91. Última Esperança
Gaia estava com o corpo trêmulo dos pés à cabeça, mas não ousou parar por um segundo sequer. Não conseguia mais chorar, por mais que procurasse por suas lágrimas. Por pouco teve Kaha nos braços e o deixou escapar. Falhou com Odile e com o pequeno príncipe. Como se não bastasse essa dor, Osi estava morto. Ela nunca ouvira Isaac chorar como chorou, nem quando perderam Mirza.
O que mais lhe machucava era não ver uma luz no fim do túnel escuro. Nada poderia fazer por Kaha ou por Isaac, muito menos pelo pobre Osi do qual nem ao menos se despediu.
Abriu a mochila e despejou todos os mantimentos de cima da mesa. Era a segunda que enchia.
- Gaia - ouviu Nafré a chamando.
A mais velha viu sua irmã caçula com os olhos inchados e olheiras carregadas, agasalhada e com a mochila nas costas.
- Está pronta? - indagou, sem cessar suas tarefas. Esperou por uma resposta, mas esta não veio. Ela olhou novamente para o rosto da irmã, esperando sob o batente da porta da cozinha, e viu as lágrimas banharem seus olhos. Uma expressão de dor estampou-se em seu rosto. Assim que viu que a irmã mais velha a olhava, não conseguiu sustentar as lamúrias. - Ah, Nafré...
Gaia tomou-a em um abraço apertado. A loira logo relaxou em seus braços e soluçou toda a dor para fora. Gaia já não sabia dizer o que mais lhe machucava.
- Vamos, Nafré - a irmã mais velha beijou a testa da mais nova. - Não há mais nada para nós aqui. Esteja pronta em cinco minutos.
Gaia deixou-a e adentrou o corredor escuro.
- Aonde vai? - a voz manhosa da loira indagou.
- Eu volto já. Cinco minutos!
Encontrou-o onde sabia que estaria, no lugar mais doloroso da casa: o quarto de Osi.
O corpo sem vida do garoto ainda jazia na cama, coberto até a cabeça, como se estivesse apenas dormindo. Do lado da cama, sentado no chão frio, Isaac bebia uma garrafa de vinho pela metade, envelhecida e com cheiro de vinagre.
O homem pouco se importou. Três deles se foram e eram cada vez menos. Perderam Mirza, Kaha, e Osi. Dois deles, Isaac amou tanto que não sabia botar em palavras. O elo mais forte que tinha com Iara escapou por seus dedos e ele não pôde fazer nada.
Achava já conhecer a dor do luto. Mirza, Osi, Iara e o filho que nunca batizaram. Achou que pudesse doer menos, que com o tempo fosse aprender a lidar com a dor, mas percebeu que certas coisas não se tornam hábitos. Osi era sua âncora. Agora, não tinha nada que o mantivesse são.
O crisantiano olhou para Gaia, parada na porta como uma alma penada.
A mulher aproximou-se dele vagarosamente. Abaixou-se ao seu lado e percebeu ter medo de não encontrar palavra alguma para falar.
- Estamos indo, Isaac - murmurou, como se não quisesse incomodar o garoto que parecia apenas dormir na cama ao lado.
- Indo? - Isaac acendeu um cigarro na vela que deixou acesa aos seus pés. Sabia que Osi odiava que ele fumasse, mas esperava que o filho postiço entendesse o quanto precisava de uma fuga naquele momento.
- Para Crisântemo.
Os olhos de Isaac denotaram espanto ao levantarem-se para os de Gaia.
- Vão me deixar também?
- Venha conosco - a mulher pediu.
- Fazer o que em Crisântemo, Gaia? - esbravejou. - Lá não está melhor que aqui para os como nós.
- Como nós?
- Os que não cederam a Pouri - Isaac tragou o cigarro e sentiu a fumaça descer queimando por seus pulmões. - Morrer aqui ou morrer lá.
Ele apenas pronunciou o pensamento que ela evitava concretizar.
- Então vamos morrer lá.
- E por que lá, Gaia? - irritado, soou grosseiro.
Gaia se levantou. Não ia convencê-lo de segui-las.
- Porque nascemos lá e crescemos lá. E há a mínima chance de minha mãe ainda estar viva. Se não há escapatória - Gaia engoliu a voz chorosa -, eu quero morrer lá.
A crisantiana deu-lhe as costas, retornando para a porta.
- Espere - Isaac pediu. Ela voltou-se para ele e viu os olhos do homem fechados, como se estivesse emocionalmente exausto. Isaac entendeu. Tudo o que lhe restava eram aquelas duas. Esperar a morte não o ajudaria em nada. Perdê-las também não. - Me dê meia hora, Gaia.
- Vai com a gente?
Ele balançou a cabeça em concordância.
- Só meia hora.
Escancararam a porta da biblioteca, já encontrando-a entreaberta. O rastro de sangue os fez correr ainda mais, desesperados por notícias. Os gritos que vinham de dentro arrepiaram-lhes os cabelos da nuca.
Gisèle foi a primeira a entrar, empurrando a porta para dar passagem a Fin com Tereza nos braços, cujo sangue pingava pelas roupas do garoto e chegava ao chão, mesclando-se com o dos outros desafortunados.
Viorica entrou logo atrás deles e puxou com ela Carú, abraçada ao filho Coli, enterrado em seu colo e soluçando todo o seu medo. Viram os que já esperavam lá dentro.
Suor escorria da testa de Dante enquanto o homem corria para salvar a vida de Lírio, estendido no chão e lutando para manter-se com os olhos bem abertos, mesmo sentindo-se exausto.
- Dante! - Gisèle gritou assim que entrou. Cöda berrava em seus braços e ela não conseguia acalmá-lo. Sua prioridade agora era Tereza. Agradeceu mentalmente quando Viorica tomou o pequeno nos braços e a deixou livre para correr até o semi-bruxo. Sussurrou para o amigo: - O que eu faço?
Dante estava exasperado. Toda a responsabilidade recaía sobre ele e não era pouca. Na Campina, com os Kinos, sempre foi um bom curandeiro. Aprendera bem a preparar as ervas, a aplicá-las em cortes mais profundos, mas estes provinham de acidentes de trabalho e não de espadadas no abdômen ou guerras como aquela.
- Não a deixe lá sangrando, Gisèle - ainda com as mãos sobre o abdômen de Lírio, Dante vociferou por entre os dentes. A loira afastou-se, vendo que não teria sua ajuda naquele momento.
Dante subiu os olhos para Lírio. Estava um pouco mais calmo, sabendo que ele sobreviveria pelo menos ao sangramento. Ele e Azriel agiram rápido.
O bruxo olhou para seu lado, admirando Azriel. O arandiano estava com as mãos mais firmes que as dele, a pele branca manchada pelo sangue de Lírio. Ambos pressionavam a ferida sem machucar o homem. Azriel parecia apenas esperar por uma ordem.
- Vai costurá-lo? - indagou com a voz falha, sem olhá-lo.
O semi-bruxo percebeu que se esquecia de respirar.
- Com o quê?
- Eu sei onde encontrar um kit - Carú aproximou-se. Coli agora agarrava-se à sua perna como um animalzinho indefeso.
- Então corra - Dante pediu -, por favor.
Carú tomou Coli nos braços rapidamente e lhe sussurrou um pedido: que ficasse com eles até ela voltar. O pequenino protestou, mas Viorica o recebeu ao seu lado. A daviliana correu para a casa dos crisantianos, esperando encontrá-los lá.
Fin colocou Tereza encostada em uma parede e deixou-a sob os cuidados de Gisèle. Assim que voltou-se para procurá-la, Lili jogou-se em seus braços. O soluço de emoção do garoto foi o primeiro a escapar, seguido logo depois pelo da irmãzinha. Ele abaixou-se para tomá-la nos braços, encontrando também Deco são e salvo.
- Você tá bem, Fin? - Lili chorou, acariciando o rosto do irmão mais velho.
Fin não conseguiu responder. Não estava. Nada daquilo estava certo.
- Desculpa - murmurou por entre soluços. - Não vou mais deixar vocês, eu prometo.
- A gente tá bem, Fin - os olhos azuis da pequenina transbordavam -, mas eles levaram a Daisy.
Era como se já tivessem se acostumado à ideia de nunca mais ver o sol nascer e nem se pôr. Sem estrelas, sem lua, também. Os Deuses estavam mortos e pareciam todos tranquilos com a ideia de serem regidos pelo puro mal, pelo monstro das histórias e cantigas de ninar que cresceram ouvindo. A rainha se perguntou como podiam estar todos tão cegos.
Olhando da janela do mais belo mirante do Vale de Awa, Odile viu o que um dia ela chamou de povo apagar as tochas, convencionando que se dava início à hora de repousar. Não podiam mais chamar de noite, vivendo em uma eterna escuridão.
Apenas há pouco a rainha conseguira parar de chorar. Estava sem mais lágrimas para saírem e seus olhos ardiam, por mais que a dor e tristeza fossem tantas que teve medo que seu coração logo parasse. Sempre amou a vida, mesmo em seus momentos difíceis, mas surpreendeu-se seduzida pela ideia de se dependurar na janela, inclinar o corpo para o abismo e, quem sabe, permitir-se cair.
Não conseguia mais ficar na cama, muito menos olhá-la. Os lençóis bagunçados e espalhados pelo chão lembravam-na das atrocidades que Roto ousou fazer com ela. Sentada no sofá que lhe permitia vislumbrar o Vale do lado de fora, a rainha tremia no próprio abraço. Não queria mais estar na própria pele e pegou-se arranhando o próprio corpo em uma necessidade de fuga daquela carne. Lhe apavorava a ideia de que sua vida seria assim para sempre e de que logo lhe tirariam a liberdade também do além-vida ao lado dos Deuses.
Tentou distrair-se com boas lembranças, mas estas sempre repousavam em Nikki ou nos poucos amores que encontrou na Pedreira. Lili, Fin, Deco. Pöli, Celeste. Se soubesse que estavam bem, que aquele gesto de voltar para o palacete lhes daria a chance de uma nova vida, tudo teria valido a pena. Aguentaria uma vida inteira ao lado de Roto. Mas, não. Logo Pouri os colocaria em uma encruzilhada. Morte ou devoção. Ela sabia o que escolheriam. Se ainda lhe restassem lágrimas, ela choraria. A ideia de debruçar-se pela janela era cada vez mais sedutora, mas algo ainda a mantinha ali. Alguém.
A porta de seu quarto rangeu ao abrir. Ela estremeceu e sentiu o estômago revirar ao pensar que Roto voltara por ela. Entretanto, um resmungo familiar a fez voltar os olhos verdes para a porta, que brilharam ao ver uma criada com seu filho nos braços.
- Majestade, está acordada? - indagou a mulher sob um cochicho. Odile atravessou o quarto e rapidamente alcançou-a. A rainha tomou Kaha nos braços. - Cuidado, minha rainha. Vai acordá-lo.
Odile sorriu pela primeira vez em horas ao tomá-lo outra vez em seu colo e reencontrou suas lágrimas. Kaha resmungou, mas não acordou. Estava limpo, aquecido e dormindo como se nada lhe preocupasse.
- Não precisa se preocupar, meu príncipe - cochichou para o filho, voltando-se novamente para o sofá sob a janela -, eu me preocupo por nós dois. Ninguém vai machucá-lo.
A criada estava parada no mesmo lugar sem saber como proceder. Odile a olhou ao tomar novamente seu lugar limitado ao canto daquele enorme aposento. A mulher era um pouco mais velha. Tinha os cabelos loiros mesclados com os brancos que nasciam e estavam presos em um rabo de cavalo baixo.
A mulher aprontou-se timidamente a arrumar a cama. Odile desviou o olhar, mas sentiu-se observada. Longos minutos se passaram. Assim que a cama ficou impecável, a rainha esperou que ela saísse para desmanchar a pose e voltar para sua deplorável ensimesmação. Contudo, surpreendeu-se quando a mulher sentou-se timidamente em sua frente no sofá, trazendo consigo uma pequena bolsa da qual tirou curativos e preparados de ervas para ferimentos, rotulados com o brasão de Crisântemo.
Pedindo permissão apenas com o olhar, a criada embebeu um pedaço de algodão em um dos preparados e aproximou-o do lábio da rainha. Só então Odile pensou em como estaria sua imagem. A maquiagem com certeza já escorrera pelo rosto e teve certeza que a maçã esquerda do rosto estava arroxeada onde Roto a feriu repetidas vezes. O corte recente no lábio era o que menos a preocupava.
- Achei que ninguém pudesse ferir alguém como você, minha rainha. Não foi assim que chegou em nossas mãos, horas atrás.
Odile surpreendeu-se com a audácia da mulher ao dirigir-se a ela assim. Nenhum dos outros criados nunca ousara, muito menos fazê-lo olhando-a nos olhos como ela fazia. Não obtendo resposta, a criada prosseguiu:
- O rei a feriu?
Em outra situação, não responderia, mas sentiu necessidade de conversar com alguém. Soltou uma risada debochada.
- Aquele homem nunca ergueria um dedo para mim - murmurou, olhando pela janela enquanto a mulher loira limpava o ferimento em seu lábio. Queria acreditar nas próprias palavras.
- E quem teria tão pouco amor à vida para levantar um dedo para você?
O riso triste de Odile desmanchou-se. Voltou seus olhos para a criada.
- Logo verá.
A mulher mais velha baixou seus olhos, um tanto intimidada. Assim que terminou de tratar do lábio de Odile, levantou-se. Ameaçou voltar para a porta, mas não o fez. Ficou ali, parada. O peito subia e descia, como se estivesse ansiosa e nervosa.
A rainha percebeu sua impaciência.
- Você pode enganar aos outros, rainha Odile, mas não engana a mim - soltou, finalmente.
Odile arregalou os olhos. Quem era aquela mulher?
- Diz que os outros têm pouco amor à vida, mas se dirige a mim assim? - manteve uma pose que não queria mais ter que manter.
- Eu não tenho mais nada a perder, tenho? - debochou a mulher, parecendo saber que no dia seguinte, se assim a rainha quisesse, sua cabeça estaria pendurada nas paredes externas do palácio. Não se importou. Respirou fundo, mas sua voz saiu falha e ansiosa. - Pode enganar quem quiser, dizer que seu filho foi sequestrado por rebeldes, os vilões mal-amados da sua história, mas não engana a mim.
- Está colocando palavras na minha boca, mulher - Odile levantou-se, deixando Kaha dormindo no sofá, repousado ao lado das almofadas.
- Foi o que eles disseram - a loira fez um sinal com a cabeça para a porta. - Mas eu sei a verdade. Eu sei o que aconteceu com seu filho na noite em que tentaram matá-lo. Sei que não foi sequestrado, ele foi salvo das garras dos pais genocidas. E sei muito bem que a mulher que o salvou nunca o devolveria para você. Eu sei!
Odile arregalou ainda mais seus olhos. A criada teve medo do que aconteceria a seguir, mas precisava de respostas.
- O que fez com ela, rainha? - sussurrou, chorosa. - O que fez com a minha filha?
Aquela mulher pensou que ali tivesse assinado a própria certidão de óbito. Entretanto, a feição da rainha não era de fúria, como ela esperava. Suas sobrancelhas se arquearam, como se estivesse ligando pontos em sua cabeça.
- Rose?
A loira bambeou, quase caindo sentada ali mesmo.
- Como...?
- É a mãe de Gaia? - esperançosa, um sorriso novamente delineou-se no rosto da rainha.
Rose chorou ao ouvir o nome da filha. Levou a mão à boca.
- O que aconteceu com a minha menina...?
Para a surpresa de Rose, a mulher perdeu a postura por completo. A rainha a abraçou.
Por um momento, petrificou-se. Percebeu então que nada do que especulou era verdade.
- Gaia vai ficar tão feliz que está viva! - a rainha exasperou. Rose quase caiu em seus braços.
- Minha Gaia está bem? - Rose soluçou.
- Sim, ela e Nafré!
Mencionar Nafré já lhe dizia que Odile não estava mentindo. Rose riu por entre as lágrimas, acompanhando a rainha. Nem em seus sonhos imaginou aquela cena. Por vontade própria, abraçou outra vez a rainha com tanta força que sentiu medo de machucá-la, mas Odile sentiu um conforto necessário.
Ambas sentaram-se frente a frente no sofá, mais próximas, sabendo que muito tinha que ser revelado dos dois lados.
- Como eu poderia fazer algo com a mulher que salvou meu bebê? - Odile indagou. - Gaia é uma amiga.
- Não é o que eu ouvia à mesa nos jantares, rainha Odile...
A rainha riu. Já imaginava todos os nomes pelo qual Gaia lhe chamava quando era uma megera com a criada pessoal.
- Tanto mudou nesse tempo, mulher, você não faz a menor ideia!
- Então me conte... o que dizem lá fora é verdade?
- O que dizem lá fora?
- Foi sequestrada? Se minha Gaia é sua amiga...
Odile riu, finalmente feliz por poder conversar com alguém, contar toda a verdade.
- Eu não era prisioneira coisa nenhuma, Rose - respirou fundo, ao mesmo tempo triste e orgulhosa. - Eu era líder.
Os olhos de Rose se arregalaram.
Odile lhe contou tudo, todos os detalhes de sua história. Desde quando fugiu dali e encontrou Pöli, até quando reencontrou Nikki e logo depois Gaia e o príncipe. Contou como se apaixonou por um povo, seu povo, o qual tinha orgulho de chamá-lo assim, e queria a todo custo redimir-se. Contou como fora parar ali, como seguiu o exército para que pudesse dar outra chance aos Pedreiros. Contou da estratégia de Roto para mantê-la viva e tudo o que o homem fez e pretendia fazer.
- O marechal? - Rose levou uma das mãos ao peito. Percebeu que segurava a gélida mão da rainha com a outra. Aquilo era demais para processar. - Como...? Quando?
- Em três dias.
Odile olhou para as mãos unidas às de Rose. Seus olhos encontraram o antebraço da mulher e viram o exato desenho que encontrou no livro da biblioteca, na Pedreira. Entendeu o que acontecera.
- Eu diria que não tive escolha, mas tive, sim - Rose percebeu que a mulher encarava o desenho do Deus das Trevas. - Eu fiquei sozinha depois que minhas meninas se foram. Acho que... eu fiquei tão triste. Cheguei aqui nos portões e disse que Gaia, minha menina, tinha perecido durante a correria naquele dia em que descobriram que o príncipe estava vivo. Me deixaram assumir seu posto para que eu pelo menos tivesse uma renda, algo para ocupar a cabeça. Aí... aí Sohlon resolveu complicar as coisas um pouco mais. O Sol parou de nascer. Ou nos rendíamos a Pouri, ou perecíamos aos poucos. Não tinha como sobreviver. Então, ou entrávamos no palacete e ajoelhávamos perante ao rei, jurando devoção a Pouri, ou podíamos morrer de fome, doenças, frio, o que fosse. Acho que deu para perceber o que escolhi, não é?
A rainha olhou para seu semblante triste.
- Eu ainda tinha a esperança de ver as minhas meninas, sabe? - Rose choramingou. - Não queria morrer. Mas ao mesmo tempo... não quero isso para elas.
- O que acontece se jurar devoção a Pouri?
- É um pacto com o próprio mal, minha rainha - Rose acariciou o antebraço, acima da marca ali desenhada. - Assim que morrermos aqui, é uma eternidade de dor ao lado do Deus das Trevas. Nos foi negado um descanso depois dessa vida sofrida. Nenhuma das opções é boa, mas... eu espero que minhas filhas ao menos morram com dignidade - a voz esganiçada de Rose era um pedido de socorro - porque eu não vou. Não mais.
Odile apertou mais firmemente a mão de Rose.
- Tem que haver alguma saída, Rose - murmurou seus próprios pensamentos.
- Nós sabemos qual é, rainha Odile.
Elas sabiam. Matar Sohlon. Depois, matar Roto, o homem com quem o pacto se sucederia após a morte de Sohlon. Odile sacrificaria a si mesma para que o Sol pudesse voltar a nascer, para que Nikki pudesse viver e criar os sobrinhos. Ela perdera a esperança de que Pöli e Celeste estivessem bem, mas sabia que os amores que deixara na Pedreira ainda estavam lá, esperando por uma luz. Entretanto, como sacrificaria Kaha?
A rainha olhou do príncipe para a mãe de Gaia, percebendo então a semelhança da mulher com as duas filhas. Teve uma ideia.
- Rose, se eu pedir para fugir com Kaha - as próprias palavras lhe machucaram. Ela engoliu o choro -, você fugiria?
Rose assustou-se.
- Como eu faria isso, rainha Odile?
- Eu penso em tudo - Odile sussurrou -, só me diga que fugiria com ele. E ficaria bem escondida até que eu...
- Até que o quê, minha rainha?
Odile olhou pela janela. Sabia das consequências do que queria fazer, mas Rose brilhava em sua frente como uma luz no fim do túnel, sua última esperança.
- Até que eu mate Roto.
A movimentação do lado de fora do quarto despertou-a.
Azura não saberia dizer por quanto tempo dormiu, mas apostou que mesmo se tivesse dormido por doze horas estaria igualmente exausta. Os acontecimentos da noite anterior lhe desestabilizaram.
Entretanto, ela e Kohan não trocaram palavra alguma durante a volta. Ele não a questionou sobre nada e não foi seco como da outra vez em que sentiu ciúmes de Düran. Quando voltaram ao quarto - que dividiam com os Ginevra e Alaric - os irmãos já dormiam pacificamente. Ele deitou-se em um canto e, sem nada dizer, abriu os braços para que ela se encaixasse lá. A mulher agradeceu mentalmente, pegando no sono confortavelmente dentro do abraço de Kohan.
Foi exatamente assim que acordou, como se não tivesse movido sequer um dedo durante todo o sono. Vagarosamente desprendeu-se do homem e se levantou. Com cuidado para não acordar nenhum dos outros que ainda dormiam, Azura abriu a porta e rumou para o lado de fora da antiga taverna.
Ali, naquele corredor extenso que estendia-se por toda a fachada, tinha uma visão perfeita da vida tomando forma outra vez no vilarejo, ainda mais do que quando os encontraram. Dependurada na grade, olhando para o povo lá embaixo, Azura reconheceu as costas da mulher. Não sabia se falava com ela ou não. Conversar com Aurèlia era sempre um jogo de sorte ou azar. Mesmo assim, aproximou-se da grade ao seu lado.
Aurèlia olhava para o vilarejo, o povo de Cinzas, mas não os enxergava de verdade. Sua mente estava longe; suas pupilas, sem foco. Em suas mãos, uma caneca de chocolate quente aquecia-lhe as pontas dos dedos e exalava o delicioso aroma característico da bebida.
- Me desculpe, Azura - a mulher murmurou as palavras que a petrichoriana não esperava ouvir. Azura olhou para seu lado, vendo que Aurèlia ainda estava perdida em seus pensamentos. - Eu fui uma imbecil.
Azura riu, tentando descontrair o clima.
- É, foi sim - comentou -, mas todos perdemos a cabeça hora ou outra.
Aurèlia concordou com um aceno, balançando o queixo para cima e para baixo como em um gesto automatizado. Finalmente olhou para Azura.
- Você não.
A petrichoriana soltou uma risada debochada.
- Você não faz ideia, Aurèlia.
Aurèlia riu, vendo que não perdera a amiga por besteiras. Seu rosto tornou-se travesso.
- Tem fofocas para me contar? - sussurrou, olhando para trás para ver se nenhum dos outros acordaram.
- Quantos anos temos? Quinze?
- Fofoca é a base de uma relação saudável - a Kino insistiu. - Düran voltou ontem um caco só, um bêbado aos frangalhos.
O sorriso da petrichoriana desfez-se.
- O que disse a ele?
- Achei melhor fingir que estava dormindo - a Kino deu de ombros. - Algo me diz que você tem a ver com isso.
Antes que pudessem continuar, uma das portas se abriu. Ginevra saiu de lá espreguiçando-se como se tivesse tido uma noite super agradável. Alguém, ao menos, tinha que desfrutar da cama confortável e dos lençóis quentes.
- Azura - comentou, incisiva -, eu quero fazer carinho naquele dragão.
Tanto Azura quanto Aurèlia riram, um momento de paz e descontração em meio ao caos. Azura e Ginevra botaram-se a andar rumo às escadas, mas a petrichoriana parou ao não ser seguida pela Kino.
- Você não vem?
Aurèlia olhou outra vez para o horizonte, para as tochas se acendendo e para a Cinzas que acordava.
- Eu vou ficar aqui - sorriu brevemente para as duas.
A Kino encontrou-se novamente a sós com seus pensamentos, por mais que não se sentisse sozinha. Estar ali era como estar com Frey. Ela olhou para o chocolate quente em mãos e sorriu, limpando uma lágrima ao trazer à tona uma lembrança boa e dolorosa ao mesmo tempo. Quando repousavam na gélida floresta de Vocra, fugindo da neve que ainda caía e tentando botar a mente em ordem, Frey sorriu para o nada e murmurou:
- Espero que tenha chocolate quente em Cinzas.
Aurèlia deu um gole na doce e amarga bebida em suas mãos. Sorriu melancolicamente.
E não é que tem, Frey?, pensou. Igual a você, essa sua terra é cheia de surpresas.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro