60. Utopias
O homem e a ganância. Que relação tão sem pés nem cabeça!, quem vive desse jeito, cheio de pobreza de alma? Já houve época em que éramos mais que isso? Em que sentimentos tão chulos não nos tiravam dos eixos certos?
A história que lhes conto é de Pouri e Rhama.
Pouri nasceu bom, como todos sempre disseram. O ser humano nasce bom, é fato. Pouri tinha lindos cabelos negros logo nos primeiros anos de vida, negros como a mais escura das noites e brilhante como se as luzes de Sonca e Marama amassem ver ali seu reflexo, nos fios de cabelo do pequeno Pouri, nascido da Pedreira.
A vida era boa para Pouri, filho de pai e mãe que tinham condições de pôr tudo na mesa. E o custo? Bom, horas de trabalho, sem descanso. Pouri aprendeu a viver sozinho logo com cinco anos. Imagina? Uma criança de cinco anos em casa, sozinha? Ah, tanto poderia dar errado... Pouri, entretanto, era um jovem sabido. Em pouco tempo já lavava a louça, limpava o chão e fazia o jantar para os pais trabalhadores, que chegavam exaustos de horas de suor nas minas e apenas dormiam o quanto podiam. Quando Pouri pedia por atenção, os pais diziam-lhe: "Vá dormir, Pouri. É nosso trabalho que traz o pão que tem na mesa de manhã". E Pouri dormia.
Pouri não tinha atenção, não. Sua única amiga era sua vizinha, Rhama. A mesma idade eles tinham, o que facilitou para que crescessem como irmãos, os dois pequenos pedreiros.
- Um dia, Rhama, eu vou ser muito rico, sabia? Muito poderoso!
Rhama era uma garota de cabelos dourados como o sol. Em dados momentos pareciam até brancos de tão claros. Sua pele também era branca e ela fugia da luz que lhe queimava, sempre embaixo de uma pequena sombrinha, desprovida de melanina. Pouri aprendeu depois que Rhama nascera albina e que todo o cuidado com sua sensibilidade era pouco.
A garota tinha tudo o que queria. Rhama vinha de uma família rica e que carregava nas costas muito poder. Pouri a invejava e não negava. Queria ter o dinheiro de Rhama. Assim, poderia ter os pais por perto.
- E por que tu quer ser rico, Pouri?
- Ora, Rhama, e quem não quer?
- Mas nem só disso se vive, seu bobo - com seus já nove anos, Rhama brincou. - Eu daria tudo para ter um pouco mais de liberdade, igual a tu, Pouri.
- E que liberdade é essa que tanto quer?
- Essa aí que tu tem, de correr por aí na rua, de beijar o sol, sabe?
- Quanta melação, Rhama, para com isso. Eu preciso é de dinheiro. Quando eu tiver dinheiro, pai e mãe vão parar em casa. Aí eu vou ser feliz.
- Tu que pensa.
O tempo passou. Pouri e Rhama apaixonaram-se logo ali, no início da adolescência.
Quem via os dois pequenos andando pelas ruas de mãos dadas, só conseguia pensar: "Grande coisa, isso aí é fase de criança. Onde já se viu, amar alguém nessa idade?"
Ah, mas era amor, eles sabiam. Tanto que, em dada tarde, Pouri acabara de fazer dezoito anos e estava à procura de um presente para Rhama, querendo presentear sua amada e melhor amiga.
Pouri foi longe, procurou de loja em loja pelas extremidades da Pedreira e nada achou que pudesse chegar aos pés de agradar aquela mulher. Quando voltava para casa, já de noite, Pouri entrou em uma rua deserta. Lá, ele conheceu Uam.
Uam era um senhor de idade avançada e uma grande deformação no maxilar, que comprimia-se em seu rosto e afundava-lhe a face. Em um primeiro momento, vendo a figura que o abordara, Pouri temeu, mas logo recompôs-se.
- Está procurando por algo, jovem rapaz?
Pouri desconcertou-se.
- Como sabe?
- Eu sei de tudo, Pouri - o homem sorriu um sorriso amarelado e com dentes faltando. - Já tenho centenas de anos. Sou Uam.
- Uam?
