49. Armas Nas Mãos e Silêncio
- Eu tive um sonho... singular - Isaac foi o primeiro a dizer alguma coisa quando acordaram daquele sono desconfortavelmente necessário. Parecia que toda a adrenalina da noite passada fora dissipada junto com a tempestade e a dor os mesurou. Tanto a física quanto a emocional.
- Com o que sonhou? - Gaia indagou, espreguiçando-se e sentindo as juntas estalarem.
- Sonhei com Mirza.
O nome fez com que encontrassem novamente o luto que tanto ansiosamente tentavam engolir sozinhos. Os olhos de Nafré cruzaram-se com os de Isaac. Ele a viu triste. A loira pedia para que ele continuasse, de todo modo.
- Ele estava bem. Estava feliz. Estávamos todos em casa, em D'Ávila, inclusive Carú e Coli, e tomávamos aquele chá horrível que ele tanto gostava.
- Gengibre com limão - Gaia lembrou-se com um nostálgico sorriso, conferindo se o pequeno Kaha, ainda adormecido, estava bem.
- Faz bem pra saúde - Nafré lembrou das palavras do amigo com uma risada distante e entristecida. - Ele bebia aquilo sem açúcar, horrível.
- Tina gostava - Isaac recordou-se. - Ela estava lá também, no sonho. Estavam os dois grudados, como sempre estiveram, e ela passava as mãos pelos cabelos dele, coisa que ele nunca permitiu que ninguém fizesse além dela. Tina estava bem e feliz.
Isaac quis que aquela conversa fosse alegre, mas contradisse a si próprio com a voz embargada. Prosseguiu:
- Aí Iara desceu as escadas - recordou-se da noiva e puxou Osi para mais perto, que notou o pequeno coraçãozinho doer à menção da mãe. - Ela beijou Osi e depois me deu um beijo e disse para eles: Temos que ir!, como se fossem apenas... voltar para casa depois de um café da tarde, eu sei lá.
Gaia aproximou-se de Isaac com leveza e discrição. Ela abaixou-se ao seu lado e passou as mãos por seus ombros, em uma tentativa de dizer que estava ali para ele.
- Aí Mirza e Tina deixaram as xícaras do chá ruim em cima da pia e nos deram tchau. Eles seguiram Iara porta afora e... eu acordei - Isaac limpou uma lágrima solitária e forçou um sorriso. - Engraçado, não foi como aqueles sonhos sem pé e nem cabeça em que um elefante sai do banheiro ou você sai na mão com seu personagem de quadrinhos favorito. Foi centrado, foi tão certo.
- Talvez um sinal - Carú sorriu para o homem. - De que ele está bem.
Isaac concordou e levantou-se, inspirando profundamente.
- Estão bem, os três - o crisantiano não concluiu o pensamento, mas não conseguia deixar de pensar o quanto queria estar com eles. Com Iara. Entretanto, sentiu um aperto caloroso em sua mão. O carinhoso Osi o olhava. O pequeno precisava dele tanto quanto ele precisava do pequeno. Sua missão ali ainda se estenderia, mesmo que o reconfortasse pensar que um dia reencontraria as pessoas que amou.
- Para onde vamos? - Nafré desesperadamente impediu que aquela conversa continuasse. A noite não fora fácil, suas olheiras deixavam isso bem claro. Chorou por Mirza, chorou pelo rumo que sua vida tomou. Não queria chorar mais.
Carú tomou a mão do pequeno Coli e arfou.
- Eu estou exatamente onde queria estar - deu de ombros, mesmo que seu corpo demonstrasse nervosismo. - Eu e Coli vamos achar nossa família.
- O tio Cai e a tia Gis - o pequeno completou, falando com eles pela primeira vez. - E o meu tio pequenininho.
Podiam discutir com Carú, mas não ousaram destruir as esperanças do pequeno Coli. Gaia tentou ser polida.
- O que vai fazer, Carú? - indagou. - Todos ouvimos histórias do que tem nessas terras, de que quem entra, não sai. E você quer... se enfiar nessa sinuca de bico por vontade própria, desarmada e com seu filho nos braços, sem comida...
- Olha, Gaia - Carú sabia das dificuldades e sabia que não seriam poucas. Não precisava que ninguém as apontasse de novo -, eu tomei a minha decisão. Para ser sincera, esperava que viessem comigo.
- Por que iríamos? - Nafré questionou.
- Porque temos mais chances juntos. E o que lhes restou agora, sem um plano? - a daviliana os afrontou. - Estão tão perdidos quanto eu.
Isaac bufou.
- Certo, se diz que seu irmão está aqui... por dois meses inteiros...
- Ele está - Carú enfureceu-se por tanta incredulidade em suas palavras.
- Então talvez ele possa nos ajudar também - Isaac admitiu. - Não é bom nos separarmos.
Eles se encararam por longos segundos, até Gaia resolver tomar a liderança. Seus instintos maternos a mandavam cuidar de Kaha e também de Nafré.
- Certo, Isaac - chamou. - Ainda tem o facão?
Isaac tirou a arma da bainha, que sobreviveu à tormenta.
Nafré lamentou ter perdido o arco e flechas no mar.
- Vamos, então - Gaia partiu em direção à mata, opondo-se ao mar. Não sabia se o caminho que seguia estava certo, percebendo então que não tinham exatamente um destino.
A madrugada acompanhou os festeiros até que os últimos que ainda estivessem ali, mesmo com a fogueira apagada e mesmo com a ausência dos deleitosos instrumentos, fossem Viorica e Alaric, noiva e noivo, esposa e marido, por fim.
- Como vamos chamá-lo? - Viorica indagou, ainda seguindo os passos em que Alaric a conduzia.
- Como?
- É. Nosso filho.
- O que acha que é? - o homem indagou.
- Não achou, tenho certeza de que é um garotinho.
- Pois eu acho que é uma garotinha - Alaric provocou-a.
- Sou eu quem está gerando essa criança!
- E daí, fez com o dedo?
Viorica gargalhou e o empurrou, mas ele a puxou de volta.
- Certo. Eu escolho o nome se for uma menina - o homem propôs - e você escolhe se for menino.
- Fechado!
- E aí? - Alaric indagou. - Qual vai ser?
- Só vai saber quando ele nascer.
- Ela - o homem a corrigiu. - E eu vou pensar em um nome lindo para nossa filha, não se preocupe.
A arandiana revirou os olhos, mas não conteve um sorriso. Seu noivo colocou a mão sobre seu ventre e sorriu. Não podiam aceitar que aquela noite perfeita tivesse um fim. Então, dançaram até os pés cansarem, até perderem o fôlego, até o sol nascer, e souberam, naquele instante, que ninguém, por todo o Vale de Awa, podia ser mais feliz que eles dois.
Gisèle detestava aquela sensação. Aquele aperto no estômago que parecia subir-lhe até a garganta. Aquela vontade de chorar mesclada a sentimentos que ela não conseguia compreender, e a dúvida a sufocava. Nada mais ouvia do lado de fora de sua tenda. Nem um passo além do vento que soava como fantasmas tentando assombrá-la. A daviliana revirou-se de um lado para o outro, acomodando-se e desacomodando-se, mas nada lhe tirava as palavras daquela garota de sua cabeça. Nada lhe fazia desviar a atenção de como as palavras de Dante agora pareciam tão certeiras. Era Azura.
Por que estava tão apreensiva?, indagava a si mesma ao fim de cada frase aleatória que lhe emergia aos pensamentos. Queria respostas e elas apresentaram-se para ela de bom grado. E o que fez? Correu. Fugiu. Deixou Azura plantada ali e foi embora. Como conseguiria pregar os olhos naquela noite?
Gisèle chegou à temida conclusão - não conseguiria.
A loira rapidamente levantou-se e colocou um agasalho, rumando para o lado de fora da tenda sem saber o que pretendia fazer. As noites na clareira sempre lhe provocavam calafrios. A escuridão desenrolava-se até sumir nas árvores que balançavam em sintonia com a violenta aragem da alvorada.
- Merda - xingou para si mesma ao tomar a decisão. Ela pulou no lugar, tentando aquecer-se, e colocou-se a andar rapidamente pela clareira escura, costurando as tendas fechadas e silenciosas que bambeavam, umas mais que outras.
Gisèle rumou para a tenda dos recém chegados, dos arandianos e da petrichoriana. Seus pés fincaram-se no lugar ao sentir aquele som estalar na ponta de seu ouvido. A loira sentiu os cabelos da nuca eriçarem ao perceber que o que sentia era medo. Ela ouviu o relinchar dos cavalos, o farfalhar das folhas. Ouviu aquelas vozes que vinham da floresta, de tão próximo a eles.
Uma noite voltou à sua memória: a noite em que eles a encontraram. A noite em que quase perdeu a vida e que não conseguiu defender Caiden, ou Tereza ou mesmo Cöda.
Gisèle obrigou seus pés a correrem em direção oposta. A daviliana desesperadamente avançou como o vento para a tenda de Aurèlia, onde ela dormia sozinha. A loira rapidamente escancarou a lona e viu a mulher lá dentro sentar-se de supetão, acordando assustada.
- Que droga, Gisèle! - Aurèlia sussurrou, estupefata. - O que quer?!
Aurèlia arregalou os olhos ao ver os da loira maiores ainda. Percebeu que algo estava errado.
Gisèle não precisou dizer nada. Aurèlia já estava acordada e pronta para levantar seu acampamento, preparando-se para o que quer que a madrugada lhes submetesse.
Apesar da abrupta reação de Gisèle, Azura sentiu o corpo leve como uma pena. Tudo parecia estar a um passo de ajeitar-se e ela conseguiu dormir, pela primeira vez em dias, sem preocupações, apenas desfrutando do gostoso clima que o casamento de Viorica e Alaric proporcionaram à eles - somado ao delicioso vinho, é claro, que a deixou feliz e cansada, pronta para dormir ao efeito do anestesiante sonífero assim que deitasse em seu canto. Foi o que fez.
Não obstante, o destino não quis vê-los descansar naquela noite. Aproveitou da guarda baixa e do clima de farra para trazê-los novas indesejadas surpresas.
De súbito, todos os seis naquela pequena tenda levantaram-se ao brusco abrir da lona, fazendo a claridade da lua entrar e a desesperadora atmosfera da clareira inundar o recinto.
- O que...? - Ginevra fez menção de questionar, mas foi interrompida. Era Dante quem os olhava.
- Silêncio! Armas nas mãos e silêncio.
Congelaram. Dante os deixou ali, encarando-se sob a luz de Marama.
- Merda - Viorica foi a primeira a tomar alguma atitude. Ainda em completo êxtase pela noite mais importante de sua vida, devastou-se ao imaginar que esta terminaria daquele jeito. Os outros não tardaram em acompanhá-la.
O antes majestoso ambiente festivo e mágico agora encontrava seu completo antônimo. Eles viram o desespero estampado nos olhos dos Kinos, que silenciosamente afastavam-se para o centro da clareira. Aurèlia correu em direção à eles.
- O que está acontecendo? - Azriel foi o primeiro a indagar.
- Achamos que estão aqui - ofegante, a Kino respondeu.
- Quem? - Viorica questionou, já sabendo a resposta.
- Quem mais? - os olhos de Aurèlia focaram-se em Azura, ainda ferida e suturada. - Consegue lutar?
A petrichoriana concordou com a cabeça.
- Então venha. Vamos mantê-los longe.
Aurèlia afastou-se e os deixou ali, tremendo nas bases.
- Mas que filhos da puta, não nos deixam em paz! - Alaric passou as mãos uma na outra, ansioso. Olhou para os outros Kinos, que amontoavam-se no centro da clareira, distanciando-se ao máximo das extremidades. O arandiano voltou-se para sua noiva. - Fique aqui.
- Como assim, Ric? - indignada, Viorica protestou. - Vai ficar conosco!
Os seis se olharam. Azura deu seu passo para trás, já pronta para lutar, chamada em primeira mão pela filha do xamã. Azriel não queria ficar para trás, mas sabia que não conseguiria andar. Kohan ainda estava se recuperando e sabia que não seria útil lá fora. Talvez fosse útil ali, protegendo os incapazes. Viorica carregava uma criança e não era hábil com as armas. Ginevra viu-se em cima do muro.
- Fique, Gine - Alaric decidiu por ela. - Podem precisar de você aqui.
Ginevra concordou. Não queria admitir, mas estava com medo. Pensar nos soldados a fazia lembrar-se daquele fatídico dia em Arande, do dia em que seu pai sacrificou-se por ela, por eles, pelo que ele acreditava.
- Eu fico.
Alaric deu um demorado beijo em Viorica e prometeu voltar. Azura tomou sua adaga e partiu, não sabendo exatamente para onde. A petrichoriana seguiu o bravo povo disposto a lutar, a afastar aqueles homens que não deveriam estar ali. Estragariam tudo se ao menos soubessem da existência daquele lugar incógnito.
- Ei! - uma mão segurou-a pelo ombro, cochichando. Azura viu Gisèle parada ali, estática. Sua boca estava entreaberta, como se quisesse dizer algo para a irmã que acabara de saber da existência, mas não sabia por onde começar em meio à uma corrida contra o tempo.
- Eu sei - Azura sorriu. - Temos muito a conversar, mas é para depois.
- Tome cuidado, então - a loira pediu, mais por necessidade de dialogar com aquela garota que lhe era tão insólita do que por preocupações com ela em um âmbito maior.
Azura balançou a cabeça e lhe deu as costas.
Girou a adaga em mãos e percebeu que a arma tinha tanta sede por sangue quanto ela.
A última coisa que lhe importava naquele momento era a dor que ainda sentia pelo corpo, resquícios e lembranças da última vez em que desapareceu à noite pelo Bosque das Lamúrias.
Andem como se sobre nuvens, camuflem-se como as próprias sombras e apenas defendam-se se necessário, foram as ordens de Aurèlia.
A petrichoriana não sabia ser uma só com a escuridão, mas sabia ser uma só com a natureza, sua conhecida de longas datas. Os pés deslizavam pela folhagem seca e os meros ruídos eram completamente encobertos pelo vento, que meneava as copas das árvores e gritava mais alto que tudo, como se quisesse que aquele povo se escondesse.
À princípio, Azura nada ouviu. Se dependesse de sua visão, teria certeza de estar sozinha, mas sua intuição lhe dizia que seus amigos estavam por perto. Alaric não estava longe, nem o homem de cabelos compridos e amigo de Gisèle. A sensação, entretanto, era de completa solidão.
Por algum motivo, não sentiu medo. Estava cansada daqueles homens de uniforme acabarem com seus momentos de paz tão aprazentes. O que quer que estivessem fazendo ali - se realmente fossem eles - Azura faria sua parte para pôr um ponto final naquela exaustiva história, perseguição de gato e rato.
Por mais que apurasse sua audição, nada distinguia sobre o som dos espíritos a sussurrar pelo Bosque. Seu tino lhe dizia que algo ali estava errado, por mais que aos olhos nus tudo parecesse como deveria ser: o sinistro e completo breu solitário do Bosque das Lamúrias.
Azura sabia que já tinha saído do território delimitado pelos Kinos como seguro, pensando o que faria caso se deparasse novamente com aqueles cães infernais ou coisa pior. Seus ouvidos, no entanto, lhe gritaram algo que apressava-se próximo a ela. Rapidamente escondeu-se nas sombras de uma árvore e prestou atenção.
Passos velosos corriam com desespero em sua direção. Ela podia ouvir os galhos se quebrando, as folhas se remexendo e, em certo momento, o ofegar angustiado de uma mulher.
Por precaução, Azura deixou sua adaga à postos e não baixou a guarda. Seus lentos passos aumentaram a velocidade ao seguir os sons desesperadores da figura e percebeu que, quem quer que fosse, logo daria de encontro com ela.
Em dado momento, a petrichoriana apenas parou, livre das sombras e livre da discrição. Ela apenas aguardou a mulher correr e, correndo, bater de frente com ela, emergindo da escuridão do Bosque. Azura a amparou e amorteceu sua inevitável queda. Foi um segundo intenso em que elas conseguiram se ver sob a luz de Marama.
Azura viu uma linda mulher com olhos verdes e atribulados lhe encarando como se pudessem saltar das órbitas sem aviso prévio. A mulher arrastou-se para longe sem deixar de fitar a petrichoriana. Viu que aquela garota não lhe representava perigo algum.
Antes que qualquer uma das duas pudesse dizer algo, o temido som do trote dos cavalos aproximou-se delas.
- Por favor, me ajude - a mulher implorou.
Azura olhou dela para a escuridão. Não precisou pensar duas vezes antes de ajudá-la a se levantar. O som dos animais correndo em sua direção somaram-se aos animalescos brados dos soldados. A garota percebeu, para seu terror, que eram mais do que daria conta sozinha. Sua decisão foi tomada. Ela tomou o braço da desconhecida e correu, tendo a sensação de que aquela noite teria um final ainda pior do que imaginava.
Acomodada à boa vida que um dia levara, Odile conheceu o desalento da solidão, do frio, da fome e do medo que aquele lugar lhe proporcionava. A rainha fugiu da Pedreira, fugiu de Roto, fugiu do conforto de sua própria coroa e conheceu uma liberdade ao mesmo tempo doce e amarga. Teve de deixar o cavalo que roubou para trás, sendo impossível transpor o muro com aquele animal. Os dias que se seguiram foram difíceis e ela achou estar só, pronta para defender-se com apenas as garras de qualquer animal que pudesse aparecer. Para seu desgosto, algo ainda pior lhe seguiu. Ela devia imaginar que os soldados estariam em sua cola.
E como estavam próximos. Cada dia mais próximos.
Foi em uma noite agradável que eles a encontraram. Odile não cedeu. A rainha correu e correu até perder seu fôlego por completo. O desespero inebriou tanto seus olhos que ela nem ao menos percebeu quando trombou com aquela figura e foi arremessada à lama do bosque.
Rapidamente estudou a garota, que não lhe parecia ameaçadora. Tanto lhe passou pela cabeça - como poderia não estar sozinha? Como poderiam pessoas habitar aquele lugar? Estaria aquela garota tão perdida e só quanto ela? -, mas Odile sabia que fugir e viver eram suas prioridades.
Não precisou implorar por ajuda para que aquela garota de grande olhos e intrigantes tatuagens lhe puxasse pelo cotovelo para longe de seus perseguidores.
Foi como a rainha conheceu Azura.
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