76. Devotos Da Tirania
O universo não lhes deu mais descanso. Aurèlia lhes prometeu oito horas, eles ganharam duas e uma surpresa desagradável.
Enquanto vestia novamente a blusa, Azura desceu as escadas para o andar debaixo com os olhos fixos na janela. As velas estavam apagadas, mas entrava luz pelo lado de fora, atravessando o vidro e banhando a sala. As vozes que ouviam vinham da escuridão da neve e, pela reação desesperada de Alaric ao interromper aquele momento íntimo, já tinham convicção de que não se tratavam dos vocranianos voltando para casa. Os soldados do rei estavam ali, dividindo com eles aquela terra deserta.
Os dois arandianos permaneceram no andar de cima, espiando pela janela do quarto onde estavam. Azura juntou-se aos outros na sala e não tardou em tomar o arco e flechas que deixara no canto novamente em mãos, armando-o e esgueirando-se até uma das janelas térreas, que percebeu dividir com Düran e Caiden.
- Estão aqui? - para confirmar, Azura cochichou.
- Sim - Düran concordou sem tirar os olhos das figuras que transitavam próximas à casa. - Soldados do rei.
Descendo as encostas de um barranco ornado por neve que ladeava as paredes do fundo da casa, figuras encapuzadas com roupas quentes e estampadas pelo brasão da Cidade de Crisântemo andavam a favor de uma fraca nevasca. Pareciam pouco se importar, como se a geada extrema e a ameaça constante de perder um membro para o frio glacial não os afligisse. Eram poucos. Os abrigados na casa contaram dez pelas tochas acesas. Poderiam ser mais. Mesmo poucos, ainda eram mais que eles.
Como se por pura mágica, as vozes dos soldados tomaram a sala. Eram tão nítidas que pareciam soar de dentro daquelas paredes bem estruturadas. À princípio, assustaram-se. Logo, entretanto, a atenção voltou-se para Ginevra. A bruxa estava escorada em um dos cantos da saleta com os olhos fechados e as palmas das mãos erguidas para cima. Usava da mesma feitiçaria simples, mas eficaz, que usou para que a Pedreira ouvisse o discurso de Azura poucos dias antes. Ouviram com atenção.
- Ainda não entendo o que estamos fazendo aqui.
- Procurando sobreviventes.
O diálogo entre eles dava-se normalmente, com vozes controladas e que não pareciam nada ofegantes. Os homens pareciam caminhar sobre nuvens ou estar em um agradável passeio no parque em um dia de bom humor de Sonca.
- Sobreviventes àquelas coisas cheias de dentes? Que os Deuses nos livrem, aquilo ali me deu pesadelos só pelas histórias.
- Eu nunca vi um pessoalmente.
- E nem vamos ver. Pouri nos protege, homens.
Dentro da casa, os cinco outros na sala se entreolharam. Aquela conversa não tinha pé nem cabeça, mais deformada que os próprios monstros que tentaram devorar-lhes as vísceras horas antes.
- Pouri? - supersticiosa como era, Frey nem ao menos gostava de pronunciar aquele nome. Tinha medo de evocar o Deus das Trevas. Ouvir aqueles homens dando graças a um ser tão profano lhe provocou arrepios na nuca e um mal estar na barriga.
- Pouri mergulhou o Vale nas trevas.
- E nos livrou delas. Seja mais grato. É por isso que ainda está andando.
- Não foi o Deus, foi o rei.
De soslaio, Aurèlia olhou para sua quase irmã. Frey estava com a feição nervosa. Era óbvio que aqueles homens sabiam de algo que eles não sabiam. Tinha a ver com as criaturas, o Deus, o rei, a morte de Sonca e Marama e conseguiam imaginar até uma ligação com Cinzas e os pássaros azuis.
- Enquanto tivermos isso aqui, somos crias de Pouri, devotos de Sohlon, irmãos. É só seguir as ordens do rei e o Vale vai logo, logo voltar a ser como merecemos. Livre de pragas.
Não ouviram ao que aquele soldado se referia. O que quer que fosse que os permitia andar tranquilamente por uma Vocra infestada de seres bestiais, interessou aos sobreviventes.
- Do que estavam falando? - Caiden verbalizou a pergunta que todos queriam fazer.
Voltaram a se reunir na sala, mas dessa vez com a sensação de que seria a última. Não teriam mais as horas restantes prometidas. Do lado de fora, a vida complicou-se.
Palavras aleatórias foram ouvidas e não conseguiam relacioná-las de modo algum. Pouri, o Deus das trevas e da profanidade. Sohlon, o rei que liderava covardemente aquelas cabeças que marchavam do lado de fora. As criaturas que não sabiam identificar e que pareciam saídas da era mais obscura do Vale. O silêncio respondeu Caiden: não tinham como saber.
- Não sei, mas quero muito saber - Aurèlia cruzou os braços, pensativa.
- No que está pensando? - Kohan apontou o queixo em sua direção.
- Que devemos pegar um deles ali e tirar informações - a Kino respondeu naturalmente, como se seu plano fosse tão óbvio que não precisaria nem ao menos ser explicado.
- E fazer o que, torturá-los? - Ginevra levantou-se da cadeira onde estava sentada para recompensar o esforço do feitiço recente. - Em troca de que? Não podemos deixá-los ir embora. Vão saber que estamos aqui.
- Uma morte rápida - Alaric soou frio. O homem rodava no dedo anelar o anel de casamento. Faria o que fosse preciso para voltar a ter Viorica nos braços, sã e salva. Isso significava que seu lado humano teria de ser mais seletivo.
- Não podemos fazer isso - Azura não conseguia ficar parada. Trançava os cabelos agora secos e trocava o peso de perna o tempo inteiro. - Não somos como eles.
- Pare de ser tão puritana, petrichoriana - Aurèlia a confrontou. - Agora que eu estava gostando de você...
Azura revirou os olhos.
- Não sou puritana. Pode me chamar de qualquer outra coisa, Aurèlia, mas tenho certeza que já acabei com mais vidas dessa gente do que você - Azura finalizou a trança e deixou-a cair sobre o peito. - Estou dizendo que não vou me rebaixar ao nível desses homens para ter respostas.
- Eles te torturaram, Azura - Düran lembrou. - E fariam de novo com qualquer um de nós.
A petrichoriana procurou por ajuda nos olhos de Ginevra, achando que esta seria mais sensata, mas a bruxa desviava de seu olhar.
- Correndo o risco de me chamarem de puritana ou o que quer que seja - Frey, ainda escorada no sofá e sem vontade alguma de levantar-se de lá outra vez, obrigou a conversa a voltar-se para seu lado -, acho que concordo com Azura. No mínimo deveríamos tentar passar despercebidos. A cidade é grande e eles não eram muitos.
- Podem ter mais - Kohan lembrou-a. - Precisamos ter a vantagem. Você não vai a lugar nenhum andando. Vamos te carregar o caminho inteiro.
- Eu posso mancar - Frey arriscou.
- Não, não consegue nem ficar em pé, Frey - Caiden repreendeu-a. - Eu levo ela.
- Nos revezamos - Alaric sugeriu.
- Isso é problema para mais tarde - Aurèlia interveio na conversa. - O que vamos fazer com aqueles caras lá fora? E se tiverem mais daquelas coisas querendo comer nossas cabeças?
- Nos diga você, Aurèlia - Ginevra, não sabendo lidar com o mau humor, provocou-a. - Você dá as ordens, lembra?
Ao invés de discutir com a bruxa, Aurèlia bufou e tomou algo na mochila rapidamente. Desdobrou o mapa que seu pai fez para ela.
- Temos pelo menos um longo dia de caminhada até Cinzas e eu acho que serão quase dois. Com Frey assim, já não sei dizer. E se o clima piorar... - a Kino estalou o pescoço. Continuou. - Vamos ser pacíficos, então. Pode ser uma boa ideia não nos descobrirem. Mas, se nos atacarem...
- Quebramos o pau - Düran finalizou.
- Exato.
- Quer dizer que nossas próximas seis horas de descanso já eram? - Frey indagou.
- Já devíamos ter ido - Aurèlia dobrou o mapa e o guardou no bolso da nova roupa. - Quinze minutos é o que consigo lhes dar. Aí, estejam na porta. Quero ter alguma vantagem.
Dia após dia, Sohlon aprendera a viver sem sua esposa e filho. O rei descobriu como usar a dor a seu favor. Dia após dia, Sohlon internalizou tudo o que um dia o caracterizaria como humano e transformou-se na obscuridade que sentava no trono todos os dias, dia após dia, pensando em como governaria um Vale que aos poucos parava de temê-lo e já não o amava há muito.
Certa noite, o rei acordou de um sono tranquilo em seu solitário aposento real e percebeu que a luz do sol ainda não entrara por sua janela. Suspirou aliviado. O brilho de Sonca no céu, nascendo todos os dias, de alguma forma lhe fazia lembrar de seu fracasso constante. Sohlon caminhou com os pés descalços até o banheiro e lavou o rosto. Assim que o enxugou, seus olhos focaram no espelho. Viu um homem cansado, como se o tempo o tivesse castigado mais que aos outros. Seu cabelo estava cortado e tentava lhe passar um ar mais jovial, mas que não lhe dizia nada sem a coroa. A falta do peso sobre seu crânio era tão gritante que por vezes Sohlon dormiu com o ornamento de ouro na cabeça como se já fosse parte do que era. Naquela noite em que olhou para o espelho, viu o brilho nos olhos desaparecer. Uma figura estava aos pés de sua cama, ele viu pelo reflexo. Era um ser desfigurado, cadavérico, com braços compridos e pernas finas, corcunda e com as feições do rosto puxadas para baixo, como se lutasse com a gravidade. Sohlon rapidamente se virou para a figura, assustado, mas não a viu mais. Em seu lugar, um formoso homem o encarava. Dessa vez, o rei não temeu.