- É. Já ouviu falar de mim?
- Não, nunca.
- Ah, mas vai ouvir - Uam exclamou. - Eu tenho estado de olho em você, Pouri.
- Em mim? - Pouri estremeceu. - E por que?
- Porque eu vejo o seu verdadeiro coração, Pouri. Tem trevas ali dentro.
Pouri não deu bola para Uam. Ele deixou o velho falando sozinho e foi embora. Perdeu o sorriso que o velho lhe deu antes de virar pó e sumir com a brisa da noite na Pedreira.
Pouri encontrou o presente perfeito para Rhama. Um anel de noivado. Pobre Rhama, apaixonada e cega de amor, aceitou o pedido. Ele casou-se com aquela mulher e, casando-se com ela, casou também com sua herdada fortuna.
Foi Pouri quem primeiro conheceu a ganância, diz a lenda. Ele queria tanto aquele dinheiro. Desde sempre, foi tudo o que mais almejou. Nunca lhe era suficiente.
Pouri envelheceu querendo mais e mais e Rhama não tinha mais o que lhe dar.
O coração do jovem, antes tão bom, agora era tão frio e cobiçoso.
Foi em dado dia que a pobre Rhama não aguentou mais aquele amor que tanto a machucava. Vinte anos ao lado daquele homem lhe tiraram toda a sua bela juventude.
Rhama fugiu na calada da noite, mas não sem que Pouri percebesse. Ele já não era mais o homem bom que ela conhecera e por quem se apaixonara.
Pouri foi atrás de Rhama e a viu, pensando que estava enlouquecida, adentrar o Bosque das Lamúrias. Por fim, o homem a alcançou quando algo segurou-a para ele.
Uam.
Como aquele velho ainda estava vivo? E como ainda estava com a mesma aparência de tantos anos atrás?
Uam segurava avidamente o braço de Rhama e a machucava. A mulher não conseguia desvencilhar-se dele. Pouri parou a metros dos dois.
- O que é você? - Pouri indagou.
- Eu sou tudo, Pouri. Sou eu quem posso lhe dar tudo - Uam respondeu com a voz mórbida.
Rhama chorou baixinho, mas Pouri não amoleceu.
- Diga mais - pediu.
Uam sorriu.
- Posso lhe dar tudo o que sempre quis. Dinheiro, poder, o que mais quiser - Uam observou, com um sorriso no rosto, as palavras fazerem os olhos de Pouri brilharem. - Só preciso de algo em troca.
- O quê?
- Um sacrifício - Uam balançou o braço da pobre Rhama, que debulhou-se em lágrimas. - Mate-a, Pouri. Me mostre que só se importa com você e eu verei que é digno de usufruir de tudo o que posso lhe oferecer.
Uam jogou Rhama em frente a Pouri, que caiu de joelhos e não teve forças ou coragem para se levantar. Suas lágrimas chacoalharam todo o seu corpo ao ajoelhar-se aos pés do marido.
- Pouri, por favor... - a mulher implorou.
Pouri tremeu. Ele olhou dos olhos de Rhama para os de Uam. Teve certeza do que faria.
Pouri matou Rhama com as próprias mãos e jogou seu corpo no primeiro riacho que encontrou, deixando-a para ser comida pelos animais do Bosque.
Uam não mentiu, mas não contou a verdade. Assim que Pouri desfez-se de Rhama, o velho o matou. Uam era um bruxo poderoso, um espírito antigo, maligno, uma alma má que rondava apenas à procura de forças para unir-se, uma índole tão impura quanto a sua. Quando o coração de Pouri mostrou-se inabitável e negro, Uam o libertou daquele corpo terrestre e uniu com ele seu espírito, formando um só Deus, o Deus das trevas, da escuridão, do medo, que subiu aos céus e deixou sua lúgubre herança no Vale de Awa.
A pobre Rhama foi encontrada, enfim. Seu corpo. Foi uma bruxa quem a acolheu nos braços. A mulher poderosa conseguiu ver tudo pelo que Rhama passara e chorou. Chorou como nunca chorara antes. Suas lágrimas caíram sobre o corpo da pedreira tão injustiçada e foi assim que esta subiu aos céus como uma Deusa, uma divindade, a Deusa da luz, que jurou iluminar todo e qualquer mal que Pouri pudesse vir a tentar perscrutar.
Nem só de árduo suor e angustiadas lágrimas viviam os sobreviventes. Rodeados pelas barricadas nas fronteiras da Pedreira e cobertos pelo não conhecimento dos fatos alheios àquela terra, os pedreiros sentiam necessidade de uma alegria a mais na rotina. Por natureza, eram um povo festivo. Em um passado não tão distante, as noites que findavam as fastidiosas semanas de trabalho eram regadas por álcool bom, músicas nas tavernas e mesas sendo juntadas por todos os lados, espalhadas pelas calçadas para ocuparem mais e mais conterrâneos. Quanto mais, melhor.
Quando as tragédias por hora cessaram, quando os soldados voltaram para os lados de Crisântemo e cederam-lhes um pouco de paz, o povo pediu por um festejo. Estava marcado, com data e hora. O local? As ruas, as casas, os míseros cantos. Quando o povo pediu autorização a Jacquelin, esta perguntou o porquê.
- Por que uma festa nesses tempos em que nos encontramos?
- Oras, Jacque, e por que não? - o povo respondeu.
- E comemorar o quê?
- Estamos vivos, não?
Mesmo tão próximos, estavam tão distantes. Eram terras completamente diferentes, povos diferentes e com costumes diferentes. Aos Kinos, tal fato só ficou evidente naquela noite.
Finalmente unidos em uma bela visão, os pedreiros prepararam um banquete um tanto escasso, mas que ainda era mais do que achavam que conseguiriam fazer em tais circunstâncias.
Até o menos festivo dos acolhidos na Pedreira teve o prazer de ir às ruas naquela noite. A frígida atmosfera já não lhes era tão mórbida. O pouco calor humano reunido na praça central da Pedreira e cercado pelas habituais tochas acesas lhes passava um conforto exasperado, quase como um grande abraço acolhedor.
Os músicos foram às ruas. Como foi deleitoso aos artistas finalmente poderem voltar a tocar, a exibir suas artes e tocar os corações daquele povo fragilizado e abalado. As deliciosas notas que melodiavam em cada esquina arrancavam sorrisos há muito adormecidos.
Tereza arrumou-se, sem dúvida alguma. Teve um tempo em que tudo o que tinha era a roupa do corpo. Agora, a vida lhe cedera um pouco mais. Muito mais. Uma calça de um confortável tecido alaranjado e um sobretudo pelo menos dois tamanhos maior que ela a aqueciam das aragens geladas que tanto insistiam em correr por entre as vielas da Pedreira, principalmente circulando em espaços abertos como aquela gloriosa praça, que prometia ajudá-los a fugir de seus problemas por pelo menos uma noite, que fosse.
Assim que os cabelos da ruiva começaram a crescer, ela os aparou. Tereza deixou a franja como gostava, margeando as sobrancelhas, e os ondulados fios de cobre roçavam em seus ombros, não passando dali. Ela conseguira ganhar certo peso nos meses que se sucederam, fazendo-a retomar um corpo saudável e curvilíneo, bem nutrido, na medida em que lhe fosse possível. Fugir de D'Ávila foi, sem sombra de dúvidas, a melhor decisão que tomou em sua vida até ali. Bom, segunda. A primeira foi Gisèle.
Depois daquela noite há um mês no Bosque das Lamúrias, a loira e a ruiva puseram-se a conhecer-se. Qual foi a agradável surpresa quando descobriram que tornaram-se elos inquebráveis. Gisèle teve medo, a princípio, mesmo que negasse. Não queria machucar Tereza, principalmente por não saber o que a levara àquele caloroso beijo. Com o tempo, entretanto, percebeu que Tereza lhe deu todo o espaço que precisava - e ela odiava o espaço. Quando a ruiva estava longe, sentia-se mais vazia. Foi quando percebeu que seus impulsos não foram platônicos. Tereza sempre soube, é claro, desde que finalmente pararam de alfinetar-se nos primeiros dias de convivência, que sentia um calor a mais perto da loira.
