61. Tomada De Decisões
A melodia das músicas, as risadas, o bulício da multidão vigorosa, tudo o que deixava para trás ao seguir Kohan para longe da praça ficava cada vez mais distante. Como uma criança frustrada, Azura bufou. Aquela noite era tudo o que ela precisava - beber com os amigos, conversar sobre paixonites como uma adolescente apaixonada, dançar pelos ladrilhos até o frio não ser mais tão frio - e Kohan, mesmo que não pudesse culpá-lo por ser o intermediário da mensagem, veio chamá-la ao mundo real. Nada nunca era simples no Vale de Awa. Houve um tempo em que foi. Ela se perguntava se um dia voltaria a ser.
Ao apressar-se, Azura alcançou Kohan, cujos passos eram o dobro dos dela. Eram seguidos por Düran, a convite dela, que não aproximou-se o suficiente para ouvi-los, e uma Ginevra bêbada, que insistiu em segui-los ao achar ser importante. Talvez fosse, mas não no estado em que estava.
- O que houve? - Azura indagou ao arandiano, cochichando como se perguntasse o segredo de um cofre.
Kohan não a olhou. Ele inspirou o ar gelado profundamente. Parecia nervoso, irritadiço, talvez ansioso. Azura aprendera a lê-lo, ainda que por tantas vezes aquele homem lhe fosse um mistério.
- Ainda não sei - respondeu, por fim. - Frey me encontrou na porta de casa antes de eu conseguir dar sequer um passo para fora. Disse para eu te chamar e correr para a Cebola.
A Cebola era uma estrutura de bancos de cimento espiralados distante das labirínticas ruas e vielas da Pedreira, aproximando-se já das barricadas levantadas contra o lado de fora da terra, sua divisória com o Bosque das Lamúrias e seus segredos. Aquele nome lhe parecera ideal, passado de boca em boca. Visto de cima, o lugar parecia uma cebola cortada ao meio.
Depois de incansáveis minutos andando em silêncio, apreensivos, os quatro adentraram partes pouco habitadas da Pedreira, escuras e abandonadas, ocupadas por necessitados e desabrigados assim como eles quando chegaram. Àquela distância, o vento cortante era mais barulhento que o som do festejo no centro, que agora parecia-lhes mais um sopro, uma ilusão distante daquela realidade assombrosa.
Quando a terra aos seus pés enrijeceu-se e pareceu seca e morta, os quatro se encontraram com outras silenciosas figuras.
Azura os estudou, acostumando os olhos à escuridão. Uma chama acendeu-se atrás deles e a garota olhou para trás, a ponto de ver Ginevra apoiada em Düran, mantendo-se em pé com certa lentidão. Na palma de uma das mãos, acendera o fogo, primeiro truque que aprendera. Era como respirar. Não necessitava muita atenção. Na outra, carregava a garrafa de hidromel pela metade .
Voltando os olhos para frente, os quatro arfaram. Ali, na dita Cebola, vislumbraram Frey e Aurèlia, além de uma humilde família - uma mãe e dois filhos, uma garota e um garoto mais velho que esta. Todos estavam em pé, espalhados pelo espaço. Sobre os bancos calculadamente dispostos, dezenas de pássaros azuis mortos.
- O que aconteceu aqui? - Kohan foi o primeiro a questionar, balançando a cabeça, incrédulo.
Azura não esperou por uma resposta. A garota ultrapassou-o e correu em direção à Cebola, aproximando-se da estrutura. Tomou cuidado para não pisar no primeiro pássaro que alcançou aos seus pés.
- Não sei, menino - a mulher, provável mãe das duas crianças, exclamou. - O Petro e a Nila tavam aqui brincando, pertinho de casa, e vieram me chamar. A gente encontrou essa desgraceira aí, ó.
A petrichoriana abaixou-se e tomou o pássaro em mãos.
- Ficou louca? - Aurèlia esbravejou com ela. - Não sabe o que aconteceu. Podem estar doentes!
Azura a ignorou, mesmo que lhe desse razão. Foi imprudente de sua parte ignorar as consequências. Entretanto, sob a fraca iluminação de Ginevra, que aproximava-se em seu passo enfrascado, a garota estudou o animal que cabia perfeitamente na palma de suas mãos. Aparentemente estavam bem, sem ferimentos ou escoriações.
- Morte natural? - Düran encorajou-se a perguntar.
- Não faz sentido - Frey balançou a cabeça, cruzando os braços. - Olhe só para eles! Estão forrando o chão, pobrezinhos.
- Nenhum deles trouxe mensagens de fora? - Kohan indagou.
- Não encontramos nada - Aurèlia lhe confirmou.
- Nadinha, moço, eu e a minha irmã procuramos também - o garoto mais velho participou da conversa, sem sair do lado da mãe.
- Não faz sentido - com a voz arrastada, Ginevra exprimiu. - São animais mensageiros. Os mandaram para cá?
- Não temos visto nenhum vivo pelas redondezas ultimamente - Frey deu de ombros. - Algo está errado.
Azura levantou-se com o pássaro nas mãos. Aproximou-se de Ginevra e de sua luz para tirar uma dúvida.
- O que foi? - a bruxa questionou, vendo a feição intrigada da amiga.
- Olhe - Azura mostrou-lhe. Nas pequenas patas do animal, um pigmento arenoso e escuro sujava suas extremidades. A petrichoriana tomou um pouco na ponta dos dedos e o esfregou-os. - É terra.
- Dessa cor? - Düran questionou.
- É cinza - Ginevra observou. Suas sobrancelhas se arregalaram ao olhar para Azura. Elas tinham chegado à mesma conclusão.
- Gine, dê uma olhada - a garota pediu, estendendo-lhe o passarinho nas mãos. A ausência de vida naquele animal tão pequeno fazia suas palmas tremerem, como se algo estivesse errado.
Ginevra inspirou profundamente, também descontente com aquela cena. De repente, toda a sua ébria animação transformou-se em uma necessidade enorme de ir para a cama. Entretanto, sabia que precisava ajudá-los antes. Ela estendeu a garrafa de hidromel a Düran e apagou o fogo em mãos, fazendo-os retornar ao escuro.
- Okay, certo - a bruxa tomou o animal cuidadosamente em mãos e ajoelhou-se. - Talvez eu precise de um pouco de privacidade.
Os outros entreolharam-se. A família entendeu a deixa. Por mais curiosos que estivessem, o ar do ambiente começara a ficar um tanto mórbido demais para eles. Além disso, um leve preconceito de lendas distantes ainda os acometia. Tinham medo de bruxas. Eram as bruxas que, nas cantigas de ninar, puxavam os pés das criancinhas de suas camas à noite.
Kohan entreolhou-se com sua irmã. Entendeu que esta precisava de um momento a sós, não importava o que fosse fazer. Traria pelo menos mais respostas do que tinham até o momento. Ele se foi, arrastando os outros com ele.
- Azura? - Ginevra chamou, desenhando um desengonçado círculo na terra dura com a ponta do dedo indicador. A petrichoriana voltou-se para trás. - Fique.
Azura deu uma última olhadela para Kohan. Ele acenou com a cabeça, a carranca fechada, antes de partir.
- O que precisa?
- Não gosto de ficar aqui sozinha - Ginevra murmurou. Após desenhar o círculo em volta de si, colocou o pequeno pássaro morto à sua frente e repousou suas mãos sobre ele, tentando sentir um calor que já não existia mais naquele corpo. - Isso é mais fácil quando estão vivos.
- Sei que vai pelo menos nos nortear - Azura a acalmou. Tentou mostrar que estava bem, mas Ginevra era uma das únicas pessoas a quem não conseguia enganar. A ansiedade lhe ardia no peito de modo evidente.
Ginevra inspirou profundamente. Ela fechou os olhos e sentiu a energia percorrer pelas palmas de suas mãos. Quando tornou a abri-los, estavam brancos como a neve.
Azura aguardou. Foram minutos que pareceram uma eternidade. Sentiu-se só, ali. Pensou em levantar para procurar por qualquer pista para aquele mistério. Foi quando os olhos de Ginevra tornaram a se fechar e abriram, dessa vez, com suas pupilas no lugar certo.
Sua expressão, no entanto, era de desconcerto, uma indagação sem tamanhos, como se estivesse quase apavorada.
- O que foi, Gine? - Azura abaixou-se ao lado dela e tomou suas mãos, vendo que as pontas de seus dedos estavam congelando. - O que viu?
Ginevra recuperou-se, mas seus olhos não deixavam o pobre pássaro à sua frente, sem vida.
- Alguém os mandou, Azura.
As sobrancelhas de Azura se cerraram, como acontecia sempre que a dúvida brotava entre elas.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que eles não vieram aqui por acaso. Foram enviados.
- Todos eles? - a petrichoriana questionou, incrédula. - Sem sequer um bilhete? E por que estão mortos?
- Não sei - Ginevra balançou a cabeça. - Isso tem dedo mágico, Azura - entreolharam-se, com medo. - E essa não é a parte que me preocupa.
- O que mais viu, Gine?
Para comprovar a silenciosa teoria de ambas, Ginevra tomou a terra de coloração diferente nas pontas dos dedos, das patas do finado pássaro azul.
- Foram mandados de Cinzas.
- Cinzas é uma cidade fantasma - Jacquelin massageou as próprias têmporas, vendo-se outra vez na incumbência de carregar aquela reunião nas costas.
Frustrados por estarem ali e perdendo as poucas horas de respiro que lhes eram ofertadas em tanto tempo, o concílio reuniu-se naquele mesmo chalé tão poucos dias depois com feições diversas estampadas no rosto - mas nenhuma feliz. Geralmente, tais reuniões eram convocadas pelo menos um dia antes. Quando foram intimados a conversar em meio a circunstâncias tão festivas, acharam a situação no mínimo estranha. A história que saiu da boca de Azura, confirmada pela bruxa, ainda mais.
- Eu sei o que vi - Ginevra, em sua terceira xícara de chá preto carregado de cafeína e praticamente engolindo sem mastigar o pão duro em suas mãos, tentava desesperadamente ficar sóbria. Se soubesse que se encontrariam em tal situação, teria escondido a garrafa de hidromel sob seu travesseiro para suas fugas noturnas posteriores. Acompanharia bem um cigarro.
- Nos conte de novo, então - Lírio pediu. Dessa vez, balançava o bebê real de um lado para o outro. Kaha dormia tranquilo, diferente do homem que o segurava.
Ginevra olhou para o teto, procurando por onde começar. Fechou os olhos para que as lembranças tornassem com mais claridade. Estavam embaçadas, como um breve sonho sem pé nem cabeça que escapa por entre seus dedos quando a realidade toma forma.
- Certo. Eu vi eles morrendo. Os pássaros azuis. Centenas deles. Muito mais do que os que por desventura apareceram hoje aqui na Pedreira.
- Morrendo como? - Frey questionou timidamente, com medo que pudesse fazer a bruxa desconcentrar-se.
Ginevra balançou a cabeça.
- Não sei... estão caindo aos montes. Milhares. Foi uma visão horrível...
- E Cinzas? - Bron insistiu.
- O que estava em minhas mãos, eu... eu vi o que ele viu. Aquela mórbida terra desabitada, de cor argilosa e acinzentada...
- Pode ser outro lugar - Aurèlia interpelou. - Aposto que nunca esteve em Cinzas para ter certeza de que era lá.
- Sei o que vi - a bruxa confirmou.
Falar sobre Cinzas era um assunto delicado. Foi lá que tudo começou, anos atrás. Foram os primeiros a bater de frente com as leis estúpidas da coroa. E foram os primeiros a perecer pelo mesmo motivo. Naquela pequena saleta, tantos foram os que vieram de lá. Azura, sem lembranças do lugar, carregava a curiosidade e o carinho pela terra que não chegou a conhecer devidamente. Kohan deixou o lugar ainda tão jovem, fugindo das guerras que findaram todas as vidas inocentes dos cinzentos. Frey deixou para trás tudo o que um dia chamou de lar.
- Um passarinho ter estado em Cinzas não significa que alguém o tenha enviado, Ginevra - Jacquelin debateu.
- Eu sei - Ginevra, frustrada, tentava encontrar palavras para descrever o que sentiu. - Caralho, vão ter que confiar em mim! Não é por isso que estou aqui? - às suas palavras frustradas, os outros se calaram. - Não foi uma visão clara. O animal estava morto, caramba. Foi... uma sensação. Antes de morrerem, traziam bilhetes, carregavam recados que... nunca chegaram. E vieram de Cinzas.
As palavras da bruxa foram convincentes, até mesmo para os incrédulos.
- Cinzas é uma cidade fantasma... - Dante repetiu as palavras de Jacquelin.
- E como temos certeza? - Azura questionou, tornando a atenção para ela, recostada em um canto do chalé.
- Não temos - Cássio, o xamã, concluiu. - Mas deveríamos ter.
- O que quer dizer, pai? - Aurèlia o chamou.
- Quero dizer que nunca saberemos o que aconteceu com aquelas terras se não enxergarmos com nossos próprios olhos.
- Cássio... - Jacquelin inspirou profundamente, nervosa. - Não está dizendo o que estou pensando que está, não é?
- Não pode estar falando sério - Kohan deixou seu vozeirão cortar a sala. - Estamos abrigados aqui, seguros. Se sairmos daqui... E se for um plano para nos tirar da barreira? Não há como saber.
- Não é você quem tanto quer atacar? - Lírio esbravejou. - Esteja pronto caso seja.
- Isso não tem a ver com deixar ou não a Pedreira - a rainha falou pela primeira vez na noite.
- Ela está certa - Azura concordou. - Tem a ver com saber o que há em Cinzas. Se alguém os mandou - continuou -, quem? E o que queriam nos contar que não chegou em nossas mãos?
As palavras de Azura foram conclusivas, como se por hora pudessem findar aquele desconcertante assunto ali e voltar aos festejos - ou mesmo às suas camas - e postergar mais tormentos e dores de cabeça. Sabiam, todavia, que decisões importantes deveriam ser tomadas, e aquele era o momento.
- Jacque - Cássio tornou a palavra à governante -, é você quem bate o martelo.
Jacquelin inspirou profundamente pela décima vez na noite. A cefaleia que a atormentava não lhe permitia pensar com clareza.
- Não quero decidir coisa nenhuma, Cássio.
- Decido eu, então - Aurèlia desencostou-se de seu habitual canto e deu um passo à frente. Por mais que por diversas vezes a Kino fosse apenas afrontosa, sabiam que suas tomadas de decisão eram bem pensadas. Ela era uma Kino, afinal, pronta para herdar a liderança de um povo livre antes deste tombar às cometidas do rei. Tomaria boas direções, eles sabiam. Afinal, era por isso que estava ali. - Vamos a Cinzas.
Qualquer clima de festa por parte daquele Conselho dissipou-se no ar naquela noite. A ansiedade chegou à boca do estômago de cada um deles, mesmo dos que negavam. A inquietante notícia teria que ficar para o dia seguinte, o que arrastaria angústias por mais algumas horas.
Azura tirou o peso dos ombros ao chegar em sua casa. Kohan não a esperou e Ginevra insistiu em permanecer entre os festejos, um pouco mais, que fosse. Oportunidades como aquela andavam em falta. A petrichoriana não encontrou clima para tal.
Ao adentrar a casa que ocuparam, encontrou a completa escuridão e silêncio. Nenhum deles voltara ainda. Ela respirou profundamente ao tirar os sapatos e caminhar vagarosamente ao quarto dos fundos. Pela porta entreaberta, a garota vislumbrou a luz de Marama banhar seu pequeno refúgio. Sua mão delicadamente empurrou a maçaneta da porta de madeira maciça, que rangeu, fazendo com que seu colega de quarto se voltasse para ela.
Dobrando a camisa, a silhueta do tronco de Kohan destacava-se contra a luz da janela.
Ele não a saudou.
- O que houve? - a garota perguntou, recostando-se no batente da porta.
Kohan deu de ombros.
- O que quer dizer?
- Com você, o que houve? - insistiu. - Está estranho.
Estranho é eufemismo, pensou. E sei bem o que o incomoda, Kohan. Diga logo.
O arandiano esboçou um sorriso triste e negativo. Sabia que jogava o jogo dela.
- Não gosto como ele te olha.
Azura sorriu, mesmo que tivesse tentado segurar aquela contração em seu rosto.
- Está com ciúmes? - brincou.
- É sério, Azura - Kohan fechou a carranca outra vez. - Aquele cara é...
- Meu amigo - Azura aproximou-se. - Düran é só meu amigo.
- Ele é só seu amigo. E para ele, o que você é?
A garota tentou ser compreensiva com aquele homem.
- O que quer que eu faça, Kohan? Eu nasci com ele. Somos próximos.
- E ele a magoou, Azura. Magoou tanto.
- E eu decidi perdoá-lo - Azura parou a um mísero passo de distância de Kohan. - Me diga a verdade, Kohan.
Ele voltou-se para a janela, dando as costas para ela. Por um instante, Azura pensou que aquela conversa tivesse chegado ao fim.
- Você é incrível - Kohan cortou o breve silêncio. Azura prostrou-se no lugar, não sabendo onde ele chegaria com aquele pronunciamento tão espontâneo. - E pode ter o que quiser, Azura. Literalmente, pode ter tudo o que quiser, e isso me assusta.
- E por quê? - a mulher contornou-o, fazendo questão de ficar entre ele e a luz da lua. Seus olhos encontraram os dele, perdendo-se no brilho do reflexo da Deusa Marama.
- Por que temo que quando perceber que pode ter o que quiser, vai procurar por algo melhor do que eu.
A petrichoriana perdeu as palavras, o que lhe era raro. Kohan desviou o olhar do dela, mas as mãos da mulher logo alcançaram seu rosto e fizeram com que suas íris cor da noite encontrassem as dela. Encontrou-se com a boca entreaberta. Suas palavras foram sinceras.
- Quero você, Kohan.
Um esboço de sorriso surgiu no canto dos lábios de Kohan, um instante antes destes encontrarem os de Azura com voracidade. Em meio a tantas preocupações, aquela era a que o mantinha angustiado. De algum modo, aquela mulher em seus braços lhe tirava de qualquer cerne. Ainda não sabia se isso o preocupava ou excitava.
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