77. Constante Trajetória Até O Fim
A dor que Frey sentia era lancinante. Não só sua perna esquerda doía, como seu corpo inteiro parecia também sucumbir à gritante agonia das lacerações. Agora que os preparados de camomila de Ginevra tinham acabado - assim como a garrafa de gin e sua bebedeira - nada anestesiava seu corpo. Sentia o suor escorrer por sua testa e segurava os grunhidos de dor que ameaçavam vir todas as vezes em que tentava se sentar no sofá.
Caiden rapidamente entrou em seu campo de visão. O amigo ajoelhou-se ao seu lado vendo-a em agonia.
- Estamos indo, Frey - calmamente informou. Lágrimas nervosas escorreram do rosto da Kino, concorrendo com seu suor. - O que foi?
- Eu só vou atrasar vocês, Cai - Frey sussurrou. Percebeu que inclusive sua voz saía com dificuldade. - Eu estou pensando há horas em como resolver isso, mas eu... eu queria ser mais corajosa. Queria dizer para me deixarem aqui e voltarem por mim, mas eu não consigo nem... e aquelas coisas, Cai, eu não consigo nem fechar os olhos sem...
Caiden rapidamente limpou as lágrimas da garota.
- Não vamos te deixar para trás, Frey - tirou os fios de cabelo grudados em seu rosto. - Eu vou levar você.
- E se você precisar se defender, Cai? Eu só vou...
- Vou defender nós dois. E os outros vão nos defender. Estamos juntos nessa e você não é um peso. É minha amiga - determinado, colocou um ponto final naquela conversa. Nada que Frey dissesse o faria mudar de ideia. Ele olhou por cima do sofá onde ela estava. Os outros já estavam com os últimos preparativos, ao lado da porta de saída. - Está pronta?
Não, pensou.
- Sim - exclamou.
Até o último segundo, Frey segurou os gritos de dor quando Caiden ajudou-a a se sentar.
- Como vamos levá-la? - Ginevra, do batente da porta, indagou.
- Vou levá-la no colo - Caiden coçou a cabeça. Não lhe parecia uma boa ideia.
- Não vai ter forças por muito tempo. Vai machucá-la e vai te deixar completamente indefeso - Aurèlia, sem direcionar o olhar para eles, expôs seu ponto de vista.
- Alguma ideia melhor? - Caiden perguntou, impaciente.
- Eu tenho - Düran desceu as escadas rapidamente, pulando degraus. Tinha algo em mãos. Um lençol. Ele o estendeu para Caiden e perceberam que as quatro pontas estavam modificadas. Bem amarradas a elas, alças de mochila despontavam-se quase que perfeitamente reguladas. - Arranquei das mochilas que achei no armário. Revezamos levando ela, de dois em dois. E ainda temos as mãos livres.
Em silêncio, os outros se entreolharam.
- É uma boa ideia - Alaric contornou o sofá e tomou o lençol em mãos. Ele o estirou no chão e olhou para Frey. - Vamos te colocar aí?
A Kino concordou com a cabeça.
Alaric, sem dificuldade, levantou-a do sofá sob um grito de dor agoniante. Ela era pequena. Ele, forte. Colocou-a no chão, entre o lençol. Ela coube ali perfeitamente. Alaric e Caiden trocaram olhares. Sem nada dizerem, ergueram a Kino do chão pelas alças. Alaric colocou-as na frente do corpo e Caiden nas costas. Confortavelmente, Frey estava em uma rede.
- Foi uma bela engenhoca - Ginevra riu.
- Obrigada - Aurèlia agradeceu a Düran, que lhe sorriu em resposta.
Fisicamente, estavam prontos para abrir a porta da casa emprestada. Psicologicamente, tinham suas dúvidas.
Estavam com as respostas que tanto queriam finalmente nas mãos. O que fazer a seguir era uma nova preocupação ainda maior. Tinham um norte que parecia impossível de perseguir. Acabaram tomando decisões a curto prazo.
Viorica voltou para casa sozinha. Precisava de um tempo para ela e deitar-se na cama, fingir que nada acontecia, sentir o cheiro de Alaric no lençol que lhe passava tanto conforto. As davilianas tomaram Coli e Cöda e tornaram para seu próprio canto. Lírio e a rainha não tinham para onde ir. Tomaram o príncipe e as crianças e rumaram para a biblioteca outra vez. Aquele lugar poderia lhes servir de abrigo um pouco mais. Dante voltou para casa, sozinho, apesar de não sentir-se confortável para ficar só. Os crisantianos apenas voltaram para casa, esperando que alguém lhes dissesse o que fazer ou que pelo menos tivessem tempo para processar a catástrofe em que se encontravam antes de sucumbirem.
