64. Brisa Glacial
Dante sentiu um calafrio percorrer sua espinha. O tempo, antes já frio, tornava-se cada vez mais execrável. Foi de consenso do Conselho que ele ficasse na Pedreira ao invés de rumar com os demais para Cinzas. Ele até preferiu aquela decisão. Disseram que era bom ter ali um quase bruxo, um sabido das homeopatias e - quase - um curandeiro. Para si mesmo, dizia concordar. Seu imo lhe gritava, entretanto, que tinha medo do lado de fora. Sempre teve. A campina onde viveu com os Kinos era um lugar seguro, mas o Bosque nunca foi, o Vale dificilmente deixará de ser, e Dante era acomodado com o mínimo de segurança que barreiras frágeis podiam lhe proporcionar.
Sentiu-se perdido. Frey o deixara por menos de cinco horas até então e ele já estava ocioso, ansioso, com a cabeça tão vazia e tão cheia. Sentiu falta da amiga e do conforto de respostas. Rapidamente levantou-se de onde estava, no pouco confortável banco daquela padoca aos pedaços, um dos poucos comércios que ainda mantinha-se de pé em meio à tanto. Um dos poucos que não desistiram e insistiram em continuar preocupados em movimentar a economia daquela tão pouco pacata terra mesmo quando nem ao menos água tinham o suficiente para todos. Era escura e fria, a padoca, diferente das que ele vira em outras regiões por aí, quando lhe era permitido explorar além do Bosque das Lamúrias. Parecia sem vida, apesar do cheiro delicioso de pão fresco que subia ao amanhecer. Tin, o dono do estabelecimento, era um homem de meia idade e os poucos cabelos grisalhos em sua cabeça pareciam mais brancos do que deveriam ser naquela idade. Fumava o dia inteiro, o que lhe envelhecera pelo menos dez anos. Dante aproximou-se da bancada, agora pouco mais aquecido pelo café com gosto de queimado e o pão macio com manteiga caseira. Vez ou outra se dava ao luxo de alimentar-se com algo saboroso. Sempre dizia que o maior prazer da vida era comer. Frey discordava. Achava que era dormir.
- São vinte pedras - Tin lançou-lhe quando este debruçou-se sobre o caixa.
Os olhos negros de Dante se arregalaram.
- Vinte? Anteontem paguei dez no mesmo pedido, seu Tin - Dante apalpou os bolsos. Tinha apenas a nota de dez pedras ali com ele, o pouco dinheiro que trouxera para matar quem lhe matava.
- É, agora são vinte, menino lá do Bosque - Tin, mal-humorado, cruzou os braços.
- Como pode dobrar o valor desse jeito, sem nem avisar? - indignado, Dante ergueu a voz, chamando atenção aqui e ali. - Eu vou lá procurar um trocado, seu Tin, mas vinte? Orra, eu não estou cagando dinheiro aqui não!
- Não vai a lugar nenhum, não, menino lá do Bosque - Dante sentiu a pesada mão de Tin agarrar seu franzino braço, puxando-o mais para perto. - Me deve dez pedras ainda.
- Mas... mas eu não tenho aqui comigo, seu Tin - o Kino empalideceu. Além do roubo que lhe era feito ali, sentiu a pesada mão de amassar pão de Tin esmigalhar seu punho. - Eu vou ali na esquina buscar mais dinheiro com um amigo, o senhor me conhece, eu estou sempre aqui e...
Tin não o deixou terminar. Puxou o punho do garoto mais para perto e fez com que Dante inclinasse o corpo sobre a bancada, segurando um grito de dor. Realmente, aqueles não eram tempos fáceis. Tomar um café na padoca da esquina podia custar-lhe a cabeça. Ele viu quando Tin levantou o facão.
- Vai ter que me deixar uma lembrança então, seu ladrãozinho de merda - Tin mirou no antebraço do garoto, que não conseguiu puxá-lo de volta. - É o que fazemos aqui na Pedreira com gente que rouba. Olho por olho, mão por café.
Dante fechou os olhos, já prevendo as lágrimas de desespero que começaram pelo rosto, quando sentiu algo - alguém - botar-se entre eles.
- Espere! Está aqui seu dinheiro, quinze pedras - um garoto moreno praticamente jogou o dinheiro amassado sobre a bancada. - Fique com o troco. Use para tratar essa sua cabeça cheia de adubo.
A mão de Tin soltou-se do punho de Dante, que rapidamente puxou o braço de volta. Tin pôs-se a contar seu dinheiro, como se nada houvesse acontecido. O garoto, entretanto, permaneceu estático como uma pedra, nem ao menos conseguindo olhar para seu salvador.
- Vamos - o outro disse, puxando-lhe pelo braço para a rua imediatamente. Ele o reconheceu. Era o irmão de Ginevra, o único que ficara para trás. Não teve tempo de conhecê-lo. - Não acredito que aquele imbecil faria aquilo. E pior, as coisas aqui estão tão sem pé nem cabeça que ele nem seria punido. Pior, ainda ia dar um jeito de se justificar!
Dante apenas o acompanhava lado a lado, tentando entender suas palavras fulas. O garoto era lindo, ele percebeu, com uma beleza exótica e olhos verdes que podiam hipnotizar caso olhasse diretamente. Não tivera ainda oportunidade de conhecê-lo. Seu nome lhe sumiu da ponta da língua.
- Azriel - como se lesse seus pensamentos, o arandiano apresentou-se. - Azri. De Arande.
Odile os viu partir com sentimentos equidistantes gritando no peito. Em outros tempos talvez tivesse ido com eles, explorando um pouco mais daquelas terras, e com certeza levaria Nikki consigo. Entretanto, ao olhar para o pequeno e indefeso bebê em seus braços, admirando-a e brincando com os próprios pés, lembrou-se o porquê de ficar. Faria qualquer coisa por Kaha, isso incluía arriscar-se na arrebatada Pedreira.
Cansou-se de esconder-se. Não mais se parecia com a rainha, mesmo que ainda fosse, por direito. Talvez fosse por isso que continuava viva e talvez fosse por isso que tantos queriam cortar-lhe a cabeça. Entretanto, Odile ainda destoava-se da multidão pela simples e pura beleza que a Deusa Aurora lhe proporcionara. Parecia a própria personificação da Deusa da beleza e do amor, agora ainda mais, quando seu sorriso cínico gradativamente tornou-se o sorriso da inocente Daisy.
O povo não esquecia fácil, todavia, e ela sabia. Antes de sair, Odile botou um lenço verde quase transparente ao redor da cabeça, tapando boca e nariz e fugindo do vento frio e cortante que parecia querer massacrá-los. Ao pisar na rua, o sol sumiu sob nuvens carregadas e quase negras, deixando a Pedreira imersa em uma escassez de luz que quase assemelhava-se à noite. Ela deixou seu filho com Gaia, recusando-se a sair com o pequenino naquela algidez da tarde. Não deu trela à conversas vazias naquele dia.
A rainha rumou para o pátio central. Apalpou no bolso o pouco dinheiro que conseguira com escambos aqui e ali. Não tivera junto a ela muitas de suas riquezas quando simplesmente deu cabo de sua vida no palacete. Se ao menos soubesse que aquele era o último cheio de mordomias, com certeza teria levado dinheiro suficiente para ao menos comer em paz. Agora, ela era como os outros. Sentia a fome do próprio povo. O mundo deu voltas, e ela merecia estar ali.
Seu estômago roncou quando tirou do bolso do fino agasalho duas fajutas notas de duas pedras. Seu coração doeu. Tinha fome, mas Kaha também tinha. Ela e Nikki se resolveriam depois.
Seus passos a levaram até uma pequena banca cheia de frutas quase bonitas na extremidade daquela imensidão aberta que era o pátio do comércio, onde tudo acontecia. Foi ali, horas antes, que tiveram notícias sobre os pássaros azuis e a ida a Cinzas.
Odile sentiu sobre ela olhares vindos daqui e dali. Ela não costumava sair sem Nikki e muito menos para onde os pedreiros aglomeravam-se. Começava a arrepender-se da irrefletida e espontânea decisão.
- Me veja um mamão, por favor - escolheu, com a voz firme e suave, olhando para a fruta alaranjada como se precisasse disfarçar um crime.
Do outro lado da banca de frutas, uma mulher com um lenço preto na cabeça e uma imagem degradante, como se fosse muito mais velha do que realmente é, a encarou. Apagou um cigarro. A carranca fechada não deu trégua em momento algum.
- Cinco pedras - resmungou, sentada em uma improvisada cadeira de caixotes velhos.
- Cinco? - Odile contou novamente as duas notas de dois na mão, como se magicamente pudesse ter se enganado ou uma nota a mais pudesse cair do céu ali em suas mãos. - Eu tenho apenas quatro... não pode me ajudar?
- Você não - a mulher respondeu rispidamente. - Pra você são cinco pedras.
Odile olhou de canto de olho. Já chamara a atenção para murmúrios ao seu lado, vislumbrando-a e reconhecendo-a. Ela sabia que aquele mísero mamão não custaria cinco pedras nem ali e nem em qualquer lugar do Vale.
- Preciso alimentar meu filho - Odile manteve sua pose. - É tudo o que tenho - a rainha pôs as duas notas sobre a bancada.
A senhora mais velha levantou-se. Olhou das notas para o rosto de Odile, impassível. Fez algo que a rainha não imaginou: cuspiu no dinheiro.
Os poucos que olhavam discretamente transformaram-se em uma platéia que encarava sem acanho.
- Limpava a bunda com nosso dinheiro suado e agora quer me pagar com essa merreca?
A rainha tremeu de ódio.
- Não sou mais aquela mulher - Odile retomou sua intimidadora pose. - Estou aqui ao lado de vocês.
- E eu ainda acho isso muito estranho, rainha de ninguém - a senhora debruçou-se sobre a bancada, deixando o rosto próximo do de Odile. - Vai nos apunhalar pelas costas logo, logo. Eu prefiro que morra de fome antes disso. Você e seu filho.
Odile aguentaria qualquer insulto sobre ela. Qualquer xingamento, qualquer infortúnio que sua vida anterior tenha lhe trazido. Talvez merecesse, em partes. Mas não aturaria nem por um segundo que colocassem Kaha no meio daquela peleja. Ela cerrou o punho, controlando-se para não reduzir aquela mulher à poeira com um simples olhar penetrante e palavras que estavam na ponta da língua.
- Cale-se, mulher.
Odile ouviu a voz vir de trás de si, da multidão que a cercava. Primeiro, achou que estivessem falando com ela. Todavia, aquela voz soou familiar.
Ela olhou para trás e sentiu o peito encher-se de alegria. Sentiu-se tão só ali, perdida naquele imenso pátio, temendo que a multidão logo a engolisse, mas aquela visão lhe encheu os olhos verdes de lágrimas aliviadas.
Ali, de pé, cortando espaço por entre curiosos, Fin sorriu-lhe timidamente.
- Ela ainda é sua rainha.
Odile perdeu a pose ali. Ela atravessou o pouco espaço entre eles e, sob o silêncio dos observadores, jogou-se nos braços do garoto que teimou em acolhê-la, mas finalmente o fez. Fin retribuiu-lhe o abraço. Um riso escapuliu dos lábios de ambos quando se reconheceram. Odile afastou-se para olhá-lo nos olhos.
Não sabia explicar como, mas naquele mísero mês, Fin ficara mais alto e tinha a sensação de que até sua voz estava mais madura. Talvez tempos difíceis como aqueles o obrigaram a amadurecer mais rápido.
- Que bom que está bem, menino - a rainha tomou seu rosto nas mãos. O sorriso de Fin desfez-se aos poucos. Ela percebeu que algo ali estava errado. O que os fizeram viajar até ali, vindos dos tão extremos da Pedreira? - O que foi, Fin?
Fin engoliu em seco. Tirou do bolso uma nota de duas pedras e colocou sobre a bancada da mulher rabugenta, que ainda os olhava. Pegou um mamão e uma maçã pelos devidos preços e nada respondeu. A mulher não insistiu por mais brigas com a rainha. O garoto tomou a mão de sua improvável amiga e aliada e saíram dali.
- Daisy!
O delicioso grito chegou aos ouvidos da rainha. Seus olhos imediatamente encheram-se de lágrimas ao vê-la correndo em sua direção. Lili, com seus olhos azuis como o mar de Marama e os cabelos cor-de-mel como se presenteados pelos próprios Deuses, correu em sua direção com os braços abertos e seu lindo vestido de cor terrosa que lhe caía tão bem.
Odile abaixou-se para tomá-la nos braços, deixando suas lágrimas escaparem. Soltou um delicioso arfar quando envolveu Lili em um abraço.
- Minha querida...
- Por que está chorando, Daisy? - a garotinha fitou suas lágrimas timidamente. - Está triste?
- Não, Lili, eu estou muito feliz! - Odile beijou as delicadas mãos da garotinha. - O que fazem aqui?
A sorridente feição da garotinha desmanchou-se. Ela olhou para seu irmão mais velho como se pedisse permissão para contar-lhe sobre o que a vida lhes reservara naqueles tempos.
- A nossa colheita lá não tá rendendo esse mês, Daisy... aí quando não sabíamos mais o que fazer, mamãe ficou doente.
- Celeste? - Odile olhou para Fin, que confirmou. - O que ela tem?
- Está ardendo em febre - Lili repetiu palavras que certamente ouviu de outra boca. - E agora ela nem consegue levantar mais. Papai quis trazer ela pra ver se algum curandeiro pode ajudar.
- E onde estão? - Odile perguntou. Lili tomou a mão de Daisy e guiou-a para uma espécie de celeiro, uma tenda grande e distante do centro onde alguns desabrigados escondiam-se do frio. Ela viu os olhares recaírem sobre ela quando adentrou o espaço, mas pouco se importou. O chão de terra lhe lembrou o lugar onde se abrigou com aquela família por um breve e aprazível período. Ela logo reconheceu a carroça de Pöli.
Odile apressou o passo e Lili correu para acompanhá-la. A rainha rapidamente abraçou Pöli antes mesmo que ele pudesse se virar para ver quem era. Ele tinha algo nos braços. Alguém. Deco resmungou. Pöli surpreendeu-se ao reconhecê-la.
- Rainha Odile...
- Não me chame assim - Odile sorriu.
- Daisy - Pöli concordou com um sorriso cansado, o qual a rainha retribuiu.
- O que tem Celeste? - a rainha passou a mão pelo pouco cabelo crescido de Deco, que ainda era tão pequeno, mas estava bem e vivo graças à ela.
Pöli, sem dizer mais nada, colocou Deco nos braços da rainha, que o acolheu e acomodou-o. O homem deu a volta na carroça e Odile o seguiu sem pestanejar.
Encontrou ali, entre a carroça e uma das paredes da tenda, uma improvisada cama de feno. Embrulhada em um cobertor surrado e encolhida em seu próprio abraço, Celeste parecia ainda menor do que era. Odile viu seus olhos se abrirem fracamente ao ouvirem sua voz. Estavam esbranquiçados, sem vida, e seus lábios já não tinham cor alguma. Estava consideravelmente mais magra.
A rainha ajoelhou-se ao seu lado com cuidado e tomou-lhe uma das mãos, a qual Celeste apertou com debilidade. Estava fria como cubos de gelo. A mãe da família nem ao menos conseguia saudá-la. Seus olhos novamente se fecharam e sua mão relaxou.
Odile voltou-se para trás ao ouvir o soluço de Pöli. Ela rapidamente levantou-se e, pasmada, procurou por seu olhar.
- Ela está muito doente, Daisy - resmungou, olhando para trás para ver se seus filhos não presenciavam seu momento de fraqueza. - Não come, não fala... não consegue mais alimentar Deco e eu não sei o que fazer.
Odile balançou o pequeno bebê nos braços, contendo as lágrimas. Deixou que Pöli continuasse.
- Viemos porque espero que alguém a ajude, mas a colheita foi um desastre esse mês. Não temos dinheiro, não temos escambo nenhum e... eu não sei o que fazer.
A rainha novamente o abraçou.
- Acalme-se, Pöli. Vamos dar um jeito - murmurou. - É minha vez de retribuir o favor. Podem ficar comigo.
- Até ela melhorar, por favor.
- O quanto quiserem - Odile concordou. - Vamos dar um jeito - repetiu.
Os dois olharam para Celeste, adormecida. Até seus cachos pareciam murchos.
Odile não soube como. Nem ao menos tinha dinheiro para comprar um mamão, quem dirá ir à procura de um curandeiro. Entretanto, estava convicta de que não descansaria até encontrar um jeito de ajudar Celeste.
As árvores naquela limiar entre Vocra e a Pedreira eram consideravelmente diferentes das do temido Bosque das Lamúrias. Lá, pouca era a luz que passava por entre a folhagem alta e espessa e a umidade era por vezes muito incômoda. Dessa vez, andando quietos por entre galhos baixos e desviando de cortantes plantas espinhentas, o grupo percebeu o quanto o ar gélido estava seco e parecia castigar suas narinas enquanto buscavam por ar. O aprazível aroma da terra úmida do Bosque não encontrava-se lá. Sob seus pés, agora, sentiam como se a terra estivesse morta.
- Quanto tempo até Vocra? - Düran foi o primeiro a fazer a pergunta que não queria calar. Ele prostrou-se ao lado de Aurèlia, que o olhou de soslaio.
A Kino respirou o ar pesadamente antes de responder.
- Nesse ritmo, passaremos a noite aqui e uma boa parte do dia de amanhã.
- Onde exatamente é aqui? - Caiden aproveitou para perguntar.
- Terra de ninguém - foi Bron quem entrou na conversa, nativo da Pedreira e melhor conhecedor de suas terras. Agiu como um guia até onde pôde, perdendo-se quando a paisagem pareceu repetir-se a cada dúzia de passos. - Não foi bem delimitado se é pertencente a Vocra ou à Pedreira, então é apenas uma pequena e pobre floresta que divide essas terras aí.
Azura olhou ao redor. Aquelas terras não lhe passavam boas vibrações. Ela observou como a folhagem parecia cada vez mais seca e caída enquanto adentravam mais e mais o território pertencente a Vocra.
- Vamos passar a noite aqui? - decidiu por confirmar.
- Espero que não tenha problema, petrichoriana - Aurèlia lhe respondeu.
Azura dessa vez não caiu em suas provocações. Estava mais apreensiva com o sentimento gritante no peito de que algo errado os esperava.
- O que acha que vamos encontrar lá? - Frey perguntou, dando saltitos até parar ao lado de Caiden. O homem a fitou.
- Em Vocra?
- Em Cinzas - a Kino ergueu as sobrancelhas, como se fosse óbvio. Vocra estava de pé há anos, enquanto não tinham registros de Cinzas desde que ela era pequenininha e precisara fugir de lá.
Caiden certamente não tinha grandes esperanças, mas ver o brilho nos olhos de Frey o impediu de matar as suas.
- Não sei - respondeu docemente. - Mas tenha certeza de que isso tem me tirado o sono.
- Nada me tira o sono - Frey espreguiçou, sentindo algumas vértebras de sua coluna estalarem prazerosamente. - Mas admito...
- Cinzas tira - Caiden completou.
- É - os olhos castanhos de Frey o pegaram de soslaio. - Obrigada por vir com a gente.
O daviliano concordou com a cabeça.
- Estava esperando um convite.
Frey riu.
- É. Acho que eu só não queria vir sozinha.
Caiden abriu a boca para falar. Você não estaria sozinha, Frey, diria, mas olhou em volta. A mais próxima dela era Aurèlia, cujos parafusos pareceram cair durante aquele pouco tempo ali. Frey deixou Dante e o xamã. Perdeu amigos caídos e mortos do fatídico dia no Bosque. Caiden era o mais próximo que ela tinha ali.
- Eu devo ter vindo só por pura formalidade - o homem brincou.
- Como assim?
- Ninguém precisa de um arqueiro melhor que você.
A Kino gargalhou, jogando a cabeça para trás.
- Até parece.
- É verdade.
- Ei, vocês dois - Aurèlia esbravejou para trás. - Falem mais baixo. Não sabemos o que tem por aqui.
Frey revirou os olhos, o que Aurèlia apenas ignorou.
- Não ligue para ela - como uma criança travessa brincando com fogo, Caiden sussurrou para a amiga ao seu lado.
- É, ela tem sido um pé no meu saco esses tempos.
- Está estressada.
- Está mudada - Frey tirou os olhos do caminho para olhar para a mulher que outrora considerava como uma irmã. Agora parecia mais uma completa estranha. - Isso não importa agora. Se chegarmos bem em Cinzas, nada importa.
Ginevra não gostava da presença de Bron. O pouco tempo em que teve possibilidade de desenvolver suas intuições foi o suficiente para saber que aquele homem não tinha um bom caráter. O jeito que olhava para eles com certeza lhe contava de sua índole. Bron mal abriu a boca durante todo o trajeto que tiveram, mas era um homem observador e esguio. Ginevra esperava que sua implicância com ele fosse apenas isso, pura questão de afinidade.
O primeiro dia causou arrependimentos não pronunciados. A viagem a pé durou até o sol começar a se pôr e a temperatura cair drasticamente. Por mais que conversas fiadas e cruzadas pudessem ter tirado-lhes o foco por alguns minutos, o restante do tempo foi da mais pura tensão, cada um com sua fértil imaginação, devaneando sobre o que viria a sair daquela expedição pouco pensada.
- Aurèlia - foi Alaric quem a chamou dessa vez. A mulher que os liderava olhou para trás. Viu o sol se pondo atrás deles e o rosto pálido de cada um dos que a seguia. - Estamos congelando.
A própria Kino não sentia os dedos dos pés e tampouco os da mão, arrependendo-se de não ter providenciado luvas antes de sair da Pedreira. Tinha pressa. Queria seguir o cronograma e chegar em Vocra o quanto antes, esperando que assim pudessem desfrutar de um pouco mais de conforto do que simplesmente acampar no meio daquela floresta gelada. Entretanto, soube imediatamente que o dia de intensa caminhada terminara ali.
- Devíamos acampar - concordou, para o alívio de todos.
- Aqui? - Düran cruzou os braços. - Não estamos próximos das cordilheiras?
Ele apontou com a cabeça para o horizonte onde podiam ver a silhueta de uma montanha que aproximava-se.
- Pode ser uma boa - Azura concordou, cruzando os braços para proteger-se da brisa que costurava a floresta.
- Certo. Aguentam mais uma hora de caminhada? - Aurèlia indagou.
- É melhor que ficar aqui - Bron olhou ao redor, como se preocupado que algo pudesse abordá-los à noite. Parecia saber de algo que não sabiam. - Vamos andando.
Demorou mais de uma hora, mas chegaram. Os pés da cordilheira destoavam drasticamente da terra onde estavam e a grande formação rochosa era de uma cor escura quase preta, uma fronteira entre aquelas terras.
Quando chegaram àquele limiar, dispersaram-se em busca de qualquer lugar que pudesse lhes servir de abrigo para a escuridão.
- Achei alguma coisa - Ginevra seguiu o ponto escuro sobre suas cabeças que capturou sua atenção, andando ao redor da montanha. Os outros a seguiram, com lábios trêmulos e expressões indecifráveis e cansadas. O peso saiu de seus ombros quando viram o que a bruxa viu.
- Uma caverna - Frey confirmou em voz alta, como se precisasse de confirmação verbal.
Não era como as cavernas que os irmãos de Arande estavam acostumados a ver, grandes e cheias de minerais que brilhavam aos olhos da coroa. Era apenas um buraco pequeno de altura menor que uma porta, onde o mais baixo entre eles provavelmente precisaria esgueirar-se para entrar.
Não estava nivelada com o chão. Era um espaço dentro da montanha onde tinham pelo menos três metros de escalada até o patamar que lhes possibilitaria a entrada. Kohan foi o primeiro a usar de seus músculos para puxar-se para cima, procurando espaços aqui e ali para os pés e mãos na formação rochosa.
- E se não for seguro? - Caiden murmurou, apenas observando de baixo o primeiro a subir.
- Eu vou descobrir, então - com a voz abafada pelo esforço, Kohan murmurou.
Azura logo o seguiu e outros depois dela, apreensivos. Estava aos pés da caverna ao lado de Kohan em um segundo. O homem estendeu a mão para ajudá-la a se levantar.
- Obrigada - limpou as mãos na roupa. Os dois trocaram olhares antes de os voltarem para o interior da caverna, abaixando-se. - E então?
- E então o quê?
- Acha seguro?
- Vamos descobrir.
Esperaram por Ginevra e o fogo que trazia nas mãos. Kohan seguiu na frente como guarda-costas da irmã. A caverna tinha a boca pequena, mas os pedregulhos os levavam para baixo em um espaço maior e mais quente, sem fim aparente, onde os únicos animais naquela entrada eram aranhas maiores que seus punhos e morcegos que amontoavam-se nas estalactites do teto.
- Vai servir para a noite - Azura deu a última palavra, olhando em volta. Antes mesmo de terminar sua sentença, Caiden e Frey já providenciavam uma fogueira.
- A noite vai ser fria - a Kino justificou-se, ouvindo o som dos sopros do vento gritarem sobre suas cabeças como almas penadas prontas para pegarem seus pés e os arrastarem para o frio glacial que o Vale de Awa via pela primeira vez em tanto tempo.
Quando a madrugada finalmente despontou e os turnos foram determinados, do lado de fora caiu o primeiro floco de neve.
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