90. Outros Tempos
Dante conheceu o inferno naquele dia sem sol, naquela noite sem lua. A escuridão, o fogo, a dor, tudo o envolvia como uma redoma de agonia e desesperança. Sabia ter dons fortes. Conseguia ver a energia das pessoas e por isso estava sempre rodeando-se de auras boas. Entretanto, aquele lugar agora o sufocava e não podia culpar apenas a fumaça da Pedreira perecendo.
O Kino estava nos pés de sua porta, longe o suficiente do centro para que os soldados não o tivessem alcançado ainda. Por muito pouco. Ele conseguia ver de onde estava as desgraças acometendo seus conterrâneos no começo daquela ruela. Percebeu estar com a mão no coração, tentando arrancar a agonia de não ter feito nada a não ser fugir - e voltar apenas quando eles se foram.
- Dante! - ouviu seu nome ser chamado. - Dante!
O homem olhou por todos os lados, esperando encontrar a voz que o chamava por entre o pandemônio e a miscelânea de pessoas desalentadas. Quando os viu, sentiu o pouco de comida no seu estômago ameaçar voltar.
O Kino não soube como, mas desceu os degraus restantes da entrada de sua casa e costurou por entre as pessoas o mais rápido que pôde, encontrando os que lhe pediam socorro.
Viorica e Azriel ladeavam Lírio, amparando-o quase desacordado pelos braços.
- Lírio! - gritou ao ver o estado em que o amigo encontrava-se. Mal reconheceu a dor na própria voz. Viu o sangue escorrendo do abdômen do homem e temeu ser tarde demais. Rapidamente tomou o lugar de Viorica, a arandiana que agora estava pálida como papel. Voltou-se para ela. - Vá para a biblioteca. Encontre os outros.
- Que outros, Dante? - a mulher choramingou.
- Os nossos amigos, porra! - esbravejou, arrependendo-se em seguida. Estava com a cabeça fervilhando.
Viorica concordou. Rapidamente voltou-se para trás e abaixou-se ao lado de uma garotinha que Dante não percebera estar seguindo-os desde então, chorando em silêncio. Puxou na memória o nome da pequena. Lili. Carregava nos braços o irmão que chamava de Deco.
- Siga-os, querida - Viorica murmurou, acariciando os cabelos da menina.
- Eu quero ir com você! - Lili esbravejou. Procurava por um porto seguro. Daisy fora embora, Nikki estava lutando para manter-se vivo e nenhum sinal de Fin. Já tinha perdido a esperança com seus pais.
- Podem precisar de você, Lili - Viorica falou duramente, como se lhe passasse uma tarefa urgente e ela fosse a única que poderia resolver. Os três já afastavam-se, procurando caminho para a biblioteca. - Vá com eles, querida, eu vou encontrar os outros.
- E meu irmão? - Lili gritou quando Viorica afastou-se.
- Vou atrás dele, eu prometo! - Viorica gritou de volta. Não sabia por onde ou por quem começar a procurar.
- Segure Cöda! - Gisèle colocou o bebê nos braços de Fin rapidamente e voltou-se para Tereza. Não sabia o que fazer.
O pequeno daviliano chorou em colo desconhecido, como se sentisse na pele a atmosfera conturbada e a dor das mulheres que cuidavam dele.
A ruiva sentia uma agoniante dor que tentava segurar a qualquer custo. Estava com uma estaca de ferro fincada na perna, uma arma que não sabia que podiam usar contra ela, retirada de alguma estrutura em construção ou aos frangalhos.
Tereza estava sentada no chão sujo da ruela, suada e descabelada, inspirando profundamente e soltando o ar fracionado, dando o máximo de si para segurar os gritos de dor.
Gisèle abaixou-se ao seu lado, não sabendo o que fazer.
- Eu saio do seu lado por um segundo e você me volta com isso? - a loira tentou soar bem humorada e quebrar a tensão da situação, puxar a atenção da ruiva para outra cena, mas sua voz soou como uma bronca, apenas.
Tereza quis lutar. Por um segundo, achou que poderia. Queria fazer justiça com as próprias mãos. Queria que os soldados sentissem a fúria da Pedreira, mas toda a sua determinação não bastou para enfrentar um, sequer. Se não fosse por Gisèle, estaria morta.
- Não é hora disso! - Fin gritou para a loira com quem teve pouco contato. Preferiu segui-las, rostos conhecidos, do que ficar só, vagando sem rumo e com medo. Tentava não pensar em Lili e em Deco. Chacoalhava o pequeno Cöda nos braços incessantemente, percebendo o quão inútil aquele acalento era para o bebê aos prantos. - Tire esse negócio da perna dela!
A ruiva tentava segurar as lágrimas de dor, focando apenas no céu e em nada mais. Suas unhas cravaram-se na terra sob seu corpo como se pudesse apertá-la até a dor sumir.
Gisèle ofegava. Já tinha tido ataques de pânico em horas inoportunas, mas não podia deixar que um lhe acometesse naquele momento.
- Não sei se devo tirar - controladamente respondeu ao garoto.
- Tire - Fin insistiu.
- Vai aumentar o sangramento - a loira tentou não olhar para o rosto em agonia de Tereza. Prestava atenção apenas ao ferimento e nas próprias mãos ensanguentadas que seguravam-lhe a perna.
- Não somos curandeiros, Gisèle, tire isso dela! - Fin berrou sobre o pandemônio.
- Tire - Tereza murmurou por entre picos de dor. Finalmente desceu os olhos para a loira. Gisèle subiu os seus. Encontraram-se. - Eu não vou a lugar nenhum com isso. Cöda precisa da gente agora, Gis.
- E se... Tereza, isso vai...
- Eu sei, anda - a ruiva cochichou.
Gisèle respirou profundamente e sentiu alívio ao ver que Tereza retornara os olhos para o céu escuro. Seus dedos finos e trêmulos encharcados do sangue da mulher envolveram o gélido metal da estaca. Tereza soltou um gemido agudo de dor e fechou os olhos, deixando lágrimas escaparem por seu rosto até tombarem sobre seu colo.
A loira fechou os olhos por um instante e puxou todo o ar que conseguiu. Tinha cheiro de agonia e desespero. Sem mais delongas, arrancou a estaca da perna de Tereza.
Fin rapidamente agiu sobre os gritos de angústia da ruiva. O garoto puxou Gisèle para cima e a loira recompôs-se quando Cöda retomou seu lugar em seu colo. Passava tanto tempo ali que fazia falta quando não estava.
O pedreiro encaixou-se perfeitamente embaixo da axila de Tereza e sua outra mão passou por debaixo da perna boa, tomando cuidado ao envolver a perna ferida. Tereza era pequena e ele, apesar de não aparentar, era forte. Seus músculos - e os de Pöli - eram o que garantia o sustento da família na fazenda.
Sem dificuldade, Fin ergueu a ruiva. Não sabia para onde ir, mas seguiu para qualquer lugar onde pudesse encontrar ajuda para ela. Agradeceu aos céus quando aquela mulher apareceu. Foram todos para a biblioteca. Fin correu na frente com a promessa de que Lili estava bem.
Mesmo sabendo que estava iludindo a si mesma, Azura permitiu-se desfrutar de uma breve sensação de liberdade.
Aquela viagem até a terra de nascença fora árdua e dolorosa, mas estava anestesiada por tudo o que encontrou em Cinzas, desde os mistérios escondidos aos dragões que o resto do Vale conhecia apenas por contos.
A ela e aos outros vagantes foram cedidos espaços confortáveis para descanso. Hospedaram-se em o que um dia fora uma grande taverna e agora desenrolava-se em uma moradia coletiva de cozinha e lavabo compartilháveis. Os cinzentos os acolheram bem, apesar dos olhares constantes para cima dos sete com denotações indecifráveis que margeavam tanto o medo quanto a curiosidade.