Dante sentiu-se solitário. Os ruídos do lado de fora de sua casa não eram mais altos que os de dentro de sua própria cabeça. Estava deitado no colchão que chamou de cama naquele mês e, por mais que se esforçasse, não escutava Frey tropeçando na mobília da sala e nem Aurèlia xingando a panela ao se queimar, preparando um chá que insistia que a faria dormir melhor, dividindo a casa com "dois idiotas". Quis sorrir com a lembrança, mas esta soou triste. Esperava que logo as duas estivessem de volta. Não sabia lidar com aquilo sozinho.
Batidas na porta da frente ecoaram por toda a casa até alcançarem seus ouvidos. Dante abriu os olhos e estes demoraram a se acostumar à fraca iluminação do quarto. Pensou estar delirando, mas o som se repetiu.
Rapidamente, o Kino saltou para fora do colchão e rumou para a porta da frente. Colocou o trapo da cortina em frente ao rosto e a abriu, no momento em que o convidado ameaçava chamar outra vez. Os olhos de Azriel estavam grandes e melancólicos.
- Azri? - Dante cerrou as sobrancelhas. Deu espaço para o arandiano entrar e fechou a porta logo em seguida. - O que foi?
Azriel tirou a própria máscara de frente do rosto. Era apenas um acessório que, até onde sabia, podia não ser eficaz contra a doença que matava as pessoas do lado de fora. Ele queria ver o rosto de Dante e queria que o Kino o visse.
- Não quis te deixar sozinho - Azriel murmurou. Não sabia ao certo se era esse o motivo de ter ido até lá.
- E Viorica?
- Viorica é solitária. Fechou a porta do quarto e está lidando com a situação sozinha. Eu, não. E você?
Dante esboçou um singelo sorriso.
- Quer um café?
Azriel tirou o casaco e acomodou-se. Estava com uma blusa por baixo que parecia apertada, de manga comprida e gola alta, mas que serviria por hora. Não podiam se dar ao luxo de escolher o que lhes caía em mãos. Sentou-se no chão ao lado do colchão do quarto de Dante. O Kino voltou minutos depois com duas xícaras de café e entregou uma a ele. Colocou-se em sua frente, recostado na parede.
O arandiano bebericou o café fervendo e fez uma careta.
- Não está bom? - Dante riu.
- Está ótimo. Eu só não estou acostumado a tomar café.
- Podia ter te dado um chá, homem.
- Eu quero gostar de tomar café - os dois riram.
A solitária vela que iluminava o quarto deixava sua luz dançar pelas paredes ao redor deles. As sombras dos dois projetavam pelos cantos.
Com as janelas fechadas e distantes das portas da rua, não ouviam o pandemônio que rolava pelas esquinas da Pedreira. Eram apenas os dois.
- Sinto muito, Dante.
A desculpa pegou o Kino de surpresa. Percebeu que Azriel o encarava de soslaio há um tempo. Seu olhar carregava uma culpa que ele não entendia.
- Pelo que está se desculpando?
Azriel deu de ombros. Deixou a xícara de lado e abraçou-se aos joelhos cruzados, puxando-os para o peito.
- Por te pressionar tanto. E por deixar tanto passar.
- Não foi o único que me pediu para ajudar. E não fiz nada que qualquer um não teria feito.
O arandiano balançou a cabeça.
- Eu teria nos poupado muita dor de cabeça se tivesse prestado mais atenção.
- Não adiantaria de nada, Azri - o Kino admitiu. - Estaríamos no mesmo pé em que estamos agora. Estaríamos igualmente ansiosos, mais cedo.
Azriel riu uma risada forçada e maldosa. Era verdade. Ficaram demorados minutos em silêncio. Assim que o café esfriou, Dante deu um gole comprido e findou a xícara.
- E o que fazemos agora? - Azriel perguntou.
Aquela era uma pergunta dolorosa para a qual não tinham respostas. Ambos olharam um nos olhos do outro e viram pesar. Estavam esperando por pessoas que não sabiam se voltariam, para se despedirem e esperarem a morte. Resistir o quanto fosse possível, mas esperar a morte. Era isso que a vida era, afinal. Uma constante trajetória até o fim. O pensamento melancólico atingiu os dois como se perfurasse-lhes os corações.
Dante viu algo a mais nos olhos do arandiano.
- O que não está me contando, Azri? - Dante devolveu-lhe a pergunta com outra.
