
80. Deuses Ou Pura Sorte
Se precisasse descrever a sensação, diria que era como renascer. O perdão do Oráculo fez com que o coração da rainha ficasse leve como plumas ao léu. Deixou aquele comércio abandonado com a cabeça mais erguida do que quando entrou. Seu lábio inferior tremia de determinação. Cássio estava morto, assim como Jacquelin. Azura e Aurèlia não estavam ali e não sabia como funcionava a defasada hierarquia da Pedreira. Qualquer que fosse, era ela quem tinha o poder ali. Ela era a rainha de todas as terras, de tudo o que o sol podia tocar, mesmo que esse andasse sumido.
Odile caminhou por entre pessoas desesperadas, saqueadores em busca de comida e remédio, andou contra a maré e mesmo assim não se deixou abalar. Seus passos a guiaram até a praça central onde tudo acontecia.
Lírio, de cima da catedral, viu-a aproximar-se do palco. Ele arfou e voltou-se para o pesado sino atrás de si. Puxou a corda e deixou que o som do sino ecoasse pela Pedreira. Todos calaram-se.
A atenção de todos os desesperados e perdidos voltou-se para o palco, instintivamente, a estrutura caindo aos pedaços que sustentava os que ousavam falar. Para a surpresa de todos, quem subiu naquele patamar foi ninguém menos que a própria rainha. Odile tirou a máscara que cobria sua boca e nariz e soube que foi reconhecida por todos os pedreiros. O sino cessou. Com palavras, o apedrejamento começou.
A rainha ouviu pacientemente. Palavras duras como rochas foram atiradas em sua direção e esta apenas fechou os olhos, inspirando profundamente, pagando seus pecados. A neve gelada que caía sobre a Pedreira a cobria dos pés à cabeça. Sentiu os cílios e cabelos carregados pelos flocos brancos. Lembrou-se que sempre quis ver a neve, mas não assim.
- Vadia!
- Genocida!
- Assassina!
- Matem ela!
- Peguem ela!
Odile abriu seus olhos. Xingaram tanto que se cansaram. A palavra era dela. Mais uma vez, a portadora das más notícias.
- Jacquelin está morta - não usou do eufemismo em suas palavras. Estas calaram os últimos indigentes. A neve frígida que persistia em ambientar o fúnebre cenário da Pedreira era a única que ainda se movimentava por entre os cidadãos. Processaram o que aquilo significava. Mais e mais, os pedreiros reuniam-se pela praça, todos voltados para o palco. Se Jacquelin estivesse morta, quem os lideraria? - E o xamã também.
- Mentirosa!
- Se eu estiver mentindo, que os Deuses me façam cair morta agora mesmo - com o tom orador e superior que aprendera a usar, Odile captou a atenção dos espectadores. - Me escutem. Precisam ouvir alguém. Se ainda quiserem me matar depois disso, eu me entrego a vocês de bom grado.
Lírio sentiu o coração palpitar. Rapidamente desceu as escadas da catedral. Esperava que Odile soubesse o que dizia. Não aguentaria perdê-la outra vez. Ouviu-a prosseguir, sua voz ecoando pelas janelas arejadas da abadia.
- Não fui uma boa pessoa - seus olhos percorriam a multidão, sem foco -, muito menos boa rainha. Mas nem sempre eu fui o monstro que fui, tratando meu próprio povo como peças em um xadrez. Eu concordei com leis estúpidas, ordens de assassinato justificáveis, e tudo porque queria que o rei fugisse da profecia de um homem sábio.
"Eu me perdi, sentada no trono, a coroa de ouro pesou em minha cabeça. Achei que faria tudo por Sohlon, até meu filho nascer. Kaha me trouxe alegrias e... e o tiraram de mim. Foi o que achei. Eu senti a dor que tanto preguei e percebi o quanto da minha humanidade eu varri para debaixo do tapete".
Que Odile sabia falar, não era dúvida alguma para ninguém. Suas palavras hipnotizaram toda uma multidão. Sua voz conseguia cruzar uma terra e suas lágrimas arrependidas soavam nas sílabas improvisadas que saíam mais de seu coração que de sua boca.
- Eu não quero mais isso - engoliu o embargo na voz. - Posso não estar lá, sentada no palácio em Crisântemo, mas eu ainda sou a rainha. E eu tenho tanto poder quanto o homem contra qual lutam, contra qual ergueram barreiras.
Cabeças concordaram com ela. A rainha reconheceu alguns rostos que se aproximavam. Gaia trazia Kaha nos braços, seu bem mais precioso. Estava seguida por sua família. Fin e Lili e Deco estavam lá também. Ela ouviu a voz da pequena chamá-la diversas vezes. Teve certeza que Lírio também estava aos pés do palco esperando por ela.
- Não peço perdão - prosseguiu -, pois sei que não mereço. Não ainda. Mas me deixem merecer. Estamos lutando uma guerra. Pessoas estão morrendo, o Vale já não é o mesmo, nem mesmo Sonca e Marama nos banham mais e eu sei como acabar com isso. Não peço perdão, mas peço um voto de fé - por entre tantas cabeças que a olhavam, dessa vez, teve certeza. Um par de olhos brancos reluziu por entre todo um povo. O Oráculo sorriu. - Me deixem ser a rainha que merecem.
Odile estava pronta para o que decidissem. Se quisessem jogá-la em uma fogueira, ela mesma atearia o fogo. Se quisessem enforcá-la, colocaria a própria corda ao redor do pescoço.
Entretanto, o silêncio foi sua maior surpresa. A resposta correu por entre olhos amedrontados que a fitavam, mas cujos donos não mais lhe xingavam. Tempos desesperados pediam por medidas desesperadas, inclusive aliados improváveis. Sem nada dizerem, deixaram que aquela mulher, agora tão parecida com eles, lhes guiasse em uma guerra que penetrava barreiras mais profundas do que conheciam.
O abrigo caiu dos céus como se os Deuses tivessem lhes ouvido - ou apenas a sorte estivesse ao favor de oito andarilhos perdidos. Caminhando na frente, Azura finalmente adentrou a floresta escura. Antes que Ginevra pudesse lhes dar uma luz amiga, a petrichoriana escorregou por um barranco. Tamanho foi o susto que levou e que deu nos outros sete. Entretanto, lá de baixo, comentou estar bem. Tinha encontrado um amontoado de pedras grandes que formavam um pequeno abrigo da nevasca. Era como uma caverna rasa, onde cabiam apenas abaixados ou sentados. Como pensaram, Deuses ou pura sorte.
Arriscando tudo, acenderam uma fogueira sob as pedras e reuniram-se ao redor dela. O mísero espaço conseguia reter calor suficiente para que dormissem sem medo de não mais acordar. O sono não estava em dia para ninguém.
A maior preocupação passou a ser Frey. Assim que chegaram, Kohan tomou-a facilmente nos braços e escorregou com ela pelo barranco. Sob as pedras, estendeu-a sobre a terra. A Kino estava desacordada. Ginevra limpou suas feridas e a deixou estável. Aurèlia obrigou-a a se hidratar e comer alguma coisa, antes que voltasse logo ao mundo dos sonhos.
Andaram horas. Aurèlia supôs que cinco, sem descanso, em um ritmo acelerado. Teriam chegado antes caso a nevasca não lhes ameaçasse roubar as vidas.
- Chefe - Düran brincou, chamando Aurèlia. A Kino ergueu as sobrancelhas, rindo -, em quanto tempo vamos retomar viagem?
Aurèlia olhou para fora. A neve caía cada vez mais fraca. Teve esperança de que logo cessasse.
- Descanse, Düran - sem olhá-lo, respondeu. Não sabia se já estava pronta para descobrir o que Cinzas lhes guardava. - O primeiro turno é meu.
- Devia descansar também.
Por mais que os olhos de Aurèlia pescassem, esta não conseguia pregá-los de modo algum. Assustou-se com as palavras de Frey. Achou que todos estivessem dormindo, principalmente ela.
Aurèlia, cuja vista desfocava-se na neve que timidamente caía do lado de fora, voltou sua atenção para dentro do pequeno abrigo. Viu seus amigos amontoados como as próprias pedras que os abrigavam, desfrutando do pouco conforto que conseguiam nos braços, colos e ombros uns dos outros. Frey, deitada do lado oposto de Aurèlia, era a única que tinha os olhos castanhos abertos, apesar de delineados por olheiras carregadas. Estava deitada no peito de Caiden, imóvel, embrulhada no lençol que não trazia muito mais calor do que o fogo e as roupas do corpo.
- Está melhor? - Aurèlia indagou.
Frey concordou vagamente com a cabeça.
- Vou sobreviver - brincou.
- Que bom. É nossa melhor arqueira.
- Quanta frieza, Aurèlia - Frey riu. - É só por isso que me quer viva, é?
- Esperava o que com um tempo desses? E claro que não, imbecil - a Kino entrou no tom pueril. - É minha irmãzinha.
- Não sou tão mais "zinha".
- Para mim, é, sim.
Frey sorriu.
- É sério, Aurèlia. Descanse.
- É você quem precisa descansar.
- Então acorde outro.
- Não preciso.
- Pare com isso - Frey brigou com a Kino.
- Com o que?
- Nos levar nas costas. Não precisa.
Aurèlia mordeu os lábios nervosamente. Seu olhar desviou para o fogo. Sabia que não conseguia esconder nada de Frey. Cresceu ao lado dela. Dormiam, por muito tempo, na mesma cama. Aurèlia queria carregar o mundo de todos nos ombros e Frey dizia que era por isso que estava sempre com torcicolo.
- Talvez eu deva dormir, sim - concordou.
- Não estou com sono - Frey levantou-se. - O próximo turno é meu.
- Só mais uma hora, Frey - Aurèlia deitou-se encolhida onde conseguiu. Seus pés saiam da caverna, mas sua cabeça repousou na perna de Düran, que nem ao menos percebeu o peso extra. - E vamos seguir caminho, okay?
Aurèlia fechou os olhos, mas Frey ainda não acabara a conversa.
- Espero que pelo menos tenham um chocolate quente em Cinzas.
Com aquelas palavras, a imaginação de Aurèlia aflorou. Até então, esperava que Cinzas fossem ruínas de uma terra morta há muito e o pássaro azul enviado de lá fora um ponto fora da curva. Se tivessem chocolate quente e camas confortáveis, ficaria mais que surpresa.
Não tinham como saber como aquela doença se disseminava. Era obra de Pouri, o Deus das trevas, nascido da própria Pedreira, o primeiro a conhecer a ganância. Por isso, se moveram para isolar os doentes e torceram para que fosse o suficiente.
Os pedreiros decidiram por ouvir a voz de uma mulher em quem pouco confiavam. Por mais que não fossem admitir de modo algum, Odile tinha convicção do que fazia e o fazia bem. Trazia-lhes alívio ter alguém a quem seguir. Logo, as descobertas que surgiram na biblioteca espalharam-se por toda aquela terra cercada. Uns estavam convictos de ser obra do Deus das trevas, outros juravam de pés juntos que era o fim dos tempos e que tudo era mera coincidência. Teorias cresceram e se espalharam, mas todas chegavam à mesma conclusão: se Pouri precisava de um pacto com um humano para tomar todo o Vale de Awa, o único que poderia lhe oferecer tanto estava sentado em seu trono em Crisântemo vendo o próprio povo perecer.
Odile reuniu-os em um chalé ao qual poucos tinham acesso. O ambiente da biblioteca, onde outrora se encontraram, era tenso e carregado de notícias fúnebres e recordações ruins. A rainha requisitou a presença das poucas pessoas em quem confiava para serem seus braços direitos. Pouco entendendo, as davilianas chegaram logo. A ruiva, a loira e a morena. Gisèle estava com olhos inchados de chorar. Estava à toa, com a mente vazia e com muito espaço para pensar em todas as possibilidades que pudessem acometer Caiden. Tereza lhe era uma âncora forte que a puxava de seus devaneios para a realidade. Caiden estava bem. Precisavam se preocupar com elas. Carú carregava Cöda como se fosse o próprio filho, não o irmão mais novo. Coli gostava de chamá-lo de tio. Achava engraçado.
- Não tinha onde deixar as crianças - murmurou para Lírio quando este abriu a porta do chalé para elas.
- Não há problema - Odile contornou-o e parou em frente a Carú. Tinha o próprio irmão nos braços, que brincava com seus cabelos como se fossem preciosos fios de ouro. A rainha passou a mão pela cabeça de Cöda, que apenas abriu a boca por reflexo. A mulher sorriu. Carú não. Não queria aquela mulher perto de seu irmão, nem de seu filho.
- Esse é seu filho, tia? - Coli, de trás de sua mãe, vislumbrou a rainha.
Odile, percebendo-o ali, abaixou-se para ficar de sua altura. Coli saiu timidamente de trás de sua mãe. Carú estava tensa como uma rocha.
- Ela não é sua tia, Coli - Carú murmurou, dura.
- Não tem problema, me chame como quiser - Odile sorriu-lhe. - É meu filho sim, querido.
- Ele parece o meu tio Cöda - Coli envergou-se para olhar Kaha. Tomou a liberdade de tocar uma das mãos do bebê. Kaha envolveu seu dedo com sua pequena mão. Coli riu. - É verdade que você é a rainha, tia?
- Sim, querido - Odile sorriu.
- Você não é como eu imaginava.
- E como me imaginava?
- Bem feia - sua inocência pueril murmurou. - Mamãe disse que você era bem maldosa e queria tirar o tio Cöda da gente.
- Coli - Carú esbravejou.
- Mas ela é legal, mamãe! Não vai tirar o tio Cöda da gente, né, tia?
A rainha, para surpresa de Carú, sorriu verdadeiramente. Passou a mão livre pelos cabelos já grandes e caindo nos olhos de Coli.
- Não, querido, não vou. Nunca.
- E por que a gente tá aqui então, tia?
Odile olhou para cima. Carú tremia e não sabia o porquê. Talvez temesse e odiasse a mulher que tentava a todo custo não esganar. A rainha levantou-se.
- Porque eu confio em sua mãe para me ajudar em uma coisinha - murmurou. Percebeu que o restante da sala observava aquela conversa. - Sei que é difícil, mas precisa confiar em mim, Carú.
- Só me deu motivos para te odiar, rainha Odile - temerosa, enfrentou-a.
- E se me der uma chance, vou te dar motivos para acreditar em mim - Odile tranquilamente informou-a.
Não obtendo resposta de Carú, a rainha saiu de sua frente. A daviliana viu o restante de um grande grupo ali. Gaia e Nafré, as irmãs de Crisântemo. Isaac, o solitário e perdido que sempre tinha um cigarro em mãos e o filho não-de-sangue ao lado, Osi. Dante, o semi-bruxo. Viorica e Azriel, os arandianos. Além de Lírio e dos sobrinhos que acabara de descobrir que tinha.
- Muito bem, rainha Odile - Nafré foi a primeira a falar. Deixou seu posto em uma cadeira de braços cruzados e deu dois passos para frente, rumo ao centro de uma roda impensadamente formada. - Você fala bem. Deve ter convencido mais da metade daquelas pessoas lá fora, surpreendente. Mas não me convenceu, rainha. Me diga aí, o que tem em mente?
Acordaram de horas de sono que mais pareceram um cochilo. Era impossível dormir bem quando tinham medo de não mais acordarem, fosse pelo frio ou por qualquer cena. As desventuras estavam em todas as esquinas e o medo não os deixava relaxar por completo.
- É impressão minha ou não está mais tão frio? - Alaric colocou a cabeça para fora daquele amontoado de pedras. A neve não mais caía, o que já dava a sensação de poderem respirar novamente.
Não estar mais nevando não significava que a temperatura aumentara.
- Como está, Frey? - Azura lhe perguntou.
A Kino estava acordada, mas com uma aparência cansada. O sangue de sua perna estava estancado, contido onde deveria estar. Não ousava olhar para a perna costurada como carne em açougue. Decidira não mais pensar em seu destino como integrante daquele grupo, o peso extra nos ombros de dois. Se os Deuses existissem, que lhe ajudassem.
- Estou melhor - respondeu.
- Vamos continuar, então - Aurèlia deu a ordem.
- Sabe em quanto tempo chegamos? - Caiden recolocou a mochila nas costas. Logo ajudou Ginevra a apagar o fogo e estendeu o lençol para Frey ao seu lado.
- Não faça perguntas difíceis - a Kino lhe respondeu. - Menos de um dia, com certeza.
- Não sobreviveríamos aí fora mais um dia, de qualquer modo - pessimista, Düran respondeu. Aproveitou do escuro para desviar de olhos revirando.
- Chegamos até aqui - Azura levantou-se, retomando seu posto do lado de fora do abrigo. Inspirou profundamente. Sentiu-se revigorada, mesmo com um sono tão desconfortável. Dormir no peito de Kohan era familiar e seguro. Estava otimista sobre o que viria a seguir. - Não me surpreenderia se chegássemos à nado em qualquer lugar.
Para quem enfrentou a nevasca de outrora, caminhar pela floresta de Vocra não era um desafio, sendo o único impeditivo o escuro que os impossibilitava de ver claramente os troncos e pedras e raízes em que trombavam e tropeçavam o tempo todo. Vocra era mais irregular que o Bosque das Lamúrias - e consideravelmente mais estreito -, mas nada os abalava àquela altura.
Frey estava desperta, sentindo-se inútil ao ser carregada por Düran e Azura. Queria poder andar, mas isso os atrasaria mais ainda.
O tempo passou rápido. Lá da frente, guiando o grupo, Aurèlia arfou, aliviada. Foi a primeira a ver a fronteira de Vocra com Cinzas.
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