Dividiram-se em dois quartos e foi mais que o suficiente. Sabiam, entretanto, que o luxo de dormirem entre quatro paredes, aquecidos e de barriga cheia, não perduraria tanto quanto gostariam.
A petrichoriana não conseguiu dormir, diferente de alguns dos outros. Viu quando Aurèlia, no quarto ao lado, pegou no sono como uma criança sonolenta. Logo Caiden a acompanhou. Azura ficou feliz por vê-los finalmente repousar e esquecer as turbulências por um tempo. Ela, entretanto, estava com a mente agitada e o relógio biológico desregulado. Não sabia ao menos que horas deveriam ser.
Com a liberdade que lhe foi dada, a mulher botou novamente os pés na vila. Estava com a echarpe vermelha que lhe devolveram cobrindo o peito do vento gélido que percorria todo aquele gigantesco corredor a céu aberto. Os dragões eram agora escassos, sendo um ou outro os que ainda pousavam nos telhados dos casebres. Pela falta de movimento nas ruelas, teve certeza de que era de consenso qual era a hora de dormir.
Viu poucas almas vagando por ali e todas lhe foram simpáticas. Algumas tochas dos lados de fora das casas foram apagadas, outras ainda mantinham-se acesas e lhe guiavam como se estivesse hipnotizada por sobre os ladrilhos de pedra reconstruídos depois do massacre.
Andou tanto que se perdeu, mas pouco se importou. Gostava de estar ali. Queria conhecer mais e mais. Nasceu ali, em uma daquelas casas. Gisèle vivera ali por tanto tempo antes de tudo perecer e seus pais terem que fugir com sua irmã para D'Ávila.
Enquanto pensava nas ironias do destino e em como todo aquele grande embaralhado de pontas soltas se cruzou, a mulher ouviu um som distante, mas que lhe era tão familiar, associado a casa e a paz.
O mar, percebeu. As ondas quebrando na arrebentação.
Sorriu ao se dar conta de que a neve não mais caía e a temperatura agora era quase agradável, digna de uma noite de inverno em Petrichor. Apurando seus ouvidos e ouvindo seus instintos, perseguiu o som. Em dado momento, enfiou-se na floresta outra vez e ouviu as ondas cada vez mais próximas. Logo, estava seguindo uma luz. Uma fogueira acesa. Logo, estava com os pés na areia, fitando a praia com um sorriso bobo no rosto, dando-se conta de que em sua frente, olhando para o fogo aceso e desfrutando de um cigarro habitual, alguém a olhava. Düran sorriu.
- O que faz acordada, petrichoriana? - o homem sorriu-lhe, tragando outra vez o cigarro em mãos. Aos seus pés, uma garrafa de rum estava perigosamente perto do fogo.
Azura deu de ombros e tirou os calçados, deixando-os ali no limiar entre a floresta e a areia. Deixou que os pés afundassem nos grãos de areia fofa e acinzentada, gelada mas confortável. O vento empurrava seus cabelos e a echarpe na direção do mar. O horizonte escuro não lhe permitia ver onde terminava o céu e começava o Oceano Platina, mas a fogueira que Düran acendera era próxima o suficiente da água para que ela visse as ondas quebrando e a maré desgovernada.
Azura sentou-se ao lado de Düran na areia e arregaçou as barras das calças até os joelhos.
- Isso ainda vai te matar - riu, roubando de suas mãos o cigarro aceso.
- Se fosse a única coisa a fim de me matar, eu estaria bem tranquilo - Düran observou-a tragar o bolado que conseguiu com um dos cinzentos, de bom grado. Azura percebeu sua voz arrastada de quem andara bebendo. - Não respondeu minha pergunta.
Azura soltou a fumaça por entre nariz e boca e fitou o fogo. Bateu as cinzas na areia.
- Eu não ia conseguir dormir nem se fosse obrigada.
Düran a olhou, sentada ao seu lado, mesmo que esta fitasse apenas as chamas da fogueira.
- Hipócrita - o homem roubou seu cigarro de volta e o colocou entre os lábios.
- E você?
- Eu o quê?
- O que faz aqui?
Düran deu de ombros. Deu um demorado gole no rum e o engoliu com uma careta.
- Me disseram que aqui tinha uma praia. Sempre foi um bom escape.
Cinzas era cercada de praias. Ela caçou na memória as lembranças que a bruxa lhe mostrou. Aquele era o mesmo mar em que Amara e Santi a deixaram sob a própria sorte e bênção de Morgana.
- Devíamos tentar dormir, não? - a mulher pegou a garrafa de rum das mãos de Düran e arrependeu-se imediatamente assim que colocou o gargalo nos lábios. O próprio cheiro inebriante lhe deixou desnorteada.
- Para quê? - o petrichoriano deitou-se na areia e fitou o céu sem estrelas. - Você já foi um pouco mais festeira que isso.
- Isso não é uma festa - a mulher riu, olhando-o deitado como se pouco se importasse com a areia colando em sua pele.
- Poderia ser - Düran riu, bêbado. Azura revirou os olhos. - Qual é? Costumávamos ficar até o dia amanhecer dançando nas praias de Petrichor. Lembra?
Düran sentou-se outra vez, fitando os olhos da amiga.
- Eu era jovem.
- Não me obrigue a te xingar, Azura.
A garota gargalhou, jogando a cabeça para trás. Seu riso logo desfez-se ao lhe contar a verdade:
- Outros tempos, Düran.
A mulher perdeu-se novamente na bela visão da praia refletindo as chamas, o único foco de luz que os banhava. Sentiu o olhar de Düran recair sobre ela, estudando-a.
- Você amava dançar - com a voz arrastada, o homem lembrou. Azura voltou-se para ele, vendo seus rostos próximos e um sorriso acanhado nos lábios do conterrâneo. - E disso, lembra?
Ela assustou-se com a proximidade, mas a nostalgia das lembranças paralisaram-na.
- É claro que lembro - um doce sorriso retornou ao seu rosto.
- Desde pequenininha, você amava dançar. E dançava bem pra caralho. Eu amava ir assistir você dançar, por mais que eu te enchesse o saco quando éramos crianças.
- Você fez aulas comigo depois, eu lembro bem! - Azura riu. - Olha quem é hipócrita aqui.
- Fiz aulas? - Düran fez-se de desentendido.
- Sim, senhor. Nós tínhamos o quê?, quatorze para quinze anos e a Dona Olza dava aulas lá na casinha dela.
- Nossa, é verdade... Subindo o morro, né?
- Exatamente. E você fez várias aulas! Ainda trazia os grãos de käfi todo dia para a Dona Olza, o aluno mais puxa-saco.
Os dois caíram na risada.
- É, mas você era a melhor.
- Eu não era a melhor.
- A melhor de Petrichor, Azura - Düran insistiu.
- Lembra da Lorna? Ela sim, era a melhor.
- Não estou falando de técnica - murmurou. - Você dançava com o coração.
Azura sorriu.
- Que clichê.
- Clichês não são ruins.
- É, tem razão - a mulher afastou-se dele, envergonhada pela proximidade. Tornou seu olhar para as ondas quebrando.
- Não sente falta de dançar?
- Todos os dias - um sorriso melancólico desenhou-se dolorosamente em seu rosto.
Apesar de tentar fugir, sentia a proximidade do homem.
- Posso te contar um segredo, Azura? - novamente, Azura o olhou. Seus olhos refletiam as chamas dançantes da noite, tão próximos aos dela. Lhe deu permissão para continuar. Assistiu-o então se levantar e bater a areia da roupa. Düran estendeu-lhe uma das mãos. - Eu só aprendi a dançar pra te guiar.
Rindo como uma criança, tomou-lhe a mão, pondo-se de pé.
- Pare com isso.
- É sério.
- Você amava dançar, não me engane.
- Eu sentia um ciúmes danado toda vez que alguém te tirava pra dançar - Düran tomou sua mão entre seus dedos e a outra repousou em sua cintura.
- O que está fazendo? - a garota riu.
- Te tirando para dançar.
Azura gargalhou quando ele a guiou nos passos que ela conhecia tão bem. Não podia nem ao menos culpar o único gole de rum que tomou, por mais que esse tenha descido tão quente por sua garganta que sentia-se novamente aquecida, de dentro para fora.
Era um dos poucos momentos felizes que desfrutava em muito tempo. Deixou-se levar.
Düran sempre fora seu melhor parceiro de dança, sabendo guiá-la por todo o salão, por todo o vilarejo, por toda a praia. Ali, não foi diferente. Ela sentiu a areia úmida sob seus pés e a água bater em seus tornozelos. Não estava fria, passando-lhe uma sensação agradável.
Fechou os olhos e quase conseguiu ouvir a música. Dançavam em sintonia um com o outro, em melodia com o som do mar, do vento costurando as árvores, das folhas mexendo. A mulher fechou seus olhos, sentindo novamente o prazer adormecido de dançar. Não percebera até então o quanto um pequeno gesto lhe fazia tão bem.
Mergulhada nas lembranças de tempos não tão distantes, das sensações prazerosas de deslizar como a própria brisa nas areias da terra em que nasceu, Azura demorou a perceber o que acontecera. Sentiu as mãos de Düran envolverem seu quadril com mais voracidade do que quando este costumava guiá-la. Em um passo que ela não esperava, Düran colou os lábios aos seus.
Düran prendeu-a naquele beijo mais do que ela gostaria, menos do que ele almejava. Soltou-a quando sentiu as mãos da garota empurrarem seus ombros para trás, percebendo então o quão bêbado e inconveniente estava sendo.
Livre de seus braços, Azura deu dois passos para trás, levando as pontas dos dedos aos lábios. Sua expressão de completo êxtase sumiu por completo e ela não ousou olhá-lo. Por mais que o petrichoriano tentasse entender o que se passava na cabeça da garota, era impossível. Não sabia se ela tornaria aos seus braços ou lhe esmurraria as rosáceas. Entretanto, ela fez pior. Deu-lhe as costas e sem nada dizer, rumou para a floresta.
- Azura, espere... - Düran insistiu, tentando acompanhá-la. A mulher não parou, todavia. Mesmo com os sentidos deturpados, o homem correu até alcançá-la e segurou em um de seus punhos.
- Me solte, Düran - Azura vociferou quando viu-se impossibilitada de continuar.
- Não - tristemente contestou, puxando-a de volta com delicadeza até ficar entre ela e a floresta, sua fuga. Viu os olhos de Azura cheios de sentimento. - Me desculpe, eu...
- Isso não vai funcionar, Düran - a emoção de Azura transformou-se em uma voz embargada.
- O que não vai funcionar? - insistiu. A mulher cruzou os braços, soltando-se de suas mãos. Não queria ter aquela conversa. Tentou desviar e contorná-lo, mas o homem não deixou. Ele, diferente dela, precisava ter aquela conversa há muito tempo. - Nós? Nós não vamos funcionar?
Azura não ousava olhá-lo nos olhos, por mais que ele a perseguisse para fazê-lo. O homem deu um passo à frente, mas ela desviou.
- Não vamos ter essa conversa agora - a petrichoriana deixou uma lágrima de frustração escapar enquanto tornava para a floresta. - Está bêbado.
- Eu te amo, Azura.
Aquelas palavras a desestabilizaram. Por mais que mandasse seus pés continuarem a avançar, estes mantiveram-se cravados na areia como as próprias raízes das árvores. Tornou a sentir o frio da alvorada, contrastando com as mãos quentes que a alcançaram e a giraram para ele. Düran estava outra vez próximo demais. Dessa vez, as pontas de seus dedos calmamente acariciaram o rosto da mulher e a obrigaram a olhá-lo nos olhos.
- Me diga que não me ama e eu nunca mais insisto em nós.
- Pare, Düran - Azura tentou desviar o olhar, mas ele sustentou seu rosto nas mãos firmes.
Azura livrou-se das mãos de Düran e tentou seguir para o vilarejo. Mais uma vez, foram as palavras do homem que a fizeram parar.
- Você o ama?
A mulher fechou os olhos. Não queria colocar Kohan naquela história. Obrigou as lágrimas a voltarem quando tornou a olhá-lo. Düran nunca pareceu tão perdido.
- Não tem a ver com Kohan.
- Se não estivesse com ele, Azura, estaria comigo? - Düran deu um passo à frente. Ela deu um passo para trás.
A mulher balançou a cabeça, negando.
- Não tem a ver com Kohan, Düran - repetiu.
- O que é então? - dessa vez, aproximou-se o suficiente para encurralá-la entre uma árvore e seu corpo. Azura fechou os olhos. O peito de Düran doeu ao perceber a resposta. - Não me perdoou, não é?
Os olhos cinzentos da mulher se abriram vagarosamente, revelando a dolorosa resposta.
- É duro olhá-lo todos os dias e me lembrar do dia em que finalmente me permiti me apaixonar por você, Düran - as palavras saíram mais firmes do que ela esperava. - Foi também o dia em que perdi tudo.
Por sua causa, uma voz inconsciente acrescentou. Foi então que percebeu. Por mais que quisesse perdoá-lo, não conseguia.
Düran deixou as lágrimas fervorosas escaparem ao entender. Antes que ela ameaçasse deixá-lo outra vez, Düran colou seus corpos. Azura tentou empurrá-lo, mas ele manteve-se firme. Sustentou o rosto da mulher com as duas mãos.
- Me diga que não me ama, Azura - seus lábios trêmulos sussurraram próximos aos dela. - Me diga que não me ama e nunca mais insisto em nós.
Só então Azura percebeu que o frio que sentia não vinha de fora, vinha de dentro. Nenhum agasalho conseguiria aquecê-la. Não queria magoar aquele homem, mas ele a magoou. Queria perdoá-lo, mas não conseguia. Outros tempos, lembrou-se da própria fala. Em outros tempos, certamente aquele cenário seria diferente. Soltou-lhe a resposta na ponta da língua.
- Não o amo como quer que eu te ame, Düran.
As duras palavras da mulher atravessaram o coração de Düran como uma facada. Machucaram mais do que quando quebrou a perna. Assustaram-lhe mais do que quando se viu fugindo das criaturas de Pouri. Sufocaram-lhe mais do que quando caiu no mar congelado de Vocra. As lágrimas quentes escorreram por seu rosto e só então Düran percebeu o quanto a segurava com voracidade, impedindo-a de ir embora.
- Azura? - uma voz distinta da conversa chamou-a. Ao lado deles, mas passos distante, Kohan prostrou-se. Azura olhou-o e surpreendeu-se com o arandiano. Ela o conhecia bem o suficiente para saber de sua personalidade explosiva, de seu instinto protetor e da agressividade e secura que o homem usava de arma e escudo quando sentia-se furioso. Ela viu fúria naqueles olhos, mas não viu nenhuma das outras características. Pacificamente, Kohan lhe estendeu uma das mãos, como se lhe desse espaço para negar. - Vamos?
As mãos de Düran afrouxaram-se de seu rosto. Azura viu uma bifurcação no caminho. Já estava decidida, entretanto. Desvencilhou-se das mãos de Düran e correu para a de Kohan, estendida para ela. Não olhou para trás ao deixá-lo ali, sozinho.
Düran terminou a garrafa de rum sozinho, perguntando-se se isso faria a dor ir embora pelo menos naquela noite.
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