59. Pássaros Azuis
Por mais caótico que fosse, aquelas terras tinham muito menos luz do que o costumeiro, agora sendo basicamente compostas por tochas espalhadas de lado a lado pelos interessados por fogo, a única fonte de calor e iluminação da qual dispunham ali.
O sereno das alvoradas deixava tudo mais frio, ao ponto que todos, sem exceção, embrulhavam-se em agasalhos, um sobre o outro, para suportar as noites daquela álgida estação.
Azura caminhou por entre os breves conhecidos nas ruas de terra da Pedreira, rumando a passos apressados para um destino ao qual já sabia estar atrasada. Por mais que seus cabelos soltos pudessem melhor aquecer as pontas de suas orelhas geladas, a petrichoriana retornou às suas origens, fazendo com que a trança comprida voltasse a ser sua melhor versão. Lhe lembrava de Petrichor, de tempos mais fáceis em que nem mesmo aquele frio conseguia deixá-la de mau humor. Com o xale vermelho enrolado no pescoço e em volta de nariz, boca e orelhas, a garota finalmente encontrou seu destino, mal percebendo que quase corria para alcançá-lo e fugir do vento cruzado daquelas vielas escuras.
Quando abriu a porta do dito chalé, adentrou-o rapidamente e surpreendeu-se com o agradável calor que aquelas paredes retinham ali dentro, remendadas após um incêndio que tomou boa parte da cidade, iniciado pelos homens de fardas.
Uma única tocha estava prostrada no centro daquele ambiente escolhido a dedo para sediar as reuniões. As chamas aproximavam-se perigosamente do teto de madeira. O frio e a necessidade de ter o fogo por perto os deixava quase completamente inconsequentes. Seus olhos rapidamente vagaram pela sala e perceberam todos ali, aguardando-a.
- Me desculpem pela demora - exclamou ao tirar uma de suas blusas e jogá-la sobre o batente de uma janela forrada para que ninguém espiasse aquelas conversas particulares.
- Fique tranquila, princesa, não temos nada melhor a fazer do que esperar sua boa vontade de conversar conosco - Aurèlia debochou, revirando os olhos. Encostada em uma das paredes e próxima ao fogo, estava diferente de quando deixaram o Bosque. Ela resolveu cortar seus cabelos castanhos um pouco mais curtos, em um corte que deixava as ondulações de suas madeixas mais armadas sobre seus ombros. Seus lábios estavam rachados pelo frio e ela parecia ter perdido certo peso, seja por falta da fartura de alimentos que tinham no Bosque, seja pelo puro estresse. Seu rosto estava mais fino, evidentemente, como se estivesse doente. Isso não a deixava menos bonita, apenas com uma leve aparência de vulnerabilidade que ela detestava passar.
- Não estava realmente matando tempo, se foi o que quis dizer - Azura cruzou os braços e aproximou-se do fogo. Antes que pudesse comprar as diárias discussões com a filha do xamã, sentiu grandes mãos envolverem sua cintura, abraçando-a pelas costas. Kohan lhe passou calor e uma calmaria necessária para lidar com aqueles concílios, agora cada vez mais recorrentes.
Estavam todos ali, escolhidos a dedo para participar das reuniões. Todos os que tinham algo a oferecer.
Azura viu Lírio e a rainha em um dos cantos, o casal que juntamente aquecia-se, sentados lado a lado em um sofá cheio de pó. Encolhida ao lado de Aurèlia, Frey estava sentada no chão, roendo as pontas das unhas. O xamã estava em pé ao lado das duas e em frente à Jacquelin, a governante da Pedreira, que trouxe consigo seu braço direito, Bron. Kohan foi incluído na lista por ter se mostrado um bom estrategista e intimidador guerreiro. Ao menos, era o que seu porte passava aos outros. Dante e Ginevra, o com sangue bruxo e a bruxa pura, eram agora elos inseparáveis e esperavam próximos ao fogo, ao redor de uma mesa, observando algo estendido sobre ela.
- Me poupem, vocês duas - Jacquelin exclamou.
Jacquelin era uma mulher forte e não apenas fisicamente. Chegou ao poder por seu puro mérito, mas lá estagnou-se. A Pedreira lhe era tudo, mas ela percebeu que a Pedreira não era nada aos olhos do governante de tudo o que o sol toca. Ela já estava na casa de seus quarenta anos, mas sua aparência escondia bem sua idade, como se fosse pelo menos dez anos mais nova. Os cabelos enrolados e olhos eram castanhos, e a pele era queimada pelas drásticas temperaturas a que o Vale de Awa estavam sujeitas. Jacquelin era uma mulher de poder, mas precisava de Bron ao seu lado.
Bron fora um homem da guarda da Pedreira, até ela perceber que aquele homem tinha mais valor com a parte política daquelas terras do que com uma arma na mão. Sua pele negra era tão escura quanto a noite e seus cabelos crespos e curtos estavam rentes à cabeça, como ele gostava. Bron era um homem de poucas palavras, diferente de Jacquelin.
- Por que nos chamou aqui, Jacquelin? - Cássio, o xamã, tentou retomar as rédeas antes de qualquer discussão desnecessária.
Os olhares voltaram-se para Jacquelin, a mulher que os convocou ali. Esta, por sua vez, pigarrou, como se assim declarasse o oficial início daquela reunião.
- Os pássaros não estão chegando.
Aquelas palavras soaram no ar, alcançando os ouvidos dos presentes e seguidas de um tão profundo silêncio que o único som audível era o do trepidar das chamas da tocha e o vento voraz que procurava suas brechas por entre as portas e janelas.
- Perdão, o que? - Frey pareceu desconcertar-se. Pelo clima daquela convocação, o assunto seria de extrema importância, ainda mais por, dessa vez, estarem todos ali. - Que pássaros? O que temos a ver com isso?
- Pássaros azuis - Odile entendeu onde a governante queria chegar. A atenção voltou-se para ela com um certo ar de repugnância. A rainha ainda não conquistara seu lugar ali depois de tudo o que fez e deixou de fazer por eles. - São inteligentes, aves migratórias. Frequentemente usadas para mandar recados de terra para terra. Extremamente velozes. Podem falhar, é claro, mas...
- É raro - Jacquelin completou, concordando com a cabeça.
Azura sentiu um arrepio percorrer sua espinha, recordando-se de um passado ao mesmo tempo tão próximo e tão distante. Düran enviou um pássaro azul para contar à coroa sobre o pequeno Arin. Foi no início de uma tarde, e eles chegaram à noite. Os animais eram rápidos. A petrichoriana balançou a cabeça para afastar as lembranças que prometeu esquecer.
- E então? - Aurèlia deu de ombros, um tanto impaciente.
Jacquelin a fuzilou. Parecia que só ela mesma estava atenta às grandes consequências e perigos que aquilo poderia angariar a eles.
- E então que não temos notícias das outras cidades há pelo menos uma semana. Não chegam notícias, não chegam respostas. Nossos pássaros que vão, não voltam, não.
- Jacque - Ginevra, quieta até então, usou de um tom de voz suave para dissuadi-la -, concordo que é estranho. Mas podem ser tantos fatores...
Jacquelin bufou.
- Rainha Odile - o modo como pronunciou seu título deixou claro o deboche em suas palavras. Seus olhos focaram-se nos da rainha -, acredito que usavam muitos dos pássaros azuis para informar suas terras quando era você sentada no trono. Com que frequência fatores externos os impediam de ir e vir?
Odile sentiu-se levemente desconfortável, mas em momento nenhum deixou-se acuar. Aprendeu com os anos que uma postura inabalável é o que a fazia ser respeita. Ela inclinou-se para frente e esfregou uma mão na outra, procurando aquecer as pontas de seus dedos.
- Nem mesmo tempestades os impediam de chegar. Um atraso ou outro, apenas. Nem tempo, nem nada do tipo.
A governante sorriu, vitoriosa. Um sorriso ameno e um tanto maldoso, vendo que passara a eles o recado e que, acima de tudo, estava certa. Algo estava errado.
- Mas... - Dante pensou em voz alta - isso não faz sentido.
- Não dissemos que fazia - Bron, com seu vozeirão, respondeu-o e apoiou-se na mesa de centro.
- É isso, então? - Kohan, ainda recluso em seu canto e impensadamente cobrindo as costas de Azura, indagou. - Acham que eles estão... interceptando passarinhos agora?
- Ela não está errada em nos chamar, Kohan - Cássio murmurou, andando pensativo de um lado para o outro.
- Não foi o que quis dizer. Quis dizer que realmente não faz sentido - o arandiano explicou-se.
- Nada faz sentido há algum tempo - Ginevra respondeu ao cruzar seus olhos com os do irmão postiço.
- Gine tem razão - Azura concordou. - Não temos notícias de Crisântemo ou dos oficiais. Não temos nenhum sinal de Sohlon e seu exército. Eles parecem só ter esquecido tudo por... um mês inteiro.
- E se esqueceram? - Dante ingenuamente quis acreditar.
- Não esqueceram, garoto - Lírio falou pela primeira vez na noite. - Eles não esquecem. O rei está armando algo, é um fato inquestionável. Lembrem-se, mandamos espiões para Crisântemo, mas nem conseguiram entrar. Os portões da cidade estão fechados.
- É onde tudo parece fácil - Kohan retornou ao assunto que lhe tirava o sono. - Se apenas atacássemos...
- Já falamos sobre isso, homem - Bron esbravejou. - Não temos chance nenhuma contra o exército.
Kohan calou-se. Sentiu uma crescente vontade de debater, mas queria continuar garantindo seu espaço ali. Além do mais, sentiu os pequenos dedos de Azura envolverem os seus. Ela nem mesmo o olhou, entretida na conversa, mas ele sentia seu coração aquecer-se toda vez que ela o tocava.
- Ainda estamos em guerra e enganam-se os que pensam que não - Jacquelin usou seu bordão habitual. - Sei o quanto isso parece estúpido, eu sei, mas essa história dos pássaros não me cheira nada bem. Eles podem derrubar um por um se não temos nenhuma comunicação entre nós.
- E o que quer que façamos? - Azura questionou, batendo um dos pés no chão, nervosa e ansiosa.
- Fiquem de olho - Jacquelin pediu. - Investiguem. Informem o povo sem causar pânico. Redobrem guardas.
- Por causa de pássaros? - Aurèlia perguntou.
Quando os fuzilantes olhos de Jacquelin recaíram sobre ela, Cássio interviu, preferindo ele mesmo repreendê-la do que ver a governante com as mãos no pescoço de sua filha.
- Não sejamos imprudentes, Aurèlia. É daí que começam as ruínas.
Isaac finalmente tomou o pequenino príncipe nos braços, como se precisasse ter certeza que sua cabeça não rolaria caso fosse encontrado com o bebê real sob sua posse.
Não estava tarde, mas todos já estavam em casa - a casa da qual se apossaram ao ver que os donos não voltariam mais. Era pequena e térrea, com dois quartos e detonada pelo tempo, muito antes daqueles embates políticos. O mato crescia no jardim de tal modo que até mesmo encontrar a porta de entrada, em um primeiro momento, fora difícil.
- Mirza adoraria aqui - foi a primeira frase que Nafré expressou ao botarem os pés naquele terreno. Isaac espiou-a olhando para as samambaias no jardim, a planta que, por culpa de Tina, Mirza aprendeu a cultivar.
É, ele adoraria, foi o pensamento que levou Isaac a tomar aquela casa para eles e não qualquer outra. Nafré sentiu-se menos distante e, depois de tirarem boa parte do mato que crescia desenfreado e desgovernado, Osi e Coli ganharam muito espaço para brincar. Os dois não deixaram a diferença de idade os afastar. Era o mais próximo que tinham de um amigo ali.
Isaac aproximou-se um pouco mais de Gaia e Nafré naquele meio tempo. Tornaram-se uma família menor do que gostariam. Aos poucos, criaram os próprios costumes. Jantavam juntos todas as noites, não importava quão cansativa e corrida fosse a rotina dos quatro. Quatro e meio, por muitas vezes. Kaha tinha seu lugar à mesa.
Isaac surpreendeu-se, tanto que chegou a ter dúvidas se aquela que se dizia Odile era realmente Odile, a cruel rainha de todo o Vale de Awa. Talvez as pessoas pudessem mudar, afinal. Quando compreendeu pelo que Gaia passou para salvar seu filho, por mais drástica que tenha sido aquela decisão, o coração da rainha amoleceu-se. O que mais ela queria? Estava com Kaha. Nem mesmo sentar no trono lhe importava. Foi com esse pensamento e vendo o apego de sua antiga criada por seu filho que Odile nomeou-a madrinha. Kaha fazia visitas frequentes, principalmente quando a rainha encontrava-se compromissada, o que fazia de tudo para estar, ultimamente.
Mas a casa não era só deles, não. Nos fundos, uma edícula mostrou-se grande o suficiente para suportar mais uma família. Por mais que pudessem tomar outro lugar para ficar, aquele pouco tempo que Carú ficou com eles foi o suficiente para que se apegasse aos crisantianos. Carú e o irmão moravam lá com Coli e Cöda e, é claro, Gisèle e Tereza. Quando relevavam as drásticas situações em que se encontravam, quando se esqueciam do supérfluo e focavam no que realmente importava - nas risadas das crianças que dominavam o ambiente, nas conversas despreocupadas sobre a vida e o futuro, nos apegos e amores crescentes -, tudo parecia voltar aos eixos. Estavam felizes, por hora.
No retorno daquela exaustiva reunião, Odile e Lírio passaram na casa dos crisantianos para buscar um Kaha adormecido e embrulhado em diversos cobertores, quase sumindo no emaranhado que o deixava invejavelmente aquecido.
Odile agradeceu a Isaac, o garoto a quem Gaia confiava o pequeno quando estava cansada. Não tinha porque não confiar nele.
Lado a lado, Odile e Lírio andaram por ruas escuras enquanto rumavam para o pequeno canto que reergueram de destroços. Desocupado e humilde, o casebre abrigou aquele casal quando precisaram.
Kaha era uma criança boazinha, como diziam. Alimentado e em sua completa sanidade, dormia a noite inteira como se em plumas. Já Odile e Lírio, não. Ah, como sentiam-se crianças novamente naquelas noites de inverno, quando recolhiam-se debaixo de cobertas e fofocavam sobre a vida alheia a noite inteira.
- Está deslumbrante hoje, minha rainha - as palavras zombeteiras escaparam por entre um sorriso de Lírio, deitado em um colchão no chão de onde um dia fora um quarto. Com os braços atrás da cabeça e o tronco desnudo, observava com volúpia a mulher se trocar.
- Ponha uma roupa, Nikki, vai congelar desse jeito - Odile vestiu um agasalho confortável e alcançou o cobertor, enrolando-se nele. Kaha dormia ao lado deles, em um berço improvisado e forrado por um travesseiro. - E já disse para não me chamar assim.
- De deslumbrante?
Odile revirou os olhos. Apenas ele conseguia deixá-la sem palavras. A rainha certificou-se que seu filho dormia - mesmo que o pequenino não tivesse noção de nada do que aconteceria ali - e jogou-se sobre o homem com um sorriso que tirava o fôlego de qualquer um, especialmente o de Nikki.
Montada sobre ele, a rainha colocou as mãos em seu peito. Lírio gostava de vê-la dali. Ele repousou as mãos sobre as coxas de sua mulher e retomou o habitual gesto de contornar suas curvas com as pontas dos dedos.
- Não gosta de mim sem roupa? - Lírio provocou-a, erguendo uma sobrancelha.
- Gosto mais quando não tem uma hipotermia - Odile deitou sobre ele e sussurrou em seu ouvido. - E convenhamos que, quando não está com frio, certas coisas ficam do tamanho que eu gosto.
Lírio agarrou-a às palavras. Com ímpeto e desejo, rolou-a na cama e ficou sobre ela, que soltou uma risada provocativa, como se aquele fosse seu objetivo o tempo inteiro. Entre desesperados amassos calorosos e movimentos quase ensaiados de tão síncronos, um resmungo fez os dois estagnarem. Kaha acordara com um choro sentido.
O casal olhou-se por um instante, lamentando a interrupção, mas riu.
- Deixe comigo - Lírio levantou-se de um salto, rumando em direção ao berço do pequeno. - Quero que ele goste de mim também.
Lírio tomou o pequeno nos braços, aos desesperados prantos. Com a pouca prática que adquiriu naquele tempo que dividiu com Kaha e Odile, Lírio aconchegou o pequeno no braço e cochichou sons calmantes em seu ouvido. Odile sorriu ao ver que seu filho aos poucos acalmava-se.
- Venham aqui - a rainha aconchegou-se novamente no colchão e levantou a coberta, cedendo espaço para Lírio encaixar-se ali com seu filho nos braços. Quando Kaha deixou as lágrimas de lado, Lírio o deitou de modo que pudesse olhar seu rosto. Aqueles lindos olhos que a cada vez mais se pareciam com os da mãe o encaravam com um misto de curiosidade e admiração. - Ele gosta de você.
- É, acho que sim - Lírio exclamou. - Acho que ele sabe que não sou o pai dele.
O sorriso de Odile calmamente desfez-se. Lírio arrependeu-se das palavras impensadas.
- Desculpe. Não quis desenterrar o passado.
- Não é nem pelo passado, Nikki, é o presente. O futuro. Isso me assusta.
- Assustar? - Lírio não conseguia desviar os olhos dos de Kaha. - Por que está assustada?
Odile respirou fundo. Seu dedo indicador dançava por entre as têmporas de seu filho, como se o hipnotizasse. Os olhos de Kaha começaram a pesar.
- Porque essa criança em seu colo ainda é metade do rei.
Quando Kaha retornou ao mundo dos sonhos, Lírio olhou para sua amada, encontrando orbes verdes preocupadas.
- Ele não vai tomá-lo de você, Daisy.
Uma debochada risada escapou da rainha.
- E o que garante isso?
- Eu garanto.
Odile engoliu um choramingo, obrigando-se a sorrir. Sua mão envolveu o rosto de Nikki e o puxou delicadamente para si, depositando um deleitoso beijo em seus lábios.
- Pensa no futuro, Nikki?
Aquela pergunta o deixou desconcertado, pegando-o desprevenido, tanto que necessitou de um minuto antes de respondê-la.
- É claro que penso.
- E eu estou nele?
Nikki riu.
- Está brincando, não é? - Lírio olhou no fundo da íris da mulher ao seu lado. - Você é meu futuro, Odile. Antes de você voltar para mim, tudo era tão... embaçado.
Odile sorriu e olhou para baixo, mordendo o canto da boca.
- E onde estamos quando nos vê?
O homem inspirou profundamente. Repousou as costas em um travesseiro antes de deixar sua mente voar.
- Não me importa onde, mas sempre estamos eu, você e Kaha.
- Onde? - Odile insistiu. Amava como aquele homem tinha aceitado bem seu filho em sua vida.
- Não sei. No campo. Em uma casa... com bastante espaço. Meu irmão morava por aqui, nos campos da Pedreira. Nas cartas, dizia que a vida era boa.
As sobrancelhas de Odile se cerraram.
- Seu irmão? - ela lembrava de ter ouvido histórias sobre o irmão mais velho de Nikki, mas não chegou a conhecê-lo. Fora morar com o tio em Castilho após uma dura briga com os pais.
- É. Ris e eu perdemos o contato depois de uns anos. Mas ele me contava como era a vida aqui. Um tanto solitária, para ele. O que não significa que será para nós. E não que isso seja algo necessariamente ruim.
- Nikki... nunca pensou em procurá-lo?
Nikki deu de ombros.
- Ele nunca procurou por mim também.
Tão poucas eram as coisas que Alaric não faria por Viorica. Apenas as impossíveis, como pintar o céu de sua cor favorita. Se ela lhe pedisse, entretanto, tentaria, orando aos Deuses para que o permitissem no dia seguinte debulhar o céu de um vermelho vivo.
Tantas foram as vidas perdidas na Pedreira, tantos foram os espaços desabrigados por famílias que se foram. Apesar de tais pesares, foi o que possibilitou aos chegados terem um lugar onde ficar.
No dia em que chegaram, Alaric e Viorica ajudaram Azriel a locomover-se a uma taverna. Além de lhe darem comida e bebida, tentando cessar a exaustão do garoto, pediram ajuda para curarem aquela perna que, com toda certeza, começara a infeccionar, fruto da mordida do feroz cão infernal.
Enquanto lá, as conversas com os nativos correram soltas. Alaric e Viorica estavam exaustos e contaram para um garoto que lhes amparara, não mais velho que Azriel, que precisavam de um local para ficar.
Com um semblante entristecido, o garoto ruivo de olhos caramelo que atendia por Marílio contou-lhes que ele era apenas empregado naquela taverna, onde trabalhava em período integral para sustentar pai e mãe doentes. Os donos do lugar, que moravam em um sobrado logo ali, acima daquele estabelecimento, eram homens bons que cederam aquele espaço para curar os feridos sem pedirem nada em troca.
- Lun e Nola não voltaram depois do motim - Marílio lhes contou, com pesar na voz. Até aquele momento, já percebera a leve barriga de Viorica, simpatizando ainda mais com aquele casal perdido que percorrera tanto para estar ali. - Tenho certeza que eles não se importariam se ficassem com a casa.
Foi assim que os arandianos encontraram um lugar para ficar.
O sobrado era reconfortante, acessado pelas laterais da taverna. A escada que subia à esquerda do estabelecimento se dava por um espaço estreito e era íngreme, de cimento aparente e sem acabamento. A casa era humilde, mas com janelas bem arejadas e que permitiam a luz do sol entrar, deixando a moradia com um ar menos mórbido e abandonado.
Alaric e Viorica trouxeram sua família junto, por certo. Eram três quartos e eles eram seis. As contas não foram difíceis. O árduo foi lidar com as memórias passadas do tal Lun e Nola. Viorica entendeu o motivo de Marílio afeiçoar-se por eles.
Assim que chegaram, um retrato na estante da saleta mostrava uma família. Lun, um homem de roupas simples e barba mal feita, abraçava Nola, sua esposa, pequenina em seu abraço e segurando a barriga grande. Esperavam um filho, antes do fim trágico e desconhecido. Ela devia estar tão perto do fim da gestação. O coração de Viorica remoeu o retrato e pensou por muito se deveria deixá-lo ali. Por fim, deu-lhes ainda mais destaque sobre a lareira. Apesar da dor de pensar o que tinha acontecido com aquela família, aquela casa era deles. Uma homenagem era o mínimo que podiam fazer.
As paredes eram brancas, mas o carpete tinha uma cor púrpura por toda a sua extensão. Por mais que púrpura fosse uma derivação da cor que mais lhe agradava, Ginevra pensou em como fora de mau gosto aquela escolha de paleta.
Eles se acomodaram ali. Viorica e Alaric pegaram o quarto do casal, deixado com uma perfeita cama de colchão confortável e roupas de cama empoeiradas. Azriel e Ginevra acharam menos doloroso ficar no quarto da criança que nem conseguira nascer. Um berço de madeira estava encostado em um canto quando chegaram, perfeitamente construído em madeira maciça, o qual doaram para um daviliano simpático de nome Cöda, além de distribuírem os presentes que o casal ganhara, como fraldas e roupas. Essa parte foi dolorosa, mas os irmãos foram fortes. Conseguiram, por trocas e conversas e negociações, um colchão para cada um e um colchão de casal duro, que jogaram no quarto dos fundos.
O quarto dos fundos era bem menor que os outros e não passava de um depósito de tralhas da família. Com meio dia de suor e esforço, Azura e Kohan o fizeram confortável. Doaram aos outros o que não lhes era útil e conseguiram espaço para o colchão duro e uma cômoda, onde Azura sempre deixava uma vela. Em um dia em que saiu para encontrar alimentos em meio à cidade praticamente apocalíptica, a garota encontrou em entulhos uma almofada que lhe chamou a atenção. Era um quadrado com o desenho de um dragão meditando, claramente estressado. Ela riu e quis fazer uma surpresa para Kohan. Qual foi sua surpresa quando chegou ao sobrado naquela noite com a almofada debaixo dos braços e encontrou uma espécie de tenda sobre seu colchão. Era uma manta vermelha e furada que Kohan pregara na parede de modo que ganhassem uma espécie de cabana sobre o colchão.
Quando ela abriu a tenda, Kohan estava deitado ali em uma pose engraçada, esperando-a.
- O que é isso? - a garota riu.
- Nosso recanto. Achei confortável, o que achou? - o homem indagou.
Azura ergueu uma das sobrancelhas, pensativas.
- Acho que falta algo.
- O quê?
Ela riu e jogou-se ao lado dele, aproveitando da redoma pessoal que agora tinham ali. Estendeu-lhe o novo pertence.
- Uma almofada de um dragão meditando.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro