos. Encontrou lá, camuflados ao céu negro, dois olhos amarelos que refletiam o feixe vermelho de luz do sol. Tohrak esperava por ela.
Uma ideia lhe surgiu à mente. Aquele seria seu campo de batalha.
A mulher guardou sua adaga e tirou das costas sua arma de longo alcance, o arco que agora lhe soava cada vez mais familiar ao tato. Era hora de contra-atacar.
- Reajam! - gritou para os céus, para os seus, a voz nervosa falhando, mas alta o suficiente para passar o recado. Azura reagiu e disparou uma flechada tão certeira que nem ao menos soube se por sorte ou instinto. Derrubou um.
Imediatamente resguardou-se. Aquilo tinha que ser rápido, de um jeito ou de outro. Armou outra flecha e correu. Para a frente. Para o inimigo.
- Azura! - ouviu seu nome, distante e gritado por uma voz conhecida. Não demorou para que o homem a alcançasse.
Kohan a achava insana ou corajosa demais, sabendo que aquele limiar era tão tênue. Se pudesse sentar com ela na terra naquele momento e pedir que se cuidasse melhor, por ele, o faria. Deixaria a conversa para outro momento que sabia que teriam.
- Eu tenho um plano, Kohan - cochichou. - Preciso de você.
Kohan olhou ao redor, certificando-se de um breve momento de segurança.
- Qual?
- Somos mais - ofegante e com os olhos cinzentos vidrados na balbúrdia à sua volta, murmurou -, eles vão querer recuar e voltar com mais deles. Não vamos deixar.
- O que quer dizer, Azura? - impaciente com a falta de informações em um momento tão crítico, Kohan vociferou.
- Não vamos deixar eles recuarem - concluiu a mulher. - Vamos cercá-los.
Azura indicou com a cabeça para o abismo à esquerda deles, o qual Kohan estudou até entender o que se passava na engenhosa mente da petrichoriana. Se os cercassem por um dos lados, os soldados estariam retidos entre os cinzentos e um abismo sem fundo. A sádica cena de empurrá-los um a um do beiral lhe soou agradável.
Kohan concordou com a cabeça. Deixou-a lá, pronto para mover um povo como ela lhe pediu.
Foi um massacre. Apesar das labaredas flamejantes que cortavam o céu serem de Pouri, quem ganhava aquela batalha eram os cinzentos. Apavoraram-se com o dragão que pouco fez, mas conseguiu alimentar-se de mais de uma cabeça desprevenida de soldado.
Tentaram fugir, os covardes, mas, como Azura idealizou, estavam encurralados e sem saída alguma.
Pouco a pouco, estavam todos no chão. Azura despejou a última flechada, a que findou a vida do último persistente. Ao seu redor, tudo o que via eram os cinzentos de pé, ofegantes. A luz vermelha do céu dissipou-se tão rápido quanto chegou, levando a macabra iluminação do Deus das Trevas embora.
O peito da mulher subia e descia. Sentiu-se invencível por um momento, aquele segundo após a batalha que finalmente venceram. Não a guerra, a batalha. Sabia que ainda muito viria pela frente.
Entretanto, o destino já lhe ensinara o quão frágil era a vida e suas intempéries. Virou de costas, pronta para rir na cara de Holga e comemorar a vitória com a mulher, ir atrás de Kohan e agradecê-lo, quando ouviu seu nome ser gritado.
O céu negro pareceu escurecer ainda mais.
Ouviu os gritos de alerta, mas não virou-se a tempo. Aquela flecha tinha ela como seu alvo. O último dos soldados ali, vivo, não rendeu-se sem antes tentar findar a vida da líder.
Não tinha para onde desviar. Azura vislumbrou seu possível fim. Tentou alcançar a própria arma, mas falhou. Abriu a guarda.
Aquele infinito segundo durou ainda mais quando uma figura conhecida colocou-se entre ela e o soldado. Azura não mais via seu inimigo e nem a flecha que prometia acabar-lhe com a vida. Seus olhos congelaram em um par conhecido que não hesitou em colocar-se entre ela e a morte. Antes que Azura pudesse processar o que acontecia, a flecha destinada a ela atravessou Düran.
Uma dor excruciante lhe varou o peito, tão rígida e maciça que a mulher teve certeza que aquela flecha acertara a ela também. Mas, não. Sua boca entreabriu-se e ela viu Düran, parado em frente a ela. A flecha transpassava-lhe as costas e saía pelas costelas. A petrichoriana tremeu. Seus pesadelos se concretizavam bem em frente aos seus olhos.
O petrichoriano olhou para baixo, para o ferimento fatal e, como se uma queda de adrenalina brusca o acometesse, o homem tombou para frente nos braços de Azura.
- Não! - Azura gritou, tomando o amigo nos braços. - Düran!
Não reconheceu a própria voz. Sabia que a vida do soldado havia sido findada, mas nada daquilo lhe importava. Se outra flecha viesse por ela, ela a aceitaria. Com certeza, pensou, doeria menos do que a dor que sentia. Ela era o centro das atenções. Nenhum dos outros chorava por seus mortos, mas lá estava ela, soluçando sobre o corpo ferido de um irmão.
Azura ajoelhou-se e o corpo tenro e fraco de Düran acomodou-se em seu colo. A mulher apoiou seu pescoço em um de seus braços e a outra mão o puxava para ela.
As lágrimas que escorriam por seu rosto caíam sobre o tronco do homem, que as aceitou como uma despedida quente.
- Está... tudo bem - a voz de Düran soou irreconhecível. Não sentia dor, mas puxar o ar era impossível. Sentiu o gosto do sangue na ponta da língua e soube, com certeza, de qual seria o fim.
Azura balançou-o no colo trêmulo em um gesto que beirava a insanidade, sentindo-se de mãos atadas.
- Nós temos que levá-lo! - gritou para seu redor, pouco envergonhando-se da voz esganiçada e embargada. - Alguém precisa ajudar ele, por favor!
Todos viam o que ela não via. Até mesmo Düran.
Azura sentiu dedos gelados e trêmulos tocarem seu rosto. Sentiu o sangue nas mãos de Düran banhar sua face e obrigou-se a olhá-lo. Este segurava seu rosto como se novamente quisesse lhe roubar um beijo. Em seus lábios, um sorriso tenro que ela não compreendeu.
- Está tudo bem - repetiu, puxando o ar. - É o melhor jeito de ir embora.
Uma lágrima solitária escorreu do canto do olho de Düran. Seu corpo relaxava nos braços da mulher que ele amou.
- Não pode fazer isso comigo, Düran... - a petrichoriana colou sua testa na dele. Os soluços a chacoalhavam em uma dor que ela sentiu poucas vezes na vida.
Os olhos do homem estavam arregalados, como se assustado. Tinha mais a dizer a ela antes de partir.
- Eu vou encontrar os Deuses, Azura - sua voz fraquejou. - Vou pedir perdão pelo que fiz - sua mão escorregou do rosto da mulher e repousou, sem forças, no próprio colo. O gosto do sangue em sua boca intensificou-se e ele percebeu que não sentia mais as extremidades do corpo.
- Nós vamos voltar para Petrichor, lembra? - Azura tirou os cachos do rosto do homem, acariciando-os com certo desespero. Não convencia a si mesma do que dizia. - Vamos começar do zero, Düran...
- Eu vou encontrar os petrichorianos e pedir perdão - Düran prosseguiu. - Vou encontrar Seu Nero e pedir perdão. Marin e Vera, o pequeno Arin - dessa vez, o soluço que fugiu de sua garganta mesclou-se à dor. Um som gutural escapou-lhe pela boca. - Vou encontrar Ava-Lee. Vou me abaixar do lado dela e dizer que eu morri para salvar a heroína dela.
Azura balançou a cabeça. Aquilo não lhe acalmava, aquilo doía tanto quanto uma própria flechada em seu peito doeria. Ainda mais, pensou. Era para ser eu.
- Você me amou, Azura? - aquela pergunta outra vez. Essa, entretanto, era diferente. Não lhe incomodou como das outras vezes. E Düran não se preocupou com a resposta. Seus lábios agora estavam vermelhos pelo sangue que subia de suas entranhas. A mulher balançou a cabeça, concordando. Ela o amou tanto que deixar de amá-lo foi uma das dores mais difíceis que já enfrentou. Até aquele momento. Düran sorriu, mas chorou. - Me dê um último beijo?
Um soluço estilhaçou-se no ar, escapando do âmago de Azura. Ela debruçou-se sobre ele e sentiu, antes mesmo de tocá-lo, que aqueles lábios estavam frios como pedras de gelo, contrastando com o sangue ainda quente que ele perdia e ela não conseguia conter. Seus lábios uniram-se aos dele e ela o beijou com calma e desespero, um adeus que mereciam. Foi como Düran partiu.
O corpo do homem relaxou por completo em seus braços e Azura chorou como um bebê, o único som que cortava a floresta de Cinzas de lado a lado.
- Azura - a voz da mulher chamou, agora próxima. Ela ouviu Holga, mas fingiu não ter ouvido. - Anda, levante.
Ela se levantou, deixando o corpo de Düran repousar na terra com cuidado. Não se virou para Holga, entretanto. Nunca sentiu seus instintos gritarem tão forte quando rumou, sem olhar para trás, em direção ao abismo.
- Azura! - reconheceu a voz de Kohan, mas nem o próprio conseguiu contê-la.
No beiral do abismo, Tohrak esperava por ela. O dragão negro rugiu quando ela se aproximou. A mulher contornou-o e montou em suas costas. Não olhou para trás quando Tohrak abriu as asas e não se assustou quando ele mergulhou no abismo com ela nas costas.
Voar sobre o tronco de um ser que deveria estar extinto tinha de ser a melhor sensação que já lhe acometera. Entretanto, era apenas uma fuga. Esperou que ele a levasse para longe e que o tempo curasse um coração aos frangalhos.
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