79. Visita Póstuma
Por onde andava, Odile capturava a atenção. Sempre fora assim, desde jovem, quando pretendentes saltavam dos arbustos, e foi assim quando se tornou rainha, um belo troféu ao lado de Sohlon, que a exibia como se tivesse acabado de conquistar uma das jóias mais preciosas do Vale de Awa. Sua fama não foi bem-vinda na Pedreira, entretanto. Mesmo assim, a rainha não conseguia passar despercebida. Estava com roupas tão casuais que beiravam a trapos e cabelos bagunçados pelo vento inquietante. A máscara improvisada lhe cobria metade da face e de todo modo atraía olhares cada vez mais indecifráveis. Dessa vez, não saberia dizer o motivo. Talvez por estar de cabeça erguida em meio a tantos assustados e desamparados. Parecia confiante, andando com um destino definido, mas não poderia estar mais apavorada. A única diferença dela para o restante dos pedreiros era que Odile tinha respostas para as perguntas que não se calavam.
Lírio a acompanhava lado a lado. Tinham um plano formado, mas que consistia mais em uma improvisação de ambos. A espontaneidade e a persuasão de falar em público precisavam ser úteis para a rainha agora. Lírio só precisava de força para tocar um sino.
Por entre a maré desenfreada de cidadãos ao léu, a visão da rainha focou em algo. Alguém. Assustada, seus pés obrigaram-na a parar. Olhos brancos reluziram por entre a multidão, encarando-a, e desapareceram no beco à direita.
- Daisy? - Nikki a chamou, vendo-a petrificada.
- Vá indo, Nikki - encorajou-o. - Preciso confirmar uma coisa.
- O que foi?
- Confie em mim - Odile beijou-lhe a bochecha, mas seus olhos procuravam pelos que teve certeza de ter visto outrora. - Vou chegar logo.
Lírio não a contradisse. A rainha apertou o passo e o homem assistiu-a desaparecer na ruela próxima a eles, pálida como se tivesse visto um fantasma.
A ruela estreita seguia escura por caminhos bifurcados e quase labirínticos. As casas que se passavam ao seus lados eram sobrados caídos e pobres, frangalhos e lembranças do que um dia foram, pobres como os moradores. Hora ou outra, uma tocha se passava ao seu lado junto com um desesperado perdido. Ela nem ao menos sabia o que procurava ou se fora sua mente que lhe pregara uma peça.
Em uma das bifurcações da ruela, Odile olhou para o lado. Viu as costas de um homem magro e encapuzado andando rapidamente em outra direção. Ofegante, a rainha correu para alcançá-lo. Viu quando este entrou em um comércio abandonado. Não sentiu mais medo, apenas um embrulho no estômago, uma ânsia por satisfazer sua curiosidade. Sem pensar nas consequências de seguir um possível estranho para um lugar deserto e desalumiado, Odile continuou.
O vidro quebrado estalou sob seus pés. Os cacos espalhados esmigalharam-se ainda mais. A rainha olhou em volta e desejou que ao menos tivesse consigo uma tocha. Aquela escuridão não lhe facilitava a coragem de continuar em frente. Entretanto, era curiosa por natureza. Não conseguiria seguir aquele dia em frente e muito menos o plano com Lírio sem ter certeza de que não estava ficando maluca. Não se culparia se estivesse. Com certeza não era a única.
O comércio sem porta parecia um dia, em um passado não tão distante, ter sido uma taverna ou uma padaria. Odile viu uma bancada saqueada e vazia, mesas caídas e um balcão de cobrança. O silêncio ali era mortal. Parecia nem ao menos conseguir ouvir o restante dos pedreiros nas ruas próximas e movimentadas onde estava.
A rainha sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha e logo arrependeu-se daquele ato repentino de coragem.
- Olá? - arriscou.
Nem ao menos trouxe uma faca, pensou. Não devia estar aqui.
- É aí que engana-se, rainha Odile.
Odile sobressaiu-se e deixou que um pequeno ganido de espanto escapasse de seus lábios. Seus ombros se contraíram e ela deu um passo para frente, fugindo da voz que veio de trás dela, onde antes não havia nada. Uma luz acendeu-se no ambiente e projetou sua sombra na parede, atravessando o balcão e as mesas caídas. Não uma luz amarelada como o fogo das tochas, mas uma luz branca como as estrelas que um dia dançaram no céu. Acima de tudo, Odile reconheceu aquela voz inconfundível que ouviu apenas uma vez na vida, pertencente ao homem que não mereceu ter sua vida arrancada por ela.
Com os lábios trêmulos e olhos marejados, Odile voltou-se para trás com toda a cautela que ainda tinha. Não soube como o fez. Mas ele estava lá, olhando para ela com olhos brancos e pacíficos. O Oráculo de Maloo sorriu. Sorriu como sorriu quando pisou no castelo na noite em que seu filho nasceu, na noite em que o matou.
Estava ali, mas não parecia estar. Estava mais forte, o velho de cabelos brancos e barba comprida.
- Pelos Deuses... - a rainha murmurou, deixando uma lágrima escorrer. Viu que a luz branca vinha de um colar em seu peito, que reluzia como raios de sol nevados. Teve certeza que o Oráculo não estava realmente ali. Seus joelhos falharam e foram em direção ao chão. - Eu sinto muito...
A rainha cobriu o rosto como uma criança, deixando que as lágrimas escorressem por entre seus dedos e sem envergonhar-se dos soluços. Tinha tantos arrependimentos de sua vida na corte que por noites inteiras não conseguia pregar os olhos. Um dos flashes que sempre lhe voltava à mente era a cena de quando fincou a faca no abdômen do Oráculo. Assistiu-o virar pó.
- Sei o que sente, Odile. E é por isso que estou aqui.
Odile obrigou-se a erguer os olhos, mas a visão do homem machucava.
- Está mesmo aqui?
- Não, rainha. Eu sou um ser espectral. Quando me matou, me libertou de um corpo físico. Um dia, se quiser, reencarnarei em outro. Por enquanto, entretanto, não vejo motivos para tal.
- E por que não?
- Levante-se, criança - o Oráculo ordenou. Tremulamente, Odile levantou-se. Seu olhar focava o chão, todavia. Era difícil olhar para frente. - E a resposta não é óbvia? Olhe só para o Vale, rainha Odile.
- E por que voltou, Oráculo?
Um sorriso singelo estampou o rosto do Oráculo de Maloo.
- Porque, pela primeira vez, criança, eu tenho que admitir que estava errado.
As sobrancelhas de Odile se encontraram em uma feição de dúvida.
- Profecias não podem estar erradas.
- Não. A profecia está certa, mulher. O rei cairá e tudo será por culpa de um segundo nascido de família humilde. Esse futuro pode não estar tão longe, agora que parece que Vossa Majestade escolheu um lado.
Odile ofegou.
- Eu estou tão confusa...
- Sei que está, criança, mas tenho te acompanhado de perto, mesmo que não tenha me visto. Na floresta, na fazenda, cada lágrima de desespero por um filho perdido. Sentiu a própria dor que tanto pregou. Vi você proteger o que um dia quis destruir.
As lágrimas da rainha não cessaram. Não sabia que rumo tomaria aquela conversa, mas ela aceitaria seu destino de bom grado dessa vez.
- Seu povo precisa de você mais do que nunca, rainha Odile - o Oráculo prosseguiu. - Essa noite e nas próximas, mais do que nunca. São tempos obscuros, os que vivemos.
- Eles não me ouvirão - Odile murmurou.
- Eles ouvirão, Odile - o homem deu um passo à frente. - Porque, por mais que eu não tenha clareza sobre o seu futuro e o do Vale, consigo ver algo límpido como as águas de Morgana - ansiosamente, Odile esperou que ele continuasse. Assim o fez: - Uma líder nata guiará seu povo. Uma mulher forte que um dia perdeu-se, mas cujo amor abriu seus olhos e seu coração a guiou. Tenho certeza que os olhos dessa mulher eram verdes como preciosas esmeraldas - de emoção, Odile chorou com as palavras do Oráculo. - Uma guerra há muito começada terminará em breve. É o começo do fim. E a ponte para um novo início. Seja bom, seja mau. Isso apenas o destino nos dirá.
A rainha não conseguia pronunciar palavra alguma. O Oráculo de Maloo estava tão próximo que poderia encostar nele se quisesse, mas teve medo.
- Como poderão me perdoar, senhor? - sua voz embargada carregava esperanças por uma resposta.
- Do mesmo modo que eu a perdoei, rainha Odile. Do mesmo modo que fez tantos te amarem. É uma mulher forte, majestade - o Oráculo estendeu uma das mãos em direção ao rosto da rainha. Esta fechou os olhos, mas não sentiu seu toque. - Se um dia eu voltar a reencarnar, criança, quero que seja em um mundo governado por um bom coração como o seu.
Odile abriu os olhos, mas o Oráculo não estava mais lá. A luz sumira junto com ele e a mulher tornou ao escuro e silêncio fúnebres. Arfou. Um peso gigante saiu de suas costas e as lágrimas que agora escorriam eram de emoção e determinação. Se aquele homem, ou o que quer que fosse, pôde perdoá-la pelo monstro que um dia foi, o Vale também poderia.
- Vamos parar - a voz de Kohan fez-se ser ouvida por entre os urros gritantes da nevasca que os engolia cada vez mais.
- Está maluco? - Aurèlia bradou.
- Precisamos repensar antes que você nos mate, mulher! - este gritou de volta.
Por entre a sufocante e claustrofóbica atmosfera, uma luz acendeu-se entre o grupo. Ginevra abaixou-se e seus joelhos rumaram à espessa camada de neve. A chama tremeluzia em sua mão e se apagava com frequência, mas ela novamente a acendia, um truque tão antigo e que nunca achou que seria tão útil. Finalmente olharam uns nos olhos dos outros depois de horas. Os oito sobreviventes estavam com as roupas carregadas de flocos de neve pesados e todas as camadas de roupas que pegaram emprestadas da casa não pareciam ser suficientes. Quase que imediatamente, reuniram-se em um só bloco, procurando por calor humano. Alaric arriscou levantar a cabeça e segurou a touca que lhe protegia. A escuridão os envolvia e nada parecia estar por perto para servir de abrigo para aquele tempo. Ele e Caiden colocaram Frey no chão. Depois de revezarem por todos, o turno de ambos voltara. Frey desistiu de tentar ser útil e mergulhou em um sono profundo e congelante do qual teve medo de não mais acordar. Seus olhos insistiram em fazê-lo quando sentiu-se repousar na terra.
Azura embrulhou-se no abraço de Kohan e este no dela. Instintivamente, Alaric afundou-se no grupo e Caiden puxou Frey para eles, sentados na neve. Düran cedeu espaço para que Aurèlia ficasse em sua frente e desfrutassem mutuamente do calor do corpo um do outro - o que restava de ambos.
- Essa luz vai atraí-los - Alaric balbuciou, trêmulo.
- Aqueles animais seguem o som, não a luz - Düran lembrou-o.
- Estou falando dos soldados - o arandiano corrigiu-o.
- Precisamos de algum lugar para ir - Aurèlia admitiu. - Não vamos chegar a lugar nenhum desse jeito.
- A ideia de continuar sem parar foi sua - Ginevra, com a carranca fechada, esbravejou.
- E como eu ia saber que ia ter uma nevasca, porra?
- Calem a boca, estamos perdendo tempo - a voz de Azura soou abafada pelas camadas de roupa em que tentava se embrulhar. - Onde estamos?
Aurèlia percebeu que não sentia mais os dedos das mãos. Estes seguravam rigidamente o mapa que entregou à petrichoriana. Azura o estudou.
- Estamos perto do limite com Cinzas - Kohan estudou o mapa por cima de Azura.
- É um mapa desenhado à mão. Não tem escalas - Aurèlia murmurou. - Precisamos nos esquentar antes que congelemos até a morte. Não dá para continuar assim.
- Frey, como está? - Ginevra olhou para a garota. Parecia minúscula no abraço de Caiden. Seus olhos piscavam pesadamente, como se fossem fechar e não mais abrir.
- Não sinto minhas pernas - a Kino choramingou.
Alaric, não deixando que a barreira que criaram ali cedesse, puxou com cuidado as pernas de Frey para frente. Lágrimas novamente escorreram pelos olhos da Kino. Dessa vez, de medo e apenas. Uma mísera dor seria bem-vinda. Não sentia nada da cintura para baixo.
- Merda - Alaric praguejou. Suas mãos estavam ensanguentadas. Caiden arregalou os olhos e desenrolou o lençol em mãos. Branco como era, deixava o sangue de Frey evidente. - Ela está sangrando.
- Vamos continuar - Düran propôs. - Não tem nada por aqui.
- Ela está perdendo sangue, porra! - Caiden gritou.
- E o que vamos fazer por ela aqui? - o petrichoriano debateu.
Azura e Aurèlia se entreolharam enquanto os outros discutiam. Certa confidência nascera com a breve conversa que tiveram. Aurèlia não queria tomar uma decisão quanto à situação em que estavam.
- O que vamos fazer, petrichoriana? - sussurrou.
Azura olhou dela para Frey. De Frey para Kohan. Este a olhava, encorajando-a.
- Que os Deuses nos guiem - à sua fala, os outros a olharam. - Vamos acelerar. Passos rápidos e sem descanso. Vamos chegar à floresta e teremos pelo menos mais abrigo que aqui. Quando chegarmos lá, aí sim, descansamos em turnos. E cuidamos de Frey.
Um plano vago e raso.
- Podemos estar há quilômetros, Azura - Caiden, com a voz nervosa, debateu.
- Podemos estar há metros - Ginevra tentou ser otimista. Alguém precisava ser.
Um último olhar significativo despontou entre todos. Tinham muito a perder e tudo dependia da sorte e da boa vontade de Deuses que não davam as caras há tanto. Sem convicção de que sobreviveriam todos àquela jornada, continuaram.
Gradativamente, a nevasca diminuiu até tornar à mísera e inocente chuva de flocos finos que presenciaram dias atrás - ou o que achavam ser dias. Estavam enlouquecendo e sabiam. Quando se dispuseram a ir a Cinzas, sabiam que não seria um caminho simples. Não sabiam, entretanto, que seria tão árduo. Kohan e Aurèlia carregavam Frey dessa vez. Azura tomou a dianteira do pequeno grupo e tentava não pensar em como já não sentia mais as pontas dos dedos. Seu maxilar tremia como se fosse cair a qualquer descuido. Um vislumbre não tão distante acalorou seu peito: uma massa negra destoava das outras na escuridão, num horizonte distante que contrastava com o céu desalumiado. Seus ombros relaxaram e ela arfou de alívio. Logo estariam na floresta, protegidos dos ventos glaciais e da neve torturante. Logo estariam nos limites entre Vocra e a terra onde nasceu.
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