62. Mudança de Tempos
Tinha certeza de que aquele dia não seria dos melhores, principalmente porque a ressaca que a noite passada lhe trouxera sempre lhe lembrava o quanto era fraca para bebida. Não adiantava prometer e reprometer. Logo Gisèle procuraria conforto em um destilado por aí. Cansava de dizer a si mesma que aquela não era uma solução válida e que se continuasse tão bebum, terminaria como seu tio Maurú. O pensamento a fez rir.
- O que foi? - Caiden percebeu.
- Nada. Onde vamos essas horas, Cai? - a loira mudou de assunto. Tentando ao máximo protestar às artimanhas do amigo, Gisèle acabou por ceder às suas persuasivas tentativas de tirá-la tão cedo da cama quentinha e trazê-la ali, entre as vegetações consideravelmente mais baixas do que a que estavam acostumados. Ela o seguia em direção a um campo aberto, onde a folhagem espessa e rasteira já chegava a beirar a cintura dos amigos. Gisèle olhou para o céu, vendo-o ainda com um azul acinzentado e indeciso, escuro e claro ao mesmo tempo, lutando para acordar e resistente a fazê-lo, assim como ela. - Olhe só! Nem Sonca nasceu para nós ainda.
- Disse que queria treinar - Caiden lhe respondeu, finalmente voltando-se para ela e determinando que aquele era o destino de ambos. Andaram por pelo menos vinte minutos, o que pareceu mais uma eternidade aos olhos da loira.
Gisèle revirou os olhos.
- Sim, disse que queria treinar - protestou -, não que podia me tirar da cama antes do sol nascer, Caiden!
E ela realmente queria treinar. Quando fez o pedido a Caiden, assim que chegaram à Pedreira, este estranhou. "O que quer dizer com treinar?", perguntou, e a amiga só lhe respondeu: "Me ensine a me defender, Caiden". Foi o suficiente para que o amigo insistisse em ensiná-la tudo o que sabia em qualquer tempo livre que encontrasse, aparentemente não se importando se ela estava em completas condições, como não era o caso. Caiden era diurno. Gisèle, noturna. A loira não poderia negar que agora sabia usar uma espada ou um facão, e decidiu que o tão querido arco e flecha de Caiden não era para ela. Mas o homem insistia na luta corporal.
- Vamos lá, Gis - Caiden insistiu. Seus cabelos estavam ainda mais compridos e ele quase nunca os deixava soltos, insistindo em prendê-los naquele coque que lhe caía tão bem. Acima de tudo, o homem estava preocupado. Ficou repentinamente feliz com o pedido de Gisèle, mas acabou perdendo-se em reflexões. Se ela o pedira ajuda, era por medo de não conseguir se defender quando precisasse, e ele sabia que aquela guerra não estava terminando.
Gisèle inspirou profundamente.
- Se me prometer nunca mais me acordar antes do sol para me bater eu concordo com qualquer coisa.
O estonteante sorriso de seu amigo alegrou o início daquele dia.
- Certo. Me relembre o que te ensinei então.
A loira riu. Estava pronta para voltar para casa com mais alguns hematomas aqui e ali.
Quando Gisèle bateu as costas contra a terra dura pela décima sexta vez naquela manhã ordinária, um ecoante som chegou aos seus ouvidos. Ela abriu os olhos e viu Caiden. Dessa vez, o amigo não estava com uma mão esticada em sua direção, pronta para ajudá-la a se levantar. O olhar do homem estava distante, tentando distinguir, tanto quanto ela, de onde vinha aquele som familiar.
- O que é isso? - a loira indagou, levantando-se e limpando a terra de suas roupas.
O sol já nascera, mas não os aquecia, como de costume. A manhã acabara de começar e aquele badalar perpetuava-se, distante. De onde estavam, viram algumas pessoas saírem às ruas, intrigadas como eles.
- Um sino? - Caiden indagou. Lembrou-se de ter visto um na praça central assim que chegou, mas não deu muita atenção ao objeto empoeirado na torre da catedral.
- O que acha que quer dizer? - Gisèle mordeu o canto da boca, apreensiva. Estava começando a acostumar-se com a confortável rotina daqueles cantos, onde podia dormir com Tereza, treinar com Caiden e tomar um sol com Cöda. Aquilo lhe parecia um sinal ruim.
Caiden não lhe respondeu. Apenas olhou para seu rosto com compreensão e tomou-lhe carinhosamente uma das mãos, guiando-a em direção à praça.
Kohan acordou com um sopro distante a martelar-lhe a cabeça, que intensificou-se ao abrir os olhos. Os raios de sol encontravam brechas por entre aquela pequena cabana que fizeram sobre o colchão e o homem despertou.
O arandiano voltou-se para o outro lado e instintivamente esticou um dos braços para lá, encontrando apenas um emaranhado de cobertores e uma almofada com estampa divertida, sem sinal da mulher com quem se deitou na noite passada. O som do sino o trouxe de volta à realidade.
Não tardou em levantar-se, sentindo o peito congelar. Sentiu falta de sua camisa apenas por um instante. Quando abriu vagarosamente a pequena tenda de seu refúgio, encontrou o que procurava - tanto Azura quanto sua camisa verde que ela vestia, parecendo um vestido em seu corpo. As pernas da mulher estavam desnudas e ela debruçava-se na janela, deixando o sol entrar e beijar-lhe a pele. Seus negros cabelos estavam soltos, rara visão em dias, e pendiam compridos por seus ombros até o meio de suas costas.
Kohan aproximou-se por trás da petrichoriana e a beijou no pescoço. Azura não se assustou. Sua cabeça estava em outro lugar e o sino não era uma sinfonia agradável, trazendo tanto à tona que suas olheiras delineavam seus olhos. Kohan perguntou-se se ela dormira pelo menos um pouco. Azura perguntou-se como ele conseguiu dormir.
- Temos que ir, Azura - delicadamente lembrou Kohan, enrolando os dedos em seus cabelos e tentando ser compreensivo. Sentia a respiração entrecortada da mulher apenas de encostar em suas costas.
Azura olhou para fora, para a pequena ruela que desembocava na praça central. Viu as pessoas aprontando-se para sair às ruas ao chamado do sino. Tinham que dar continuidade ao plano da noite passada. A petrichorina respirou fundo e jogou a cabeça para trás, encontrando o corpo quente de Kohan. Seus olhos se fecharam por um instante.
A mulher saiu de perto da janela e rapidamente tomou suas roupas habituais. Seus cabelos soltos foram presos em uma trança e ela vislumbrou a si mesma pelo espelho enferrujado e quebrado atrás da porta. Estava visivelmente cansada e apreensiva, já ansiando pelo que a vida lhe reservara nos dias seguintes. Ela olhou para Kohan, que a admirou o tempo inteiro com um meio sorriso no rosto. Azura forçou um em resposta.
- Então vamos.
Os pedreiros amontoavam-se na praça onde outrora se dera a festança com olhares minimamente preocupados estampados nos rostos, olhando de um para outro. Os murmúrios e fuxicos aos poucos transformaram-se em um estrondoso rebuliço, inquieto e ansioso. O sino nunca tocava por acaso, e nunca tocava por bons motivos. Na torre da catedral, viam o forte Bron puxar a corda repetidas vezes e fazer soar o metal até os cafundós da Pedreira. Em frente à catedral, Jacquelin e Cássio, lado a lado, mantiveram-se como estátuas sobre o palco aos destroços onde Düran buscava refúgio em muitas noites solitárias. Este, por sua vez, estava ao lado do palco, observando-os como se estivesse mais apreensivo que a multidão destruísse seu recanto do que com a notícia que logo sairia da boca dos líderes. Frey e Dante encontraram espaço ao seu lado.
Azura perdeu-se de Kohan, aproveitando por ser menor e conseguir atravessar a multidão com menos dificuldade, apesar dos tropeços e pisões de pé aqui e ali. Seu rumo fora certeiro e seus olhos focavam no palco. Quando finalmente conseguiu aproximar-se da beirada, viu que Cássio e Jacquelin insistiam para falar, mas os murmúrios não cessavam. Pareciam estressados e aquele sentimento prometia estender-se um pouco mais.
Azura sentiu uma mão envolver seu cotovelo com força. Seus olhos rapidamente voltaram-se para ver Aurèlia com uma expressão indecifrável. Pulando a parte das rotineiras provocações, Aurèlia apenas a puxou para mais perto de uma escada, na beirada do palco.
- Pai! - gritou, e conseguiu fazer-se ser ouvida por Cássio, o xamã.
Cássio olhou da filha para a petrichoriana, que os fitava sem entender nada, incomodada com o aperto de Aurèlia em seu braço. O xamã concordou com a cabeça em um acordo silencioso. Seu cochicho foi destinado a Jacquelin, que rapidamente olhou para as garotas aos pés da escada. Aurèlia finalmente cedeu o olhar a Azura.
- Suba lá, petrichoriana - sua voz falhou, mas Azura conseguiu compreendê-la.
- O que?
A Kino respirou fundo. Pensou em tanto que queria responder. "É surda?" era sua primeira opção, mas conteve-se. Não era hora de rivalidades infantis.
- Azura - sua voz era firme e seus olhos grandes praticamente estavam colados nos da mulher à sua frente. Por mais que quisesse ela mesma subir, sabia que não seria escutada. Não tanto quanto seria Azura -, suba nesta merda de palco e faça eles te ouvirem.
Algo na voz de Aurèlia fez a determinação crescer no peito de Azura. Sabia o esforço que a Kino fazia ao ceder aquele espaço para ela. Pelo jeito como Cássio e Jacquelin a olhavam, aquele era o plano desde o início. Com certa hesitação, a garota subiu ao palco.
Viu-se só. Apesar de Cássio e Jacquelin não terem saído de seu lado, distanciaram-se, e Azura percebeu-se perdida, com tantos a olhando, tantos a gritando, tantos alheios e assustados.
Jacquelin ergueu uma das mãos em direção à Catedral e o sino rapidamente parou, deixando a Pedreira perdida em sussurros por todos os cantos.
Azura respirou fundo, ciente de que, com o findar das badaladas, era sua a palavra. Ela esperou pacientemente até que não houvesse mais nada a interrompendo. Em dado momento, com o fim dos fuxicos, apenas o vento voraz da manhã podia ser ouvido assombrando a todos naquela praça. A garota deu um passo à frente e o som de seu calçado contra a madeira ecoou como se estivesse pelo menos dez vezes mais alto. Seu olhar rapidamente voltou-se para trás. Ao lado de Aurèlia, Ginevra a sorria de modo encorajador. Uma de suas mãos estava voltada para cima e Azura teve certeza de que era ela quem amplificava o som, beneficiando-se de seu sangue bruxo. Sorriu-lhe de volta, ansiosa e nervosa. Não tinha mais para onde fugir.
Ela olhou para frente. Todos, sem exceção, a olhavam. Antes de abrir a boca, perguntou-se como fora parar ali. Como conseguiu ser ouvida. Não foi por mérito, foi por desventura de estar presente nas revoltas significativas do Vale de Awa.
"Você foi o estopim", lembrou-se das palavras de Azriel em uma de muitas conversas. Se isso foi o suficiente para ser ouvida, então carregaria qualquer fardo com prazer.
- Os pássaros azuis não estão chegando - suas primeiras palavras gradualmente chegaram aos ouvidos dos pedreiros, como se processassem ou mesmo tentassem entender o motivo de tanto estardalhaço por conta de pássaros azuis. Ela não os culpava. Foi uma das pautas da reunião da noite anterior, aliás.
- E por que não?
- O que aconteceu com eles?
- E as mensagens do pessoal lá de fora?
- Isso é coisa da coroa?
Todas aquelas perguntas cortaram-lhe. Ela perdeu o foco e um bocado de sua paciência. Fez sua voz ser ouvida, com um empurrãozinho de sua amiga bruxa.
- Não sabemos de nada disso - aos poucos, voltaram ao silêncio original, ouvindo-a. - Sabemos que não temos comunicação alguma com qualquer um fora da Pedreira e que, o que quer que seja que esteja interceptando nossos pássaros, não é bem intencionado.
Ela não explicou mais. Não contou dos corpos dos animais na Cebola e nem como descobriram o que descobriram, mas o motivo de ela estar ali, em pé, em frente àquele povo que por algum motivo a ouvia, ainda não fora explicitado. Depois de engasgar nas próprias palavras, ela concluiu:
- E temos certeza de que encontraremos respostas em Cinzas.
Aquelas palavras foram suficientes para que o caos retornasse, e ela pescou frases aqui e ali, fechando os olhos para processá-las.
- Como?
- Cinzas é uma terra morta! Não há nada lá!
- O problema vem lá de Cinzas, eu tenho certeza.
- Como podem ter certeza?
- Isso é coisa de bruxa!
- Isso tem dedo do rei.
- É uma armadilha!
Azura cansou-se.
- Silêncio! - sua voz ecoou pelo pátio e, à medida que chegava aos ouvidos dos que a fitavam, seu pedido era atendido. Ela olhou para trás mais uma vez. Ao lado de Ginevra, Düran a encarava com olhos apreensivos e ansiosos, ao mesmo tempo encorajadores. Quando se cruzaram com os da amiga, ele concordou com a cabeça, como se a dissesse para continuar. Foi o que ela fez. - É por isso que estão aqui hoje, porque trago informes de cima - antes de continuar, fez mais uma necessária pausa. Todos entenderam onde ela chegaria antes mesmo de prosseguir. - É por isso que vamos à Cinzas.
O pronunciamento de Azura foi feito. Ela pacientemente esperou todos acalmarem-se para informá-los sobre o que queria acreditar que seria apenas uma expedição de volta para as terras onde nasceu, mas que lhe soava mal na boca do estômago. Os que ficassem deveriam manter os olhos atentos. Os tempos mudavam outra vez. O alarde foi necessário.
- Seremos poucos - encerrou -, mas os que ficam não podem cair na rotina. Não sabemos o que nos aguarda nos próximos tempos. Estejamos prontos para lutar, se for preciso.
Lírio sentiu a ternura do toque de Odile em sua mão. Soube que era ela antes mesmo de olhá-la.
Estava diferente naquela manhã, a rainha. Seus longos cabelos invejáveis estavam presos em um rabo de cavalo alto e o sol realçava seus inconfundíveis olhos verdes. Seu vestido azul cor-de-céu fora arrematado por suas mãos durante a insônia na madrugada, tapando rasgos aqui e ali. Kaha ainda dormia confortavelmente em seus braços, como se toda aquela arruaça e os sinos não pudessem incomodar seu sono digno da realeza.
Todos sabiam que aquela ali, misturada a eles, era a rainha. Foi mal vista no começo, como o esperado, mas os pedreiros pensaram nos motivos de uma mulher com tudo estar ao lado deles, os rebeldes que não ousavam deixar o rei tomar seus filhos e os matar de fome e pobreza. Mesmo que com o pé de toda a Pedreira atrás, Odile ficou.
As poucas palavras de Azura foram suficientes para que o desalento fosse disseminado como um vírus no ar pelos pedreiros. A manhã pós a festança não começou como o esperado.
- Você vai? - foi a pergunta que escapuliu dos lábios de Odile. Ela hesitou. Queria, ao invés de perguntar se ele a deixaria, pedir para que ficasse ali com ela e Kaha. Mas não podia.
- A Cinzas? - Lírio murmurou, apertando seus dedos que entrelaçavam-se com os seus. A rainha concordou com um aceno de cabeça. - Não sei.
Odile inspirou profundamente. Sabia que ele estava mentindo. Aquela notícia chegara aos seus ouvidos de forma privilegiada. Ele tivera toda a noite para pensar e Odile bem viu que, assim como ela, Lírio mal pregara os olhos.
- Nikki - a rainha soltou sua mão para repousá-la em seu rosto -, eu vou ficar. Vou ficar com meu filho.
- E quer que eu fique?
Odile sorriu mansamente.
- Não posso decidir isso por você.
- Mas quer? - Lírio insistiu.
- Não quero passar mais um segundo longe, Nikki - Daisy puxou seu rosto e juntou-lhes as testas -, mas... já não sei onde estamos mais seguros.
Seus olhos fitavam uns aos outros como se nada mais existisse ao redor deles. Odile viu um sorriso esboçar-se nos lábios daquele homem.
- Acho que vou ter que ficar então. Para te proteger, é claro.
A rainha afastou-se deles e divertidamente revirou os olhos.
- Não preciso que me defenda.
- Talvez eu precise defender o Kaha de você. Pobrezinho, quando você está com fome e sono...
- Eu fico insuportável mesmo, eu sei - brincou. - Talvez devesse ficar.
- Por Kaha, claro.
- É, por Kaha - Odile deu de ombros.
Os dois riram. Ela rapidamente selou seus lábios com um beijo voraz. Ao afastar-se, seus olhos captaram duas cenas. Primeiro, o sorriso estonteante nos lábios de Nikki. Segundo, atrás do homem, o vislumbre de uma garota com cabelos cor de mel. Por um instante, pensou que aquela pequena criatura fosse Lili. Sentiu saudades.
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