Ansiosa como estava, Tereza correu como uma criança pela praça e perdeu-se na agradável atmosfera que teve medo de nunca mais sentir. Seu sorriso retornou ao rosto e ela agradeceu aos bons Deuses pela fartura.
Um delicioso aroma adentrou em suas narinas. O inconfundível cheiro de doce recém saído do forno. Ela olhou em volta, procurando a origem daquela deliciosa essência e a encontrou logo ao seu lado. Os olhos de Tereza brilharam ao aproximar-se de uma bancada repleta de diferentes doces.
- Boa noite, minha querida - uma senhora, que aparentava beirar seus sessenta anos, sorriu para ela do outro lado da bancada. - Tu num é daqui, né? Nunca te vi na Pedreira, não. Tem muita gente aqui, tu sabe, mas olha essa carinha... essa carinha num é daqui, não.
Tereza sorriu para a senhora. Seus cabelos negros pareciam recém tingidos e sua simpatia inundava qualquer coração.
- Eu não sou daqui, não, moça. Sou lá de D'Ávila.
- Ah, D'Ávila! Sempre quis conhecer. Como é lá?
- É difícil, moça. Eu num vim de um lugar muito bom, não.
Ela pareceu compreender. Não continuou o assunto.
- E tua graça, menina?
- Oi?
- Teu nome. Como te chamam?
- Ah, é Tereza, moça! - os olhos de Tereza não deixavam de focar nos deliciosos doces que a mulher exibia. - Foi você que fez, é?
- Foi, sim, Tereza.
- E o que são?
- Tu nunca viu uma rosquinha, menina?
- Nunca vi, não, moça - Tereza riu, esfregando as mãos para aquecer-se.
A senhora simpatizou com ela.
- Vai levar uma?
O semblante de Tereza entristeceu-se, mas não o suficiente para deixar de lado a alegria que tanto exibia.
- Num tenho dinheiro, não, moça - Tereza sorriu humildemente.
- E quem tem nessa época louca, hein, Tereza? - a mulher olhou para os próprios doces e depois para a ruiva, que a encarava com curiosidade.
- E você acha que vai vender bem, então, moça?
- Eu não quero vender, não, Tereza - a mulher debruçou-se sobre o balcão. - Tu conhece a história de Pouri?
- É claro que conheço, moça. Gosto nem de falar o nome desse aí, credo. Ele veio daqui, né?
- Veio sim, menina. Foi o homem que nasceu bom e conheceu a ganância. Ele só pensava em dinheiro, né, menina?
- Mas a gente vive de dinheiro, dona moça.
- Me chame de Charli, menina.
- Tudo bem, dona Charli. A gente vive de dinheiro, né?
- Não queria viver, não, hein, Tereza? - Charli gargalhou.
- Que utopia, dona Charli! - Tereza envolveu-se na conversa.
- Ah, mas uma utopia tão boa, tu num acha, menina? - Charli sorriu-lhe. - Eu num quero teu dinheiro, não, daviliana.
- Então... o que você quer?
Dona Charli sabia que não cobraria daqueles doces que tão humildemente fez com os ingredientes que encontrou aqui e ali. Não era justo com aquele povo tão amainado. Trocas eram justas. Entretanto, Charli percebeu a humildade de Tereza.
- Ah, menina, nem me fala. Eu queria mesmo era que isso tudo acabasse, sabe? - Dona Charli sorriu tristemente. - Mas escolhe um doce aí, menina.
- Eu não tenho nadinha pra te dar, dona Charli.
- Me dê um sorriso, menina de D'Ávila! Para mim já basta.
Um sorriso tão puro e espontâneo surgiu no rosto da daviliana, juntamente com lágrimas de emoção que não conseguiu controlar. Se todos fossem como dona Charli, se todos vivessem naquele mundo utópico que elas rapidamente imaginaram, sua vida teria sido diferente. Todos os momentos seriam como aquele.
Com a benção de Charli, Tereza escolheu uma rosquinha recheada com bastante goiabada e queijo, quentinha. Depois de agradecer mais e mais e deixar Charli com o coração feliz e aquecido, Tereza saltitou para longe com um sorriso estampado no rosto e mordeu a deliciosa rosquinha, procurando por Gisèle. Estava louca para que ela a provasse também.
- Eu amo tanto vocês! - Ginevra abraçava os pescoços de Viorica e Azura, uma de cada lado. Em uma das mãos carregava o delicioso hidromel que conseguiu trocar por uma presilha de cabelo no bar da esquina. A garrafa já estava consideravelmente esvaziada. - Minhas cunhadas...
Viorica e Azura se entreolharam, vendo-a claramente bêbada e sem papas nas línguas. Riram uma para a outra.
Conseguiram sentar-se em uma improvisada mesa: um carretel de madeira largo e provavelmente bem feito, em algum dia. Agora, deixado para apodrecer na chuva e sol e frio constantes daquela região, encontrava-se enrugado e com um cheiro de madeira podre inconfundível.
- O quanto bebeu, Gine? - Azura lhe indagou, vendo que seu peso já estava completamente sobre os ombros das duas.
A festa estava animada ali onde estavam. Rostos conhecidos e desconhecidos passavam por elas, encostadas em uma sombra de esquina, ouvindo as conversas animadas de um povo descontraído e igualmente ébrio.
Ginevra a olhou como se estivesse ofendida.
- Pouquinho, Azura! Não vai me censurar, vai, cunhada? - a voz embargada de Ginevra a provocava.
Viorica deu uma gargalhada e tomou um gole do suco de maracujá que trouxe já pronto lá de seu recanto.
- Pare de me chamar assim, Gine! - Azura cochichou, encoberta pelas risadas das duas.
- E por que não, Azura? - Viorica a provocou também. - Não está com Kohan?
Azura corou.
- Você fala tão pouco pra gente, Azura! - a bruxa fez bico. - Como pode ser minha cunhada desse jeito, mulherzinha fria?
Azura revirou os olhos, mas Viorica não se aguentou com as risadas.
- Agora é sério, Azura, o que está rolando com você e Kohan, hein? - Viorica indagou, erguendo uma sobrancelha.
A petrichoriana inspirou profundamente e olhou para os lados, vendo se ninguém ouvia os fuxicos das três. Em seguida, roubou o hidromel de Ginevra e deu um demorado gole sob os protestos da bruxa.
- Arrume sua bebida, petrichoriana!
- Certo, vamos lá - Azura fez uma careta ao sentir o álcool queimar por sua garganta. - Não quero rotular minha relação com Kohan.
- Rotular? - Viorica a questionou. - Mas vocês dormem na mesma cama, Azura.
- É, pois é! Não foi bem uma escolha nossa.
- E não gosta? - Gine a sorriu maliciosamente.
- Claro que gosto - Azura balançou a cabeça e deu um leve empurrão na bruxa embriagada. - É só que...
- Muito cedo? - Viorica, com toda a sua sobriedade, compreendeu.
- Eu tenho medo de decidir o que isso é, sabe? Eu gosto de Kohan, mas... - interrompeu-se ao ouvir Viorica rindo. - O que foi?
- Ah, você é toda... independente. Rosto da revolução. Tem um dragão que te visita de vez em quando... e fica aí sofrendo por causa de homem.
- Num to sofrendo, não, Viorica! - Azura protestou.
- O que que é então? - Ginevra repousou as costas no muro atrás delas e deixou que suas pernas balançassem. - Num gosta mais do meu irmão, não é?
- Claro que gosto, idiota.
- E quem não gostaria? - Viorica cochichou, engasgando com os olhares de incredulidade de Ginevra.
- Você é casada, mulher! Com meu irmão. O outro!
- Oxe, e achar o outro bonito é pecado? - Viorica debateu.
Azura caiu em uma gargalhada que há muito não lhe acometia. Sentiu falta de momentos confidentes como aquele.
- Olha, Azura, se você e meu irmão brigarem, pode vir dormir comigo, tá? - Ginevra completou. - Eu estou doidinha pra me livrar de Azriel, o menino ronca que nunca vi! Parece um velho, eu juro!
As três riram, deixando que a noite as embriagasse mais que a bebida barata que corria entre as mãos de Azura e Ginevra.
Uma melodia nova chegou aos ouvidos próximos das três. Olhando para o lado direito de onde estavam, viram que um músico prostrara-se ali em um pequeno banco e, com toda a sua paixão pelas notas melodiosas, tocava em um violino músicas que impregnaram dentro do coração de Azura.
Ela logo as reconheceu. Seu sorriso transformou-se em uma prazerosa admiração pelo modo como as notas eram interpretadas nas mãos daquele homem. As canções de Petrichor. Que ela ouvia em festas, que ela ouvia Nero cantar debruçado em seu berço, suas primeiras memórias.
- Azura - ouvir seu nome lhe tirou de seu estado de transe. Ela olhou para frente. Düran lhe sorria, aproximando-se. Estava bonito como sempre estivera, mais sorridente e confiante para voltar a falar com ela. Aquela expressão confidente entre eles mostrava que ele também reconhecera a música. O homem estendeu uma das mãos a ela. - Quer dançar?
A garota não conseguiu resistir. Ela lhe deu uma das mãos e desceu do carretel, sussurrando para as garotas que voltaria logo.
Düran a tomou pela cintura e a rodopiou como só ele sabia fazer. A garota riu quando misturaram-se à multidão. Dançar com Düran ao som das músicas de Petrichor era o que lhe trazia mais perto de um passado saudoso.
Düran viu que os olhares recaíam sobre eles, como sempre. Sobre ela. Azura, ao dançar, era outra pessoa. Talvez ela mesma, mas dez vezes mais leve, sem levar as preocupações do mundo nas costas.
Quando finalmente as músicas mudaram de nacionalidade, Azura respirou fundo e pegou ar, sorrindo, ainda nos braços de Düran. Quando olhou em seus olhos, entretanto, não esperava por aquela expressão tão dura.
- O que foi? - indagou-o.
- Sei que estão escondendo algo, Azura.
A garota desviou rapidamente os olhos dos dele. Sabia o que ele queria dizer. Düran não fazia parte dos conselhos e reuniões recorrentes, assim como muitos outros, o que o fazia sentir-se sem chão com a desinformação.
- Alguns dizem que não saber é uma benção - Azura lhe respondeu.
- Não, o ditado é outro. A ignorância é uma benção - Düran murmurou, ainda balançando-a para lá e para cá. - Por que não me tira um pouco da ignorância?
Azura soltou o ar pelo nariz, ansiosa.
- O que sabe?
- Sei que essas reuniões de vocês não estão sendo mais sobre o que acontece aqui dentro. Mas, sim, lá fora - o petrichoriano murmurou, tentando estudar o rosto de sua parceira de dança. - Eles estão por aí, não estão?
Azura segurou um riso frouxo.
- Sempre estiveram. Mas não sei se é o caso, Düran... Eu juro, se pudesse tomar meu lugar naqueles concílios...
- Mas não posso, Azura. É você quem eles respeitam - Düran mordeu o lábio inferior, um hábito que tanto tentava largar, mas que retornava inconscientemente quando nervoso ou ansioso. - Só parem de nos deixar no escuro. Eu... quero ajudar.
Por sua visão periférica, Azura viu alguém aproximar-se. Seu rosto virou-se para ele. Era Kohan. A expressão do homem era indecifrável. Ele olhou dela para Düran, que o encarou de volta. Sabia que, antes de tudo, os dois não se davam bem.
Azura sentiu-se desconfortável com o silêncio entre os três e suas mãos escorregaram do pescoço de Düran. Preferiu agir como se dançar não fosse nada demais - já que, em sua concepção, não era.
Kohan voltou seu olhar para ela e Azura deu um passo em sua direção. A expressão do arandiano era de, no mínimo, angústia.
- O que foi, Kohan? - a garota preocupou-se.
O homem aproximou-se de seu ouvido para que não precisasse gritar em meio ao alvoroço na praça. Cochichou:
- Tem que ver isso aqui.
- O que é? Está me assustando.
- Tem a ver com os pássaros, Azura.
Os pássaros azuis.
Ela inspirou profundamente, entendendo a apreensão. Concordou em seguir Kohan, mas voltou-se para trás antes. Düran a esperava com olhos esperançosos.
- Disse que queria saber mais - murmurou. - Então venha ver com os próprios olhos.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro