75. Obscuro Coração dos Homens
Por poucos minutos, Dante cedeu ao cansaço. Olhos ardendo, costas travadas e mau humor não ajudariam em nada naquela busca às cegas. Acordou com o som das gigantescas dobraduras da porta da biblioteca rangendo ao se abrirem. Estava no escuro do terceiro andar e despertou assustado. Logo relacionou o som a Gisèle e Tereza. Logo relacionou-o com comida.
Rapidamente levantou-se, ainda cambaleando. Esfregou os olhos e esgueirou-se nas prateleiras de livros, tropeçando em um e outro que deixou no meio do caminho. Chegou ao corrimão que lhe cercava no camarote do terceiro andar e olhou lá para baixo. Era como fitar uma piscina negra, sem fundo e sem conteúdo, que ameaçava lhe engolir. Esperou no ensurdecedor silêncio por um minuto até uma luz acender-se logo ao lado da porta. Dante distingiu Gisèle segurando uma tocha recém acesa e, ao lado dela, não apenas Tereza. Viu um, outro, distinguiu Lírio, a rainha, e mais. A biblioteca estava mais lotada que em seus dias de triunfo em um passado distante.
- O que fazem aqui? - Dante temeu soar estúpido, mas se deu a liberdade para tal. Após descer todas as escadas e encontrar-se com aquele extenso grupo com pessoas que ele apenas conhecia de vista, viu-se como o centro das atenções. Azriel e Viorica aproximaram-se atrás dele com passos silenciosos e quase inaudíveis.
Lírio cumprimentou o amigo com um abraço.
- Bom te ver bem, cara - o homem sorriu.
Dante confortou-se naquele abraço. Fosse qual fosse o motivo de estarem ali, pelo menos estavam juntos. O semi-bruxo passou os olhos pelas outras figuras que timidamente o encaravam. Em meio a tanto tormento nos últimos dias na clareira em que viveu por quase toda a vida, muitos se juntaram ao grupo. Histórias voaram com o vento quando chegaram à Pedreira, ganhando rostos à medida que os fuxicos se espalhavam. Sabia que a mulher com as queimaduras no braço era Gaia e fora a criada pessoal da rainha em um passado não tão distante. Foi quem sumiu com Kaha e foi quem o salvou de um incêndio brutal e extremista. O com cabelos cor de mel e olhos bonitos era Isaac, ele logo procurou saber. Tinha um passado triste e uma vida sozinha. Sozinha até fugir com aquelas pessoas que se tornaram o que gostava de chamar de família, apesar de pouco demonstrar. Não estaria mais feliz em Crisântemo, tinha certeza. Dante sabia que a garota mais nova de beleza estonteante era Nafré, a irmã de Gaia. Aquele cabelo loiro com cachos nas pontas parecia ter sido moldado à mão por fadas e nada o bagunçava. Aqueles olhos heterocromáticos conseguiam ser deslumbrantes mesmo à fraca luz de velas. Além daquele pequeno grupo da cidade do rei, viu uma mulher de lindos cachos negros e armados e sabia, apesar de não lembrar-se de seu nome, que aquela era a irmã mais nova de Caiden. Seu nome começava com C, ele apostaria.
- E as crianças? - Viorica indagou, aproximando-se devagar. Mesmo não tendo tido interação direta com aquelas pessoas, sabia que pelo menos dois bebês dependiam daquele grupo.
- Estão em minha casa, com Fin - Carú comentou. Gostara do garoto do extremo da Pedreira e Coli se deu bem com ele, brincando como se tudo estivesse normal. Achou que aquela interação faria bem ao seu filho e não queria ficar parada em casa sem saber o que fazer. Osi e Lili, com idades parecidas, logo se deram bem. Entretinham um ao outro.
- E o que fazem aqui? - Azriel tomou a liberdade de perguntar. Seu olhar procurou respostas nas duas davilianas.
- Eles nos seguiram - Gisèle ergueu as sobrancelhas como se quisesse reforçar sua inocência.
Dante esperou pela resposta e, por algum motivo, talvez pela necessidade de uma autoridade, seus olhos tinham enfoque na rainha. Odile percebeu.
- Não podíamos ficar de braços cruzados nos sofás empoeirados esperando o sol nascer e as pessoas pararem de morrer - a rainha pronunciou. - Nikki acha que pode ter respostas.
- Não é o primeiro que vem me procurar - Dante inclinou a cabeça para Azriel. - E sinto informar que não temos tido muito sucesso.
Gaia deu um passo à frente e olhou para cima, para o pé direito gritante e majestoso que parecia nem ao menos ter um fim.
- Esse lugar é gigantesco. Não podem ter visto tudo.
- É claro que não vimos tudo - Azriel esclareceu.
- Eram cinco - Lírio contou. - Agora somos onze.
- Podemos ajudar - a rainha concordou com a cabeça, incentivando-os. - Nos diga o que fazer, Dante.
Nem em seus sonhos mais divagantes Dante imaginou dar ordens à própria rainha. Por um segundo, não gostou daquelas pessoas ali. Antes, eram apenas ele, Azriel e Viorica, poucas pessoas para decepcionar. Depois, percebeu o quanto o povo se mobilizava para fazer alguma coisa e emocionou-se. Percebeu que seu mau humor vinha de uma fome que se arrastava por horas e o cheiro de pão fresco que invadiu suas narinas rapidamente atraiu sua atenção para a mão de Tereza. A ruiva segurava uma sacola cheia do que pareciam pequenos pães caseiros saídos do forno há pouco. Sua esperança cresceu no peito.
- É bom nos dizer logo - Isaac lembrou. - Deixamos um adolescente cuidando de três crianças e três bebês. Ou vão matar Fin antes de chegarmos ou vamos arcar com algumas cabeças rachadas.
A vida cresceu novamente dentro da biblioteca, como se essa nunca tivesse fechado. O cheiro de mofo parecia dar lugar para o aprazível cheiro de papel impresso e todos os andares estavam movimentados. De estômagos cheios e mentes abertas, aquela quase dúzia de pessoas procurava por algo que não sabiam o que era. A sensação era desesperadora.
Ao passar por um dos corredores, Dante viu a rainha colocar uma mochila nas costas e em seguida prender os compridos cabelos.
- Onde vai? - Dante arriscou a sorte.
Odile assustou-se e seus olhos verdes arregalaram-se para o Kino. Ela arfou ao vê-lo parado ali.
- Vou para casa - Odile colocou o sobretudo quente. - Deve estar uma loucura lá com as crianças e...
- Onde vai mesmo, rainha? - Dante cruzou os braços.
A mulher ergueu uma das sobrancelhas.
- Eu era melhor nisso de mentir - brincou.
- Não mentem para mim - o Kino vangloriou-se de suas habilidades.
- Certo - Odile admitiu. - Vou atrás de Cássio e Jacquelin.
- O xamã e a governante? Por quê?
- Porque estamos afundando cada vez mais e os únicos que o povo escuta estão fazendo sabe-se lá o que - Odile soou furiosa.
- Sabe que não são os únicos que tem fala lá fora, não é? - Dante lembrou-a.
- Como assim?
Ele cerrou as sobrancelhas como se a resposta fosse óbvia.
- Você é a rainha, Odile.
A mulher debochou.
- Ninguém me olha assim, menino. Se realmente me reconhecerem como uma rainha, vai ser para cortar a minha cabeça.
- E ainda assim vai lá fora sozinha?
- Eu preciso.
- E por quê?
- Porque eu...
- Se importa com seu povo - Dante concluiu. - É o que faz de você a rainha que merecemos ter - Odile ficou em silêncio. Mordeu o lábio inferior. Dante prosseguiu. - Olha, ainda não sei o que acho de você, mas alguma coisa na sua vida mudou e eu acho que tem a ver com aquele bebezinho que chama de filho.
- Talvez mais - Odile sorriu. Daisy sorriu. Seu pensamento pousou em Lírio. - Não posso perder isso, Dante.
Dante sorriu para baixo, confiante.
- Sou eu quem acho que estou perdendo alguma coisa - admitiu. - Vimos tudo.
- Ah, pelos Deuses!, às vezes a resposta está onde menos esperamos - com palavras clichês, Odile fez uma luz acender-se dentro da cabeça de Dante. Ela viu quando aqueles grandes olhos se arregalaram ainda mais. - O que foi?
O Kino lhe deu as costas e rumou a passos largos de volta por onde veio. A rainha, impaciente, seguiu-o. Deixou que a mochila novamente caísse no chão sujo da biblioteca e tomou a tocha em mãos, que quase apagou-se com a velocidade que ela rumou em direção ao homem.
- Onde menos esperamos. Deuses. - Dante repetiu consigo mesmo. - Não pode ser que...
- Pelo amor dos Deuses, Dante!, no que está pensando?
- Exatamente nisso.
- No que?
- Nos Deuses.
Odile o seguiu incessantemente até que o homem parou em uma ala que já fora explorada outrora. Os livros espalhados pelo chão lhe contavam isso.
- Já estiveram aqui - a rainha comentou.
- É, mas não souberam procurar - Dante lembrou-se das palavras de Azriel. O arandiano pesquisou os Deuses, leu sobre Sonca e Marama e a história da criação. Ele próprio estava perdido em leituras sobre planetas e doenças. A resposta podia ser muito mais óbvia do que esperavam. Esquecendo-se completamente de que lidava com a rainha, Dante tomou a tocha das mãos da mulher e iluminou os títulos daquele corredor. Histórias e mais histórias de Deuses foram escritas e reproduzidas. Ele foi afundo naquele corredor sem fim até as capas perderem a cor e ficarem cada vez mais misteriosas e obscuras. - Isso não tem a ver com os Deuses.
A rainha, seguindo-o de perto, entendeu onde aquilo chegaria. Seu peito novamente encheu-se de esperança.
- Tem a ver com um Deus.
- Pouri - Dante concordou.
Ambos se entreolharam. O Deus das trevas. Estavam tão focados nos assuntos errados que não pensaram que a mente criminal por trás daquele fatídico acidente histórico podia ser o próprio mal. Um por um, procuraram as sombrias e macabras histórias sobre Pouri nos livros proibidos da biblioteca. Leram tanto que encontraram o que procuravam.
Pouri foi bom até conhecer a maldade. Foi bom até a ganância tirar sua sanidade. Tirou a vida de Rhama e teve a sua arrancada com a mesma brutalidade, feito de Uam, o espírito vagante que vivia de perversidade. Ao subir aos céus, Uam e Pouri tornaram-se uma só entidade. E o Vale de Awa conheceu a crueldade.
Todos conheciam a cantiga, a triste história de Pouri e Rhama, Deus das trevas e Deusa da luz. Entretanto, algo ainda não estava claro.
- O que isso tem a ver com o que está acontecendo agora? - Isaac perguntou com certa impaciência.
Depois de tanto, Dante os reuniu novamente onde outrora se encontraram, aos pés das grandiosas portas de madeira da biblioteca. O Kino estava tão ansioso para mostrar aos outros o que encontrara que suas mãos tremiam e sua voz eram gaguejos nervosos.
- Deixe comigo - Odile tirou o livro de suas mãos. Por todos aqueles anos em que viveu como rainha, aprendera alguns truques. Os mais comuns eram como ser impassível e fria diante de situações cautelosas. - Estamos lidando com algo muito maior que nós aqui.
- Maior quanto? - Gaia indagou, apreensiva.
- Maior como um Deus.
Os outros se entreolharam sob a breve pausa da rainha.
- Esperem - Nafré soltou uma risada debochada. - Eu sinto muito por ser a cética aqui. Sabemos que os Deuses olham por nós e que de algum modo... estão sempre nos cercando e todo esse papo religioso, mas... bom, não sei se se lembram das aulinhas da escola, mas Deuses não têm interferência direta nas ações humanas. Não é?
- Não em muito tempo - Carú lera muito durante sua vida e era uma fiel devota dos Deuses. Sabia que o que a loira de Crisântemo falava era verdade. - Quanto mais independentes ficamos, mais nos deixaram seguir nossas vidas. Muitos inclusive chegaram a achar que estávamos sendo negligenciados e que... logo desistiriam de nós e conheceríamos o apocalipse. Está tudo nos livros. Foi o que achei que aconteceu, mas...
- Eu passei horas lendo sobre os Deuses - Azriel deu de ombros. - Eu sei até o cardápio de Morgana no dia em que ela morreu. Não há nada sobre o fim do mundo em lugar nenhum. Isso tem que ter a ver com algo além do Vale de Awa.
- Pesquisou os Deuses errados, Azri - Dante tentou ser complacente, mas mordia as unhas nervosamente. - Não estamos falando de boas facetas aqui.
- É onde entra Pouri - a rainha estendeu o livro em mãos para o arandiano, que timidamente o pegou, tão cauteloso como se tocasse em uma armadilha. - Página 364.
- Leia em voz alta - Viorica pediu.
Azriel respirou fundo e percebeu a própria respiração entrecortada ao abrir o livro pesado em suas mãos. A capa parecia de couro desgastado e nenhuma inscrição lhe dizia sobre o que se tratava. Percebeu que aquele era um livro proibido, um tema profano. Não quis mais segurá-lo. Entretanto, obrigou-se a abrir a página 364. Leu em voz alta.
- Como uma só divindade, Pouri e Uam subiram aos céus, isolando-se nos cantos onde os outros Deuses nunca os encontrariam. A lenda nos conta que Rhama procurou por todos os lugares e nunca encontrou o homem que um dia amou, mas que tão covardemente lhe tirou a vida por promessas vazias e pobres como dinheiro e poder.
"Rhama concluiu, anos depois, que Pouri só podia estar escondido em um lugar: no obscuro coração dos homens".
- Isso é lenda - Nafré balançou a cabeça.
- Deixe-o ler, menina - Lírio, quieto até então, repreendeu-a.
Azriel continuou.
- Pouri só aguarda por uma alma tão suja quanto a sua. Quando a encontrar, a abordará como Uam fez com ele, e um pacto de sangue será formado. O Vale de Awa em troca de poder.
O arandiano parou.
- Continue, Azriel, pelo amor dos Deuses - Carú mordia nervosamente as cutículas.
- Azri - Viorica o chamou. Viu o pânico nos olhos do cunhado. - O que foi?
Não obteve resposta. Temendo que os olhos do homem saltassem das órbitas e ela logo desmaiasse de angústia, tomou nas próprias mãos o livro. Continuou de onde o homem parou.
- Os dias se tornarão noites. As pragas tomarão conta das plantações. A comida perecerá e os que negam o poder mergulharão na angustiante morte. Um por um, os pássaros vão cair e os animais vão morrer. Não terão Deuses a recebê-los nos portões do céu. As criaturas de Pouri retornarão à terra e o Deus se alimentará de medo e submissão. Será o início de uma nova era de escuridão. Os que não levarem consigo as marcas de Pouri, arrependerão-se por uma eternidade.
- Um pacto? - Gaia indagou depois de tanto tempo em silêncio. Palavras nunca foram tão difíceis de processar. - Acham que é disso que se trata?
- Só pode ser isso - Lírio passou as mãos nervosamente pelos cabelos, andando de um lado para o outro, ansioso. - Não existe coincidência assim.
- E como acabamos com isso? - a rainha fechou os olhos, temendo a resposta. Sabia que, qualquer que fosse, não seria simples.
Viorica batia um dos pés no chão, como se fosse espantar toda a malevolência daquele livro em suas mãos com um gesto tão simples. Ela virou a página. Sentiu a boca seca e lembrou-se de que não bebia água desde que pisara naquela biblioteca. Prosseguiu:
- O pacto de sangue acaba com a morte de quem o fez.
- Fácil - Nafré debochou. - Achar um infeliz nesse mar de trevas e matar o cara. Simples, simples.
- Temos dicas - Azriel retornou à conversa. Queria ser útil. Não sabia como tinha deixado passar um detalhe tão importante. Antes soubesse que as respostas estavam naquele corredor em que passou horas lendo sobre mitos de Deuses e Deusas inocentes. - O que querem dizer com as marcas de Pouri?
Viorica virou o livro para eles. Um desenho com formas geométricas estava na página exposta. Intrigados, o estudaram. Apresentava linhas retas e o sol e a lua perfurados e negros, com simetrias e assimetrias.
- Quem levar isso na pele é um dos seguidores de Pouri e merece ser morto - Nafré vociferou. - Um por um, chegamos no infeliz.
- Tem mais - Dante sabia a resposta antes mesmo de finalizarem a leitura. Era por isso que seus olhos marejavam de medo. Esperou sua voz retornar para matar-lhes a curiosidade. - Só alguém com muito a oferecer pode dar tanto a Pouri.
Os onze se entreolharam.
- O que quer dizer, Dante? - Lírio pacificamente indagou.
- Quem mais teria tanto a oferecer, Lírio? - o Kino comentou.
- Acho que devemos perguntar para o seu marido, rainha - Nafré brincou com o fogo. Por mais que os olhos de Odile fervilhassem de raiva, não podia contrariá-la. Sentiu um medo gritante percorrer-lhe a espinha dorsal que pareceu instalar-se ali permanentemente. Todos a olhavam com a resposta na ponta da língua.
O rei. O pacto de Pouri era com o rei.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro