92. Da Nequícia e Diabrura, Os Braços Abertos de Pouri
Ele fechou os olhos, fazendo algo que aprendera recentemente. Sorriu ao lembrar de um passado próximo, mas que lhe parecia tão distante. Estava na cama com Azura, naquele colchão que chamavam de cama, naquele armário que chamavam de quarto, isolados na Pedreira e Kohan estava frustrado, furioso após um dia intenso levantando barreiras, discutindo com pedreiros insolentes que não lhe respeitavam a autoridade. Azura, entretanto, estava em paz.
- Como faz isso? - perguntou à ela, deitado e de carranca fechada, admirando-a como se uma estátua em um museu, pacífica como as esculturas de mármore das catedrais.
- Isso o quê?
- Está sempre calma - comentou. Tirou com a ponta dos dedos uma mecha do rosto da mulher.
A petrichoriana ajeitou-se na cama e deitou-se ao seu lado, olhando-o nos olhos. Eram tempos em que o sol ainda brilhava. Se punha naquela exata hora do dia e levava com ele o calmante som dos pássaros que cantavam sobre a janela do casebre, anunciando a hora de Marama brilhar. Os raios fracos de Sonca invadiam o quarto e refletiam nos olhos cinzentos da mulher, naquele sorriso que tornou um pouco de paz ao dia do arandiano.
- Vou te ensinar o que meu pai me ensinou.
Kohan sorriu com a lembrança, ainda com os olhos fechados e pouco se importando se estava parecendo um estúpido nas ruas de Cinzas. Tudo que Azura lhe ensinou dali para frente, não só naquele pôr-do-sol de um dia estressante, mas todos os dias antes de se deitarem, o homem tomou como doutrina de si próprio.
Inspirou os cheiros da cidade, cravo e canela; ouviu os sons das crianças correndo, dos cinzentos trabalhando, das risadas gostosas de amigos conversando despreocupadamente, o bater de asas de um dragão, a brisa agradável que lhe trazia um cheiro familiar e reconfortante.
Kohan abriu os olhos e a viu parada ali, admirando-o com o mesmo semblante pacífico que ele amava ver. Não gostava de vê-la como viu na noite passada. Incomodada, no mínimo, nos braços de outro homem. Machucou-lhe, mas não admitiu. Talvez por orgulho, talvez por ela. Sua vontade era de ter arrebentado o nariz de Düran, principalmente por pressioná-la daquele jeito. Entretanto, no fim, foi a ele quem ela seguiu. Era ele quem ela procurava agora com um sorriso sereno.
Lado a lado, trocando conversas despreocupadas e fazendo piadas como faziam antes de não terem mais clima para tal, ladearam Cinzas de ponta a ponta, aquele pedaço reconstruído e renascido como o próprio nome daquelas terras - das cinzas de um povo que primeiro se levantou, a terra onde ambos nasceram mas não cresceram. Já esperavam que o tempo de paz fosse pouco, mas não pensavam que findaria tão cedo.
Aquele lhes era um novo porto seguro, mesmo que não sentissem que podiam chamar qualquer lugar assim. A biblioteca outrora lhes trouxe respostas, agora era um abrigo para os feridos e um ponto de encontro de famílias apartadas.
Carú retornou quase uma hora depois com um kit de socorros e os três davilianos que por lá passaram antes de colocarem o pé na estrada. Gaia, Nafré e Isaac estavam ao léu, perdidos em decisões vagas que ainda não os levara a lugar algum. Talvez por medo e algo mais, ainda estavam naquela terra sem Deuses.
O sangue dos feridos já estava estancado e ajudaram uns aos outros a tratar dos casos mais preocupantes. Lírio, depois Tereza. O restante, além de cortes e batidas, eram apenas feridas emocionais.
Ouviam a Pedreira cair do lado de fora; silêncio do lado de dentro. Processavam o que acabara de acontecer - a última esperança que tinham foi arrancada de suas mãos suadas sem piedade. Queriam lutar, mas foram pegos de surpresa, massacrados como baratas, pragas indesejadas. O mais difícil foi admitir que mais nada lhes restava. A morte já beijava-lhes os cangotes e esperava por apenas mais um descuido para puxar o tapete sob seus pés.
Dante despretensiosamente rodava o colar em seu pescoço. A pedra era um peso confortável. Não sabia que magias Ginevra colocara ali para salvá-los dos espíritos do bosque e nem se ainda faziam efeito, mas era um grande fã do placebo, se fosse o caso.
Estático como uma rocha, não saiu do lado de um Lírio adormecido por segundo nenhum desde que o amigo fechou os olhos. Certificava-se de segundo em segundo se seu peito subia e descia ritmadamente.
- Ei - uma agradável voz soou à sua direita, despertando-lhe do transe. Dante observou Azriel sentar-se ao seu lado. O arandiano fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, deixando-a repousar em um dos milhares de móveis repletos de livros que tinham ali.
- Está bem? - Dante tirou os cabelos suados da frente do rosto do homem, que tentou esboçar um sorriso, falhando. - Foi uma pergunta idiota.
Azriel abriu os olhos e deixou a cabeça tombar para o lado. Queria vê-lo.
- Estamos bem, Dante - pensou positivo, por mais que ser positivo naquele momento lhe soasse quase um ato pueril -, por enquanto.
- E agora? - o Kino exasperou como um sopro entristecido.
O arandiano conseguiu rir tristemente.
- Da última vez que estive aqui, estava cheio de esperanças, Dante - confidenciou. - De que encontraríamos respostas, de que... encontraríamos cura e... acima de tudo, que teríamos a solução. Esperança de que de alguma forma a solução estivesse estampada nas páginas de um livro antigo, mas... olha onde paramos.
- Nós temos a solução, Azri - sussurrou.
- É o mesmo que nada - todo seu positivismo morreu. - Aquele homem é intocável.
- Daisy - a voz que soou assustou-lhes. Não perceberam que Lírio acordara. - Eles estão com a Daisy.
Dante rapidamente arrastou-se para seu lado.
- Cacete, Lírio, está bem? - o homem checou se o amigo tinha febre. Não, por hora. - Nos deu um belo susto.
- Tio Lírio! - a doce voz atravessou a biblioteca, ecoando pelo espaço aberto sobre as cabeças dos que ali se refugiaram. Lili correu para Lírio mais rápido do que suas pernas cansadas permitiram, quase caindo ao seu lado ao se abaixar para abraçá-lo. A cena despertou a atenção do restante deles, que agora assistiam e ouviam atentamente o que diziam.
Lili tomou todo o cuidado para abraçar o tio, envolvendo a cabeça do homem com seus braços. Lírio conseguiu rir.
- Oi, minha querida - Lírio ergueu uma das mãos com cautela, repousando sobre o ombro da garota e seus cabelos cor de mel. - Obrigado por salvar a minha vida.
- Eu só pedi ajuda, tio...
- Precisou de muita coragem, Lili - sussurrou. - É pedir muito de uma garota da sua idade.
Fin ajoelhou-se ao lado deles. Tinha lágrimas nos olhos. Queria balbuciar desculpas, mas nada lhe vinha à ponta da língua quando abria a boca.
- E agora, Lírio? - aquela pergunta de Fin uniu todos eles, que aproximaram-se outra vez, procurando por um mísero resquício de esperança antes de jogarem as toalhas.
- Deixem o homem descansar - Azriel murmurou.
- A gente tem que ir atrás da Daisy - Lili argumentou. Com tudo o que acontecia, poucos se lembravam da rainha.
- Daisy está bem, querida - Viorica, que tinha Deco nos braços, abaixou-se ao lado da garota e acariciou seus cabelos.
- Não, Vio, ela tá lá com os soldados!
- É a rainha - Carú, ainda na tentativa de gostar de Odile, sussurrou de seu canto para o centro da conversa. Os olhos voltaram-se para ela. Estava escondida em uma quina onde a chama das velas que acenderam pouco a alcançava. Coli dormia em seus braços, exausto. - É o lugar dela.
- Vão matá-la - Gaia choramingou, não percebendo até então o quão falha estava sua voz. Arrependeu-se da fala imediatamente ao ver os olhos azuis da pequena Lili inundados de lágrimas.
- Ei - Fin repreendeu-a pelas palavras, acenando para a irmã.
- É verdade - quieta até então, Gisèle mostrou-se presente. Do lado oposto ao de Carú, encostada em uma pilastra, enrolava as pontas dos dedos nos cabelos embaraçados de Tereza. A ruiva repousava com a cabeça sobre sua perna. Quando conseguiu atenção, prosseguiu. - O que acham que Sohlon vai fazer com ela? Abraçar? Dizer "eu te perdoo por montar um exército inteiro contra mim" e deixar que ela ponha a coroa na cabeça outra vez? É claro que não - o silêncio prevaleceu. - A essas horas já devem saber tudo sobre o que rolou aqui. Ela é a rainha até que morra.
A pequena Lili chorou. Seus olhos procuraram pelos de Lírio, mas ele não conseguiu sustentá-los.
- Tio Lírio - Lili soluçou. - A gente vai atrás da Daisy?
O peito de Lírio ardia de dor. Por um momento, quis estar só. Queria chorar ainda mais do que Lili, debulhar-se na própria dor. Ele assistiu àqueles homens arrancarem Odile de seus braços outra vez, como se não bastasse terem o feito anos antes. Além da gritante angústia no peito, sentia ódio. Foi como lhe dar uma amostra do lindo futuro que poderiam ter e cortá-la à seco pela raiz. Mas, não. Dessa vez não permitiria que vencessem. Não sem lutar, sem tentar. Não esperaria para voltar, como fez no passado. Ela precisava dele naquele instante.
Apoiou-se nos cotovelos para se levantar.
- Ei, ei! - Dante deitou-o outra vez. - Aonde pensa que vai?
- Vou atrás de Odile.
O mais puro sorriso surgiu do rosto da garotinha, que cresceu ouvindo contos de fadas e não conseguia ver como poderia o fim daquela história não ser feliz.
- Está maluco! - Nafré levantou-se de onde estava, quieta até então, enlutada e amiga da morte, com o destino aceito.
- Não, não estou - por mais que a dor lancinante no abdômen tentasse mantê-lo ali, além de Dante, Lírio se sentou. - Malucos são vocês que querem ficar aí chorando pelos cantos sem nem tentar.
A provocação despertou a fúria de alguns. Isaac levantou-se, em um instinto protetor para com Nafré.
- O que vai fazer sozinho, homem? Nem para em pé.
Lírio levantou-se, segurando os protestos para si mesmo. Não deixou que ninguém o ajudasse. Passos lentos caminharam até Isaac, parando em frente ao crisantiano.
- Se todos os que falaram que nada podem fazer sozinhos se juntassem - com dificuldade, murmurou, imponente -, nós já teríamos um exército.
Isaac quis manter a pose, mas não aguentou vê-lo assim sem fazer nada. Estava exausto demais para teatros. Apoiou-o enquanto este voltava-se para os outros, vendo rostos estupefatos por suas palavras. Poucos sorrisos discretos o admiravam. Gaia, Fin. Ele achou ter visto um vindo de Azriel, também.
- A gente não tem literalmente mais nada a perder - Lírio apoiou-se de bom grado em Isaac. - Nossas vidas estão fadadas a acabarem aqui, em um limbo horrível cheio de doenças, fome e tristeza, e vocês ficam aí choramingando ao invés de lutar?
- Lutar como, Lírio? - a voz de Tereza introduziu-a na conversa, quase pacífica de tão arrastada. - Metade dos nossos estão mortos.
Isaac estremeceu.
- Os pedreiros, sim - dessa vez, foi o crisantiano quem argumentou.
- O que está dizendo? - Viorica questionou.
- Acha que se juntarmos todo o Vale de Awa contra o exército...? - os olhos de Nafré brilharam.
- Talvez - Dante ergueu uma das sobrancelhas.
- Estamos vivendo de "talvez" agora - Lírio encheu o peito.
Entreolharam-se, todos ali. Perceberam o silêncio que jazia do lado de fora da Pedreira e servia de palco para uma conversa que poderia ser decisiva não apenas para eles, mas para todo o Vale de Awa.
- Consegue nos guiar, Lírio? - Gaia questionou, de braços cruzados, a ansiedade crescendo no âmago.
Lírio olhou em volta. Seus líderes estavam cada vez mais escassos. Cássio e Jacquelin estavam mortos. Não tinham notícias de Azura e Aurèlia. A rainha fora arrancada deles.
O homem balançou a cabeça.
- É claro que consigo.
- Vai ter que começar antes do que pensa, Lírio - ouviram a voz de Gisèle. Encontraram-na no segundo andar, mal percebendo quando ela se esgueirou até ali. A loira olhava pela janela e a luz do fogo do lado de fora fazia com que seus olhos azuis brilhassem em uma explosão de sentimentos indecifráveis. Foi só então que perceberam o quão tenebroso era o silêncio do lado de fora.
Viorica estremeceu. Estava fazendo de tudo para a mente divagar um pouco mais. Não queria pensar que aquele era o fim, que não veria mais Alaric e que nunca teria o filho que carregava no ventre. Aqueles pensamentos lhe acometeram por tanto tempo que viu-se blindada para o que viesse. Vendo que nenhum dos outros moveu sequer um membro para fazer alguma coisa, a arandiana rumou para a porta. Assim que a abriu, o queixo de todos caiu.
Parados, olhando-os com olhos esperançosos, os Pedreiros que restavam estavam de pé. De pé e prontos.
Aos poucos, os presentes na biblioteca rumaram também para o lado de fora. Lírio cambaleou, ajudado por Isaac.
Viram naquele momento a verdadeira face de um povo que não se renderia. Um povo enlutado, mas pronto para se vingar, pronto para virar o jogo. Viram nos rostos daqueles poucos que pareciam tantos: estavam prontos para se reerguer.
Os Deuses só cedem paz
E liberdade
Aos merecedores de coração
Ginevra leu nas ruínas de um dos templos. Em dado momento do dia, com a cabeça fervilhando, pediu permissão para explorar o que não se reergueu junto com Cinzas. Muito daquelas terras ainda era um mistério sem solução, uma cidade fantasma que lhe despertava uma latente curiosidade. Tampouco contou aos outros onde ia. Talvez, pensou, tudo o que precisasse era um mísero tempo a sós.
Seus dedos perscrutaram a inscrição em mármore na fachada do templo fragmentado. Metade das colunas coríntias que sustentavam a arquitetura estavam aos frangalhos. Por consequência, nada mais mantinha o templo em pé. A - um dia - deslumbrante arquitetura espalhava-se ao léu em um cenário quase apocalíptico, principalmente sob as chamas amenas que Ginevra mantinha acesas na palma da mão.
Reservados para os malevolentes
E propagadores da iniquidade
A bruxa continuou a caminhar. Tudo o que ouvia eram os próprios passos sobre as pedras que um dia ergueram o mais belo templo do Vale de Awa. Seus dedos sentiam cada serifa incrustada na parede. Seu próprio fogo iluminou uma cena que lhe fez suspirar.
Estampada em relevo, a obra mais famosa de todos os quatro cantos do Vale estava ao seu alcance. Os Deuses, todos dispostos em seus mais belos bel-prazeres, vivendo suas vidas na magnitude do Universo que criaram. Flutuavam sobre uma montanha que desenrolava-se desde o rodapé. Os olhos de Ginevra acompanharam-na até lá embaixo. A bruxa abaixou-se para ver o que fora esculpido ali e ao qual pouco devia ter atenção. Os cabelos de sua nuca se arrepiaram ao ver a figura de um homem deformado, com olhos opacos e dedos longilíneos, um desenho com símbolos estranhos no antebraço, cercado por almas infelizes e criaturas de sua semelhança, bestiais, as quais ela conhecia tão bem. Vira de perto quando tentaram tirar sua vida em Vocra. Ela teve certeza de quem se tratava o homem.
Da nequícia
E diabrura,
Os braços abertos de Pouri
A bruxa estremeceu.
- Reservados para os malevolentes - leu em voz alta -, os braços abertos de Pouri.
Teriam todos eles, radicados do Vale de Awa, almas tão malevolentes que os Deuses permitiram que o Deus das Trevas tomasse controle sobre suas cabeças?
Um estrondo distante despertou-lhe a atenção outra vez. Ela ergueu os olhos assustada, ouvindo os gritos dos cinzentos não tão longe dali.
Não sabia se aquela era a resposta à pergunta que fez a si mesma, nem mesmo se almejava tê-la.
Correu de volta para o centro de Cinzas. Seu tempo de paz e liberdade acabou tão rápido quanto chegou.
Desfrutavam lado a lado do que consideravam a primeira refeição decente em semanas. Raco, o xamã, fizera questão de lhes preparar um banquete tão apreciado em Cinzas na própria casa e que despertou memórias distantes nos vagantes. Principalmente em Kohan, cuja memória gustativa era mais recente. Sentiu gosto de casa ao devorar os camarões com a massa frita de mandioca em óleo de coco.
Provaram das bananas da terra secas e crocantes e beberam do suco de milho roxo com um gosto marcante que prevalecia na boca. Aurèlia apaixonou-se pela pasta de ervas finas enquanto Alaric preferiu aventurar-se na pimenta doce. Caiden contentou-se com uma sopa quente de mexilhões com queijo que era para ser apenas a entrada, mas lhe tinha mais gosto da comida de Dona Cida.
Düran e Ginevra não estavam lá, mas tinham a promessa de logo chegar. Azura agradeceu mentalmente por não ter que encarar Düran naquele momento. Imaginou que o homem estivesse de ressaca em algum lugar e preferiu não complicar a cena. Não queria que ele e Kohan estivessem juntos no mesmo lugar, o que sabia que era pedir demais.
Esqueceram-se da vida do lado de fora por um mísero dia, mas logo a realidade bateu-lhes na porta como um despertador importunando-os em um sonho agradável.
O estrondo porta afora bateu-lhes na consciência como a dura verdade. Aquilo não era uma festa e muito menos um agradável jantar. Do lado de fora da cidade que reergueram, propagado pelo Vale, o terror se disseminava como uma doença terminal.
Alaric deixou cair um camarão no chão, petrificado. Os cinco viajantes se entreolharam e puderam ver a própria expressão de pavor refletida nos olhos dos outros. De outro cômodo, o xamã correu o quanto suas pernas permitiram.
- O que foi isso? - Caiden indagou. Ouviam os gritos dos cinzentos invadirem a casa por entre as frestas das janelas.
Raco estava pálido como papel.
Batidas desesperadas na porta sucederam a tentativa desesperada de irromper pela sala vindas de alguém do lado de fora.
- Raco! - ouviram a voz conhecida.
A petrichoriana rumou a passos largos em direção à porta e a escancarou, encontrando um Lilo ofegante com a mais pura expressão de pavor.
- O que aconteceu, Lilo? - o xamã alcançou-os em um segundo, passando na frente de Azura e procurando pelas respostas do homem.
Lilo puxou o ar para contar-lhes:
- Nos acharam, Raco - sua voz entrecortada admitiu. - Estão se aproximando dos portões.
- Como assim nos acharam? - Aurèlia recobrou a posição que lhe era tão natural. Largou os talheres que nem ao menos percebeu que ainda segurava e limpou as mãos na calça. Lembrou-se de uma conversa com Holga. - Disseram que isso aqui é uma fortaleza escondida pelas ruínas de Cinzas em tempos passados.
- Entraram em Cinzas - Lilo continuou, atropelando as próprias palavras -, mas não ultrapassaram os portões.
- Ainda - pessimista e realista, Alaric apontou.
- Estão varrendo o Vale de Awa de cima a baixo e não se contentaram em deixar uma terra morta para trás - o xamã murmurou, parecendo próximo a ter um desmaio.
- Outros tempos - da porta, outro juntou-se à reunião. Azura sentiu os pelos do braço se arrepiarem ao ouvir a voz de Düran carregada de significado, uma lembrança da conversa recente, mas que encaixou-se perfeitamente na discussão. Düran parecia inteiro, mais do que ela achou que ele estivesse. Esqueceu-se de como ele nunca nem sequer conhecera a ressaca. Parecia ainda mais disposto que os ali presentes. Mesmo assim, ela não o olhou nos olhos. O petrichoriano aproximou-se. - Limparam Vocra e vieram se certificar de que Cinzas ainda é uma terra fantasma.
- Não sabem de nós ainda, então? - Aurèlia, de braços cruzados, estava pensativa, como se sua mente estivesse em um turbilhão de ideias. Um de seus pés batia impacientemente no chão.
- Não - Lilo comentou. - Prefiro acreditar que não.
- Então vamos pegá-los de surpresa - Kohan finalmente pronunciou-se. Com tudo o que se passava, não perceberam o nervosismo do arandiano. Cinzento, por origem. Seu corpo tremia involuntariamente e ele não sabia explicar o motivo. Foi como se um temeroso dèjá vu o acometesse. Outra vez, de volta ao lugar onde nasceu, estavam tentando lhe tirar tudo. Ele não deixaria. - Quantos são?
Lilo passou as mãos pela cabeça, pensativo.
- Como vou saber?
- Devem ser dezenas - Azura comentou. - Os que vimos em Vocra e alguns mais. Não teriam um exército para vasculhar uma área onde não pretendem encontrar ninguém.
- O que foi a explosão? - Caiden questionou.
- Estão tentando bater de frente com um portão de ferro fundido com mais de quinhentos anos. Não vão entrar por ali.
- Sabemos onde estão, então - Azura apontou.
- Perfeitamente. Provavelmente estão tentando encontrar outro modo de entrar aqui.
Lilo e Azura trocaram olhares confidentes, lembrando-se da conversa que tiveram outrora. A mulher sentiu-se confortável para tomar as rédeas da situação.
- Se são dezenas, vamos chutar a bunda deles o quanto antes e pensar em como dar o fora daqui - ordenou.
Os outros a olharam.
- Tem um exército? - Alaric questionou.
- Nosso povo é um exército, filho - Raco comentou, encostando-se na mesa de madeira no centro da sala.
- Vamos em poucos. Lilo - Azura chamou -, fique e prepare seu povo para sair daqui.
- Agora?
- Agora - sem mais delongas, Azura rumou para fora da casa, esbarrando por Düran e não ousando olhá-lo em nenhum momento. Sentiu-se ser seguida, mas não por ele. Kohan a alcançou.
- Espere, Azura - sussurrou, obrigando-a a parar ao segurar em seu punho. Viu a fúria transbordando dos olhos da mulher.
- Não temos tempo a perder, Kohan - sua voz tremeu de ansiedade e raiva. - Estamos aqui comendo e bebendo, rindo e brindando como se nossos amigos e famílias estivessem no bem-bom lá fora. Não estão, você ouviu eles. Ouviu o que está rolando e seremos os próximos. Não temos tempo a perder - repetiu. - Eu quero lutar, Kohan.
Kohan estremeceu. Estavam comendo as poucas comidas que ainda não pereceram, desfrutando do melhor que a última colheita lhes proporcionou antes de fenecer, confraternizando como se tudo estivesse novamente alinhado e o Sol fosse nascer em poucas horas. Ele pouco pensou em como estariam na Pedreira. Pensou em Azriel e em tudo o que deixaram para trás.
- Eu vou com você então - balançou a cabeça, determinado. - Na linha de frente.
- Não precisa ir comigo - Azura tentou sorrir. - Fique e certifique-se de que estarão prontos para partir assim que limparmos a área.
- Aurèlia dá conta disso - Kohan aproximou-se ainda mais. Seu nariz colou-se com o de Azura. Quis perder-se naqueles olhos cinzentos que tiravam o foco de todo o caos ao redor deles. - Te dou cobertura.
Azura sorriu e roubou-lhe um beijo. Aceitou, por fim. Se tivesse que lutar, que fosse ao lado dele. Nunca sentiu tanta sede por vingança.
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