86. Pandemônio e Cheiro de Morte
Azura sentiu como se o ar fugisse de seus pulmões por um eterno segundo. Sua mente não processava o que seus olhos viam. Antes da chama nas mãos de Ginevra se apagar por puro espanto da arandiana, Azura viu Aurèlia e Düran mergulhados na inconsciência, estendidos sobre a terra cinzenta, e teve a nítida visão do dardo nas mãos do amigo antes de um igual acertar-lhe o peito.
O mesmo som agudo e rápido de algo cortando o ar despertou todos eles de um transe. Ginevra gritou, no escuro, logo antes de ser puxada pelo cotovelo pelas fortes mãos de Alaric, que obrigou-os a correr cegamente pela floresta de Cinzas, trombando com galhos de árvores e raízes dispersas, fugindo de algo que não entendiam.
Se Kohan não tivesse puxado a petrichoriana, Azura ainda estaria lá, petrificada, pensando em um jeito de não deixar Düran e Aurèlia para trás. Mesmo assim, correu. De nada ajudaria se fosse a próxima.
Com pesar, foram obrigados a fugir. O medo era ainda mais gritante e desesperador e um turbilhão de imagens e possibilidades diferentes se passava pela cabeça dos cinco que restavam de pé.
Separaram-se involuntariamente, correndo na escuridão da mata com os braços à frente do corpo, até que não ouviram mais um ao outro. Os que conseguiram permanecer juntos foram Azura e Kohan. O homem segurava tão forte no antebraço da mulher que chegava a machucá-la, mas recusava-se a deixá-la para trás.
Tudo que ouviam agora era o ofegar um do outro. Nada mais parecia estar próximo o suficiente para machucá-los. Azura fincou os pés nas gramíneas pelas quais corriam e sentiu Kohan puxar seu braço com força, até perceber que ela parara.
- O que está fazendo?! - gritou.
- Shiu - a petrichoriana sussurrou.
O arandiano entendeu, por mais que seus instintos o mandassem correr para o mais longe dali possível. Foi só então que percebeu que seus irmãos não estavam logo atrás deles. E nem Caiden. O perturbador e corriqueiro silêncio pesou sobre eles e só então Kohan se deu conta da força com que segurava o braço de Azura. Sua mão tremia.
- Se não os vemos - a petrichoriana continuou -, não podem nos ver também.
Kohan conseguiu encontrar seus olhos, duas pérolas que brilhavam à mais amena luz que eles podiam ter antes de chamar aquilo de breu.
- Qual seu plano? - sussurrou de volta.
Azura calmamente puxou seu braço das mãos de Kohan e tirou o arco das costas. Ela logo armou uma flecha.
- Não podemos deixá-los.
O arandiano sabia que ela estava certa, por mais que quisesse protegê-la a qualquer custo. Percebeu que não se importava consigo. Mantê-la a salvo era prioridade.
Antes mesmo que Kohan pudesse erguer o facão que tirou da bainha e seguir a mulher, sentiu uma dor aguda na altura do bíceps. Resmungou e imediatamente levou a mão ao local.
- Azura - sua voz sonolenta murmurou.
A petrichoriana olhou para trás e arregalou os olhos. Viu Kohan tombar sobre os joelhos e dar-lhe uma visão perfeita da silhueta atrás dele, uma sombra escura e humana, mas cujos traços ela não conseguia distinguir.
De pavor, Azura arfou. Ele acertara Kohan e ela era a próxima. Desesperadamente correu na direção oposta, mas a escuridão outra vez lhe traiu. A mulher trombou com algo rijo, mas macio. Não era um tronco ou uma pedra. Era alguém, e quem quer que fosse já a tinha nos braços. Antes que pudesse sequer pensar em defender-se, seu raptor injetou um dos dardos em seu pescoço. De imediato, seu corpo relaxou. Foi tomada inconsciente nos braços anônimos e sua consciência perdeu-se no agora breu da floresta de Cinzas, não sem antes ver os olhos do homem que a segurava fortemente nos braços. Eram diferentes. Um, negro como a noite. Outro, claro como a neve.
Intitularia-se uma guerreira. Desde sempre, Odile amava tudo o que lhe disseram não ser digno do feitio de uma dama da realeza, muito menos de uma rainha. Andar a cavalo, lutar, perambular sozinha à noite, beber até cair. Teve poucas experiências como essas, mas usar uma espada foi sua preferida. Aprendeu tão rápido naquele dia, na praia, com o marechal, que foi mais rápida que a maré que subia todas as noites. Foi como se aquilo fizesse parte dela, como se o metal fosse uma extensão de suas mãos e que manuseá-lo lhe fosse natural como respirar. A ironia, pela qual com certeza teria rido se estivesse em outra situação, foi que aprendeu a lutar para defender a si e a Sohlon. Entretanto, quem diria?, agora estava do lado oposto e levantava essa bandeira com orgulho.
Por onde passou, Odile fez justiça. A rainha derrubou todos que ousaram bradar suas armas contra aqueles que ela defendia. Foi de encontro com a morte, mas desviou de todas as suas investidas. Era subestimada até ser temida. Sentiu-se imortal por um segundo. Um segundo tão breve que lhe foi brutalmente arrancado quando o animal que montava jogou-a para longe.
A rainha encontrou o chão em um desconfortável tombo do cavalo. Seus olhos embaçados assistiram o animal ser violentamente ferido e por pouco não pisoteá-la. Do chão, Odile encontrou novamente a espada que lhe era seu pertence aliado. Foi o momento em que finalmente conseguiu vislumbrar o que a Pedreira tornara-se.
De pé, no centro do extenso pátio, estava no cerne da batalha, do derramamento de sangue inocente. Via aquele povo lutando para viver, mas morrendo aos montes e ela de nada conseguia servir. Seu peito doeu e as lágrimas ameaçaram voltar. Não se importava de morrer ali, percebeu, mas queria ao menos poder deixar um legado maior que aquele. Queria pelo menos que Kaha pudesse fugir, que Nikki pudesse ter uma chance.
Nikki.
Quase como se os Deuses lhe escutassem, por meio de tanto alvoroço, sob as fraquíssimas chamas espalhadas pela cidade, por entre o pandemônio e o cheiro de morte, Odile o viu. Estava de costas, mas ela sabia que era ele. Lutava bravamente.
Seus passos logo se direcionaram ao homem, mas ele não a viu. Lírio correu, mais determinado que qualquer um, e a rainha percebeu que seu destino era a catedral, cuja porta estava escancarada e derrubada. Lírio a adentrou e ela o seguiu, mas não sem passar despercebida.
Se os Deuses lhe escutaram para achar Nikki em meio a tanto, o Deus das Trevas também estava presente. Este iluminou uma perversa cabeça, que encontrou seu alvo entre milhares. Roto seguiu Odile.
Lírio percebeu o quão furioso estava como os Deuses. Nada daquilo era justo. Desde pequeno, sempre acreditou nos clichês. O bem vence o mal, é uma questão de ordem universal. Isso criou raízes no fundo de sua fértil mente de garoto. Perdeu as esperanças quando perdeu sua Daisy, no dia em que atentaram contra sua vida e arrancaram sua noiva de suas mãos. Suas convicções voltaram pouco tempo atrás, quando aquela linda mulher que ele nunca deixou de amar novamente caiu em seus braços. Mas como podia o clichê ser real, o bem vencer o mal, se aquele povo que ele tanto amava e dedicava-se a proteger estava morrendo aos montes aos seus pés?
Entretanto, Lírio tinha outras preocupações. Foi logo antes da barreira ceder. Fin o encontrou. O sobrinho estava ofegante e não sabia se corria ou se chorava, mas conseguiu balbuciar poucas palavras quando o trombou no ferreiro.
- Não encontro Lili!
Aquelas palavras derrubaram Lírio. Não era para Fin estar ali. Era para ele estar longe com Lili e o pequeno Deco. Fin chorava como um bebê quando confidenciou a Nikki:
- Eu disse para ela me esperar com Deco na casa de Dante, eu disse que ia voltar...
- Onde você estava, Fin? - Nikki soou duro, como se o garoto tivesse fugido da maior de suas responsabilidades.
Fin soluçou.
- Eu fui atrás dos meus pais.
Nikki não conseguiu culpá-lo. Queria abraçá-lo, mas a hora era indevida. Estavam todos com as cabeças avoadas, ele sabia. Fin continuou:
- Ela não estava lá quando eu voltei, Nikki! - praticamente gritou, aos lamentos. - Nem ela, nem Deco!
A pressão de Lírio imediatamente caiu. Ele apoiou-se nas vigas do ferreiro para sustentar-se e pôr a cabeça no lugar. Virou de costas para Fin, tentando pensar. Tudo aquilo o inebriava. Os gritos de pavor, os sons da barricada cedendo, os lamentos de Fin, a incerteza de um futuro tão próximo.
De repente, como se uma luz se acendesse em sua mente, trazendo à tona uma vívida memória, Lírio se lembrou de uma conversa recente com a pequena Lili. Sabia exatamente onde ela estava. Voltou-se para Fin.
- Saia daqui, Fin - segurou nos ombros do sobrinho mais velho, que tremia como se o chão sob seus pés fosse se abrir.
- E Lili?
- Eu vou atrás dela. E vou levá-la de volta, eu prometo.
A barricada cedeu. As espinhas de ambos congelaram da primeira à última vértebra. Fin obedeceu. Juntou-se à duas figuras que conhecia, as davilianas ruiva e loira que encontrou por destino, e obrigou-se a continuar em frente, tentando evitar o pensamento que mais o aterrorizava: estava só.
Lírio costumava ir ali durante o dia. Amava como os vitrais da catedral conversavam com o Deus do Sol. Era como se Sonca quisesse mostrar a todos os mortais o quanto estavam ali. Os raios de sol atravessavam as rosáceas em tons de roxo e azul e vermelho em diferentes períodos do dia. De alguma maneira, não importava o horário que fosse, as estátuas dos Deuses estavam sempre iluminadas, grandes gigantes de mármore esculpidos há tanto tempo que nem ao menos sabia-se dizer ao certo quem os criou. Alguns diziam ter sido os próprios Deuses, uma memória na terra para os que ficavam.
Entretanto, aquele lugar desalumiado já não carregava magia alguma. Estava morto como o sol. Lírio empunhava a espada com tanta força que sentia as pontas dos dedos tremerem de fúria. Seus passos ecoavam por todo aquele espaço aberto, mas eram encobertos pela baderna do lado de fora. Sabia que não estava só ali dentro. Assim esperava. E esperava encontrá-la antes que alguém o fizesse.
Para sua sorte, tinha o mapa daquele lugar memorizado. Saberia seguir caminho de olhos fechados, o que era o equivalente a andar naquele breu gelado da catedral. Nikki encontrou as escadas exatamente onde previu que elas estariam. Abriu a porta, que rangeu. Era tarde para tentar encobrir seu rastro. Apenas correu degraus acima.
Odile o seguiu, mas não o alcançou. Não costumava ir à catedral. Hora ou outra pisava ali, naquele solo sagrado, mas tinha medo. Nunca admitiu nem mesmo para Nikki, mas ele sabia o motivo. A rainha fez coisas intragáveis para chegar onde chegou. Tinha medo de não ser bem-vinda em um lugar como aquele. Tinha medo de nunca ter sido perdoada pelos que a olhavam.
Todavia, naquele momento, adentrou o lugar sem medo. Não entrou procurando pelos Deuses, entrou procurando por Nikki.
Ela ouviu o ranger da porta e seus ouvidos apurados lhe disseram para onde seguir. Não percebeu que a seguiam de perto.
Lírio chegou a pensar que aquele lugar pudesse ser seguro e respeitado, sagrado, a redoma dos Deuses no Vale de Awa, mas esqueceu-se por um breve instante que aquele povo que os atacava não era mais devoto aos Deuses. Era devoto a apenas um: Pouri. O Deus das Trevas nem ao menos ganhara espaço ali. Suas poucas representações o colocavam em posição inferior aos outros. Aquele lugar que ele jurou a Lili ser seguro poderia ser na verdade o principal alvo do ataque dos soldados.
O homem ouviu passos descendo e subindo as escadas. Estava perdido, sentindo-se encurralado. Sabia que ela estava ali, só não sabia como encontrá-la. Ele entrou na primeira saleta que encontrou, uma das diversas que dividia as escadarias da catedral.
A escuridão o tomou novamente e Lírio fechou a porta com delicadeza, evitando qualquer ruído.
Quando voltou-se para o ambiente, o homem conseguiu distinguir poucos móveis que dividiam espaço com ele. A luz das tochas que entrava pelas janelas de vidro quebradas vinha de fora, da barafunda em que se transformara a Pedreira. O feno de um celeiro do outro lado da rua incendiara por completo e as chamas pareciam tocar o céu.
O homem perguntou-se como sairia dali sem ser visto. Como encontraria Lili sem gritar por ela. Toda a situação que dizia estar sob controle estava escapando por seus dedos. Queria ser forte, mas não sentia-se o suficiente. Se amasse apenas a si, poderia correr para longe e deixar uma terra inteira perecer. Mas lá estava ele.
Quando Lírio engoliu as próprias lamúrias, suas mãos já estavam novamente na maçaneta da porta, prontas para girá-la com cautela e continuar sua busca. Entretanto, um choramingo o despertou de seu transe tão abruptamente que deixou o facão cair no chão de madeira, fazendo um estrondoso barulho ecoar pela saleta.
- Merda! - praguejou para si mesmo. Rapidamente se virou para a sala e viu um movimento tão rápido de sombras que pensou ser apenas sua imaginação.
- Shiu, shiu - ouviu baixo por entre o pandemônio do lado de fora. Teve dúvidas de o quanto não inventava tudo aquilo. Para sua surpresa, todavia, um choro de bebê sobressaiu-se dentro do quarto.
Lírio viu Lili correr para o outro lado do quarto com Deco no colo. Uma portinhola a esperava ali.
- Lili! - gritou de volta para a garota. - Sou eu.
A pequena Lili parou. Olhou aliviada para o homem que recentemente aprendera a chamar de tio. Lírio reconheceu aquelas orbes azuis mesmo no escuro. Lili, ao reconhecê-lo, debulhou-se mais em lágrimas que o irmão em seus braços.
- Tio Nikki!
Nikki suspirou com alívio e Lili correu para abraçá-lo. O homem ajoelhou para envolvê-la em seus braços. Deco, entre eles, berrava em desespero.
Lírio tomou o rosto molhado de sua sobrinha em suas mãos e a olhou nos olhos. Beijou sua testa e passou uma das mãos pela cabeça de Deco. Pelo menos estavam bem.
- O que faz aqui, Lili? - Lírio segurou o choro ao vê-la assim, perdida e sendo tão adulta de tomar conta de Deco.
- Você me disse que aqui era seguro, tio Nikki - a pequena balbuciou. - Eu tava com medo, aí eu vim pra cá com o Deco, mas eles tão lá fora, tio Nikki!
- Nada é seguro agora, Lili - deu-lhe a dura notícia, acalentando seus cabelos cor de mel. - Vamos dar o fora daqui e encontrar seu irmão, ok?
A garota concordou. Um segundo fez tudo ir por água abaixo. Em um segundo, Lili olhou dos olhos de Lírio para cima de seus ombros. Em um segundo, Lili gritou. Antes que Lírio pudesse olhar para trás, sentiu a pancada em sua cabeça que o desnorteou.
Roto entrou à procura de Odile, mas encontrou outro alvo.
Nikki nunca sentiu-se tão vulnerável. Tanto se passou por sua cabeça em um mísero instante que este pareceu perdurar por minutos. Sua visão embaçou com a pancada na lateral de seu crânio e Lírio só conseguia pensar em porque não estava morto. Se todos aqueles soldados matavam sem piedade, por que ele não estava morto? Tentou alcançar a própria arma, mas percebeu com pesar que o facão caíra de suas mãos quando assustou-se com Lili e ele não voltara para buscá-lo.
Tudo o que via era escuridão e tudo o que ouvia era um zunido tão alto dentro da própria cabeça que encobria os sons do lado de fora da catedral. Mesmo assim, ele conseguia ouvir a pequena Lili berrar ainda mais alto que o irmão em seus braços.
- Não! - ouviu a voz da sobrinha, distante. Uma nova investida contra ele acometeu seu peito. Lírio tombou para trás e aos poucos o mundo tomou forma através de seus olhos. Ele viu o homem que o derrubara. - Tio Nikki!
Roto facilmente empurrou Lili para longe, tirando-a de seu caminho. A garotinha caiu sentada, desesperada, apertando ainda mais Deco em seus braços.
- Não toque nela, seu... - Lírio tentou levantar-se, apoiando-se na parede em suas costas, mas percebeu então o quão debilitado estava. A desvantagem daquela briga pesou em seus ombros. Roto mandou-o de volta para o chão com um murro no maxilar. Nikki nem ao menos conseguiu resistir.
O marechal ergueu a postura e olhou para Lírio, estendido no chão, contorcendo-se em dor e cuspindo o sangue de sua boca.
- Não sei quem é você, homem - como se não estivesse em meio a uma guerra, expressou em tom de uma conversa amistosa -, mas sei que Odile estava atrás de você.
Os gritos de Lili e Deco tomaram conta do ambiente. A garotinha, encolhida em seu canto, petrificou-se de medo. Seu porto seguro, seu tio Nikki, o homem forte que ela achava até então ser inabalável, estava tão indefeso quanto ela e seu irmão.
Lírio não esboçou resposta alguma. Tentou levantar-se novamente, mas dessa vez Roto não foi menos agressivo. O marechal ergueu a espada e depositou um corte profundo que ladeou o abdômen de Nikki.
Lírio gritou de dor sob o som das lamúrias de sua sobrinha. Caiu contra a parede outra vez, tentando engolir toda a dor, mais por seus sobrinhos que por si. Mais por Odile.
- Não sabe quem é? Vossa Majestade, a rainha? - Roto brincou. - Aquela vadiazinha traiçoeira que entrou aqui atrás de você.
Lírio processou aquelas palavras. Odile estaria ali?
- A Daisy não tá aqui! Não fala assim dela! - Lili gritou de volta. - Deixa o tio Nikki!
- Daisy? - Roto ergueu uma das sobrancelhas para a pequena, finalmente lhe dando atenção. - Daisy é sua rainha, queridinha? Odile, é?
O homem deu um passo na direção da pequena, que encolheu-se ainda mais, como se pudesse fundir-se à alvenaria.
- Fique longe dela - pausadamente, Lírio balbuciou. Junto com o sangue esvaindo-se de seu corpo, sentia também a vida ameaçando fugir. Seus dedos trêmulos tentavam estancar o sangramento, mas falhavam.
Roto ignorou-o e abaixou-se ao lado de Lili, que escondeu o rosto no colo de Deco.
- Não tenha medo, garotinha, olhe para mim - com a ponta dos dedos sujos de sangue inocente, Roto ergueu o olhar de Lili para ele. Encontrou ali seu escudo. - Vai me ajudar a achar a Daisy, hãn?
Lili tremia da cabeça aos pés.
- Não - respondeu, baixo e com medo.
- Se não vai por bem... - Roto tomou Lili pelo braço tão facilmente que poderia tirar a garota do chão se quisesse.
Lírio tentou gritar de fúria, mas não conseguiu.
Roto puxou Lili, que tentava manter Deco seguro e soltar-se ao mesmo tempo. O marechal olhou da pequena garotinha que tentava chutá-lo para o homem morrendo no chão.
- Diga tchau o tio Nikki, princesinha - Roto girou a espada em mãos, pronto para despejar o golpe que findaria a vida de Lírio.
Lili gritou.
- Não! - outro grito sobressaiu-se no recinto. Da porta escancarada, uma mulher de cabelos desgrenhados e roupas ensanguentadas tinha lágrimas nos olhos, a boca entreaberta.
Roto olhou diretamente para ela e sorriu.
- Foi mais fácil encontrá-la do que eu achei que seria, minha rainha.
Odile ouviu os gritos. Eles não vinham do lado de fora como os outros, ela sabia. Ela reconhecia aquela doce voz.
Talvez estivesse ilusionando, mas apostaria tudo que Lili precisava de ajuda. O chão sumiu sob seus pés enquanto procurava pela labiríntica catedral a origem do berreiro daquela menina. Lili devia estar longe, lembrava a si mesma. Não pode ser Lili.
Entretanto, a cena que encontrou deixou-lhe ainda mais sem eixos.
A rainha estagnou-se na porta e tentou manter a compostura, mas a visão de Nikki morrendo lhe era aterradora. Seus lábios tremiam mais que a espada em suas mãos.
- Roto - apelou para o nome do marechal -, por favor...
Odile olhou dele para Lili e Deco. Deles para Nikki. O homem que amava tentava manter os olhos abertos, mas estes, pesarosos, ameaçavam fechar a cada piscada mais longa.
Ouviu quando figuras invadiram a sala, três soldados mandados daquele homem. Roto ergueu a mão para eles, impedindo-os de continuarem a matança. Estava se divertindo com o teatro que criou. De repente, aquela expansiva sala estava minúscula para eles.
- Ah, rainha Odile... - Roto olhou de Nikki para ela, vendo os olhares de ambos se cruzarem. - Achei que tivesse mais bom gosto, afinal, ainda é casada com o rei, não é?
Odile deixou um soluço escapar.
- Roto...
- Cale a boca, mulher - ordenou. - Pare de me chamar pelo nome, isso não vai me amolecer.
- Deixe-os ir, por favor - permitiu que as lágrimas escorressem. Se seu poder não lhe ajudava ali, talvez sua submissão o fizesse.
- E o que eu ganho com isso, vossa majestade? - Roto debochou. Apertou ainda mais o braço da pequena Lili e a balançou como se uma boneca.
- É só uma criança, seu imundo! - berrou.
Roto riu, mas sua risada logo cessou. Seu olhar perverso devorou a rainha dos pés à cabeça.
- Vai fazer o que eu quiser, minha rainha? - soou ao mesmo tempo travesso e amedrontador. Odile engoliu em seco.
- Daisy... - Lírio murmurou, do chão, sem nem mais ao menos tentar levantar-se.
Odile viu-se sem escapatória.
- Eu faço o que quiser - admitiu. - Eu vou com você, mas eu tenho uma condição.
- O que quiser, minha rainha - Roto fingiu uma reverência.
A rainha olhou fundo nos olhos de Lírio antes de sentenciar seu próprio destino.
- Deixe-os ir - murmurou por entre as lágrimas. - Todos eles. Todos na Pedreira. Deixe-os ir, pare essa guerra e eu sigo vocês de bom grado.
A mão de Roto afrouxou-se do braço de Lili, que esquivou-se para perto de Nikki e afundou-se ali, pouco importando-se com o mar de sangue em que se encontrava.
Odile deixou a espada cair no chão. Se aquilo salvasse Nikki, se aquilo desse uma chance a Gaia e Kaha, se Lili e Fin ficassem bem, ela não se importaria.
Roto aproximou-se de Odile, que agora estava cercada por seus próprios guardas. Ele a olhou de cima, que não recuou ao olhar penetrante.
- Sohlon está com saudades.
Os sinos tocaram sob as ordens do marechal. Sob as mesmas ordens, a batalha cessou. O homem cumpriu com suas palavras.
Do lado de fora da catedral, a destruição tomou conta de toda uma terra. A Pedreira perecia sob as lâminas de homens que não tinham ciência alguma de empatia. Estavam cegos pela maldade que dominava-lhes os corações. Mais que isso, estavam cegos por poder.
O silêncio tomou conta das terras da Pedreira, sendo quebrado apenas pelo badalar incessante e ritmado do sino, que servia de marcha para os soldados que retiravam-se sobre seus cavalos da terra que dizimaram. Os sobreviventes choravam e lamentavam, abrindo espaço para as perversidades de Pouri retornarem para Crisântemo.
O que calou a todos, petrificando-lhes em blocos de multidões curiosas, foi ver a rainha atravessar aquela terra montada no cavalo, logo à frente do general. De cabeça erguida, esperava que soubessem o que ela fez. Não era um monstro. Não estava deixando-lhes quando as coisas apertaram. Estava sacrificando-se para que pudessem ter outra chance.
Atravessando a multidão, orgulhoso, Roto parou seu cavalo subitamente. Odile respirou profundamente e fechou os olhos, esperando para o que viria a seguir. Talvez a matasse ali mesmo, na frente de todos, e mentiria para Sohlon sobre não tê-la encontrado. Talvez mudasse de ideia e a levasse à força, continuando com a matança que tinha iniciado. Mas nada lhe apavoraria mais do que o que se sucedeu.
O marechal apontou para alguém na multidão, uma figura pálida e frágil que não viu o perigo se aproximar. Gaia enrijeceu com o pequeno Kaha nos braços, embrulhado no manto. Roto voltou-se para cochichar no ouvido da rainha, que estremeceu dos pés à cabeça.
- Aquela ali não era sua criada pessoal, rainha Odile? - o homem lembrou-se claramente de tê-la visto andando na corte. Derrubara um xícara de algo quente sobre ele quando supostamente o príncipe morrera. Ele entendeu tudo assim que viu o embrulho nos braços da mulher. Foi como se uma luz se acendesse sobre Gaia, entre todos. Roto agradeceu a Pouri.
Os olhos de Odile se arregalaram. Suas orbes apavoradas se cruzaram com as de Gaia.
- Corra - a crisantiana leu dos lábios da rainha.
- Peguem o bebê - Roto ordenou, em alto e bom som, e os fuxicos recomeçaram na Pedreira.
Gaia obedeceu, mas não foi rápida o suficiente. Logo sentiu mãos fortes puxarem seus cabelos. A garota foi ao chão, nem ao menos conseguindo defender-se com as mãos, usando-as para abraçar Kaha ainda mais. O príncipe chorou.
- Não! - Odile berrou. Sua voz soou tão esganiçada que temeu que logo sumisse. - Deixem ele em paz!
A rainha desceu do cavalo, jogando-se na terra. Roto foi obrigado a descer atrás dela. Segurou fortemente nos cabelos da mulher, puxando-a de volta.
Nenhum pedreiro ousou mover um dedo.
Odile cambaleou para trás, mas a dor em seu peito era maior. Ao ouvir os berros de Kaha, tudo o que lhe importava era salvá-lo. Aquele destino infeliz não era para ele.
Para calá-la, Roto fez o que mais desejava fazer em frente àquela plateia. Uma mão espalmou-se tão forte no rosto da rainha que ela tombou de peito para o chão, ainda chorando como uma criança.
Gaia nada conseguiu fazer. Enquanto a seguravam, outro arrancou o bebê de seus braços. Tentou ir atrás dele quando a soltaram, mas Isaac a segurou, aparecendo ao seu lado em um instante.
- Pare, Gaia - sussurrou em seu ouvido. - Ela ainda vai estar com ele.
Odile chorou. Chorou tão alto que seus berros sobrepunham-se aos de seu filho, separado dela.
Roto, impaciente, obrigou-a a subir novamente no cavalo. Foi como deixaram a Pedreira, sob os berros de mãe e filho, rainha e príncipe, pisoteando corpos e regando solo inocente com o próprio sangue daqueles que ali nasceram.
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