- Como assim?
- Por que está aqui?
Azriel deu de ombros outra vez. Já devia saber que não enganaria o semi-bruxo.
- Eu só não quero ficar sozinho - admitiu.
- E por que escolheu não ficar sozinho comigo?
Outra vez, aqueles olhares se cruzaram, mas não carregavam mais o pesar de antes. Estavam mais leves e persistentes, indagadores e cheios de uma esperança que segundos atrás não existia. Não souberam dizer o porquê. Aquela conexão foi quebrada quando Azriel se levantou.
- Talvez eu devesse ir - o arandiano rumou para a cozinha com a xícara na mão. Dante precisou levantar rapidamente para alcançá-lo.
- Espere, Azri, eu não quis parecer...
- Não, eu sei, eu só... - Azriel riu, sem graça. Não sabia o que responder. Não sabia o porquê seus pés o levaram até lá quando sentiu que precisava de alguém. - Nós mal nos conhecemos, eu só...
Azriel colocou o pires sobre a bancada da cozinha e ameaçou rumar para a porta da frente. Entretanto, foi impedido. Com certo desespero, Dante o virou para ele, puxando-o pela cintura. Azriel se viu encurralado entre Dante e a bancada. Ambos estavam sem ar, com os narizes colados e os corações batendo tão forte que conseguiam senti-los no peito um do outro.
- O que está...? - Azriel gaguejou, mas foi interrompido do melhor jeito que imaginou.
Dante uniu seus lábios aos dele com desejo. Azriel cedeu. Era tudo o que o Kino precisava, saber que era correspondido. Seus instintos não costumavam falhar, mas Azriel, desde a primeira vez que o viu, ainda na clareira, lhe era um indecifrável mistério de olhos verdes. Ele afastou-se do arandiano por um segundo, mas este mostrou o porquê de ter escolhido ficar sozinho com ele. Justo com ele e mais ninguém.
Deram espaço para que suas línguas se encontrassem e relaxaram, entregando-se à volúpia que gritava ao sentirem o toque um na pele do outro. Azriel puxou-o para mais perto pelo quadril e Dante envolveu o cabelo do homem com a mão, mantendo-o perto. Em nenhum momento se separaram, nem ao menos para tirarem as roupas. Espalharam-nas pelo corredor e as últimas peças foram jogadas ao lado do colchão.
Fosse o que fosse, talvez o clima de fim de mundo, talvez algo mais, mas Dante e Azriel amaram-se até cansarem. Dormiram um ao lado do outro. Não estavam mais sozinhos.
Andar do lado de fora outra vez era assustador e não esperavam tê-lo que fazer tão cedo. A confortável redoma segura que a casa lhes propiciava era deixada para trás à medida que andavam, adentrando mais e mais a pacata e irreconhecível Vocra. A única vantagem na neve que insistia em cair era que esta encobria as pegadas que deixavam.
Aurèlia guiou ao lado de Kohan e Ginevra. Alaric e Caiden ficaram no centro do grupo, ofegando pelo esforço de levar Frey naquela rede improvisada em um terreno inclinado, subindo cada vez mais. O espaço entre eles tinha que ser calculado. Com o tempo, pegaram o ritmo. Düran e Azura mantiveram a retaguarda, em uma formação que nem ao menos foi mencionada. Foi instintivo.
- Você está bem? - Azura cochichou para o amigo ao seu lado.
Düran a olhou de soslaio.
- Por que todo mundo pergunta isso? - indagou.
- Porque você quase morreu, imbecil.
O petrichoriano riu.
- O plano foi seu.
- E você aceitou - Azura revirou os olhos.
Düran sorriu-lhe bem humorado.
- Já estive melhor. E você?
Azura bufou.
- Sabe que odeio o frio. Só é bom em Petrichor.
- É, lá era bom - o homem lembrou. Düran aproveitou de não ter sido ele quem puxou a conversa para estendê-la. - Não sei se tenho o direito de falar isso com você, mas... tenho mais medo que não consiga perguntar.
- Está sendo dramático outra vez - ofegante, repreendeu-o. - O que foi?
- O que vai fazer quando isso acabar? - obrigou-se a dizer "quando" ao invés de "se".
- Como assim? - a petrichoriana estranhou.
- É, estamos vivendo na Pedreira porque o destino nos levou para lá. Quando pudermos ditar nosso próprio destino, vai fazer o que?
A pergunta pegou Azura desprevenida. Ela abriu a boca para respondê-lo, mas viu-se confusa, no mínimo. Antes do Vale de Awa sucumbir daquele modo, tinha diversos planos. Que eram diferentes de antes de conhecer sua nova família. Que eram diferentes de quando ainda existia Petrichor.
- Eu pensava em voltar para Petrichor - admitiu. - Aquele lugar sempre foi meu paraíso e... acho que eu poderia recomeçar, reconstruir tijolo por tijolo, plantar árvore por árvore... manter viva a imagem de meu povo. Mas eu descobri que vim de Cinzas e que Nero não era meu pai biológico. Depois descobri sobre Gisèle e eu sinceramente não sei nada sobre a minha irmã ainda. E tem Kohan.
A menção do nome do arandiano feriu Düran como um soco na boca do estômago. Não mostrou seu abalo.
- Vai deixar que um homem dite o seu destino? Logo a você? - percebeu que cochichavam e que ninguém os escutava.
Azura, de prontidão, sentiu raiva daquelas palavras, mas então percebeu o caminho que Düran seguia. Tinha palavras prontas na ponta da língua. Entretanto, diferente do que faria sem pensar um mês atrás, não conseguiria machucá-lo agora.
- E você, Düran? - para o bem de ambos, não respondeu àquela pergunta. - O que vai fazer quando isso acabar?
O petrichoriano suspirou.
- Talvez eu volte para Petrichor - mordeu o lábio inferior. Seu maior desejo era ficar ao lado dela, mas aquilo o machucava cada vez mais. Düran queria mais. Queria poder tê-la nos braços como teve uma vez, na vez em que foi do céu ao inferno em uma noite, em segundos. Mas ela não o queria mais e ele não a culpava. Talvez voltar fosse o melhor que poderia fazer por ambos. - Tenho uma dívida com aquela terra.
A petrichoriana sentiu-se constrangida com a lembrança. Queria esquecer a pior noite de sua vida e o porquê de um dia ter odiado tanto Düran.
- Sozinho?
- Esperava que voltasse comigo - admitiu.
Azura sentiu um peso no peito.
- Não posso deixar tudo para trás agora, Düran - sua voz soou triste.
- O que é tudo? Aquele lugar era tudo para você.
- Era, sim. Até aquela noite.
Düran sentiu a alfinetada e perdeu a voz.
- Então vai só negar suas raízes?
- Minhas raízes não são... isso não tem nada a ver, Düran.
- Está perdendo as palavras.
- Cale a boca.
- Não - Düran enfrentou-a.
- Certo - com a voz controlada, Azura cortou o início de uma discussão. Sabia lidar com Düran. - Eu tenho uma proposta.
- Então quero ouvi-la.
Azura sorriu para si mesma. Tinha saudades das conversas sem pé nem cabeça com o amigo, que hora beiravam brigas infantis, hora eram provocações e planos para o futuro.
- Nós conhecemos o Vale de Awa, como dissemos que faríamos, não é? - indagou. Düran concordou. - Me prometeu que voltaríamos. Então te prometo voltar também.
Os olhos de Düran brilharam. Parou seus passos para procurar pelos dela. Azura olhou para ele. Estava sorrindo com seu lindo sorriso que lhe tirava do sério há tanto tempo.
- É sério? Vai voltar comigo?
- Vou - Azura concordou. - Aquela é minha terra. A gente dá vida para ela de novo. Mas eu vou levar Gisèle. E Kohan, Ginevra, Azriel. Alaric e Viorica. Talvez curtam ter um bebê ali. E aí poderíamos ser a nova Petrichor. Quem quiser, pode vir com a gente. Só nossos amigos. O que acha?
Düran viu o mesmo brilho de seus olhos refletido nos da amiga. Eram brilhantes, redondos e cinzentos como a lua, como se Marama nunca os tivesse deixado. Aquela conversa lhe despertou uma nostalgia agradável e dolorosa ao mesmo tempo. Lembrou-se de quando brincavam nas praias de Petrichor e pelas pedras do Rio Ma'h, duas crianças sonhadoras que estavam convictas em conhecer o que o Vale tinha a lhes oferecer. Mal sabiam que tudo o que precisavam já estava lá e não encontrariam nada melhor. Azura sempre teve sonhos que Düran achava ser utópicos, mas que sempre conseguiu concretizar. Aquele não seria diferente.
Abriu a boca para dizer que sim, que aquele plano era perfeito, mas o praguejar de Aurèlia e um grito de espanto de Ginevra os fez voltar a atenção para frente. O grupo parara e seus olhos focavam em algo mais à frente. Os petrichorianos apertaram o passo.
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