Se parecia com ele. Parecia ter sua idade e estava vestido com um terno de cetim preto. O cabelo liso e bem desenhado era negro como a noite e seu rosto carregava uma barba bem feita. Um sorriso cínico e pretensioso no rosto distraia a visão de míseras rugas no canto dos olhos. Pouri se apresentou e viu a alma de Sohlon tão suja quanto um dia fora a sua. Foi fácil formar aquele pacto. O pacto que tirou o sol e a lua do céu, que confrontou quem vivia naquela terra, que trouxe ainda mais morte e pobreza e doenças.
Sohlon revigorou-se. Era um novo homem. Ele foi para as ruas e disse ao seu povo que a solução era simples. Mostrou no antebraço o desenho de Pouri, as runas malignas que ali se desenhavam. A salvação era clara: ajoelhar-se e dizer as palavras:
Minha alma é do Deus Pouri, minha devoção é do Rei Sohlon.
Aos que o fizeram, a marca cresceu de dentro para fora de forma dolorosa em partes aleatórias do corpo. Eram os devotos daquela tirania. Os que se recusaram tiveram que fugir de uma caçada incessante. Era o começo de uma nova era.
- Pensou no que eu disse? - Roto irrompeu pelo salão real. Sohlon estava só, como sempre estava naqueles últimos três meses. O rei contemplava o lado de fora, sua cidade banhada por tochas e com devotos a transitarem para todos os lados. Os que não tinham a marca de Pouri eram facilmente identificados. Sofriam e definhavam nas precariedades do mundo. Eram esses que a forca conhecia nas execuções diárias.
O rei voltou-se para seu amigo e marechal.
- Me diz muitas coisas, Roto. Seja mais específico.
- Sobre a rainha, meu rei.
Sohlon caminhou pelo salão e Roto viu-se obrigado a segui-lo. O marechal estava ansioso desde que o rei e Pouri fizeram história juntos. Sabia que aquele era um novo começo merecido e que ninguém poderia fazer nada para tirar isso deles. Um novo começo para o Vale significava um novo começo para o rei, para a coroa, para o povo.
- Seu povo precisa de uma rainha, Sohlon.
Aquela discussão era incessante. A rainha era Odile e eles sabiam. Sabiam onde encontrá-la e tinham certeza que estava viva, mesmo que sofresse, em algum lugar do Vale. As barreiras ao redor da Pedreira ainda estavam levantadas e aquela era a maior preocupação da Coroa. Eles logo pereceriam, mas ainda estavam lá. Eram como baratas, pragas incessantes, persistentes. E a mulher que um dia amou estava por lá, ele sabia. Só não entendia o porquê.
Enquanto Odile vivesse, seria a rainha. Era seu direito. Tinha tanto poder de fala quanto ele e isso era preocupante. Tirava mais o sono de Roto que o de Sohlon.
- O que quer que eu faça em relação a Odile, Roto? - sua voz embargou e o marechal percebeu. Aquele era um delicado assunto e que o fragilizava. - Se Odile está por aí, não será por muito tempo. Vai morrer igual morreu a petrichoriana. Não ouvimos mais falar nela. Viu o que aconteceu com Vocra? A Pedreira logo será a próxima.
- Aquela mulher é forte e você, acima de qualquer um, sabe disso. Tenho certeza que muito mais forte do que essa menina aí que nem chegamos a conhecer. O povo se agarra a tudo hoje em dia. - o marechal insistiu. - Temos que ter Odile de volta.
- Tê-la de volta? - Sohlon riu, cínico. - Achei que tivéssemos concordado em deixar o restante das terras se destruírem sozinhas. Recomeçamos aqui, eles morrem lá.
- É diferente com a Pedreira. Sohlon, se quisermos, destruímos aquele lugarzinho ainda hoje. Estão morrendo, fracos. E se Odile estiver lá...
Os pensamentos de ambos eram díspares. Roto queria trazer a rainha com a intenção de tê-la sob a vista, pronto para colocá-la na linha quando saísse. Caso recusasse a agir como tal, seria morta em frente a toda Crisântemo, igualando-se aos degenerados que não aceitavam a ditadura da coroa. Não faltariam pretendentes melhores para ocupar seu lugar e dar herdeiros ao rei. Sohlon, entretanto, tinha uma chama esperançosa no peito. Se Odile voltasse, poderia perdoá-la. Amá-la, como sempre amou. Reconquistar a mulher de sua vida. Ele já não acreditava mais em profecia alguma. Nada o derrubaria sob a proteção de Pouri. Apenas precisava do amor daquela mulher, por mais que mentisse e dissesse a si mesmo que superá-la seria fácil e uma questão de tempo.
- Você é o marechal, Roto - Sohlon verbalizou. - O exército está em suas mãos.
- E eu estou na sua - Roto lembrou. - Preciso da ordem.
Ambos se entreolharam. Roto sabia ser persuasivo.
- Faça o que tem que ser feito, Roto - o rei deu a ordem como se pedisse por seu jantar. - Destrua aquele resto de mundo. Mas seja misericordioso. Os que aceitarem Pouri no coração, que o tenham e se juntem a nós nessa nova era. E traga Odile de volta.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro