48. Retomar As Rédeas
As copas das árvores do Bosque podiam ser densas o suficiente para guardarem a escuridão e o temor à ela intrínsecos, como podiam também muito bem guardar os crisantianos e davilianos da chuva, que agora parecia cessar aos poucos. A noite naquelas tenebrosas terras lhes causava ainda mais calafrios que a própria brisa gélida que assolava seus corpos ensopados - da água do Estreito e das lágrimas de cada um.
Eles armaram um breve acampamento sob uma densa árvore, próximos o suficiente de onde atracaram na praia para que Nafré os reencontrasse quando decidisse por voltar.
Isaac mostrou-se experiente. O homem sabia como acender o fogo utilizando apenas duas pedras, o que não foi fácil.
Quando conseguiram fogo, a noite tornou-se um pouco menos angustiante.
Gaia colocou rapidamente o pequeno Kaha ao lado das chamas, que acalmou-se aos poucos com o calor a secar-lhe o corpo.
- Sinto muito, pequenino - a crisantiana passou as mãos pelos míseros fios de cabelos daquela criança. Era um milagre que ainda estivesse viva. - Você é um sobrevivente, príncipe.
O calor os acalmou aos poucos. Um a um, pegaram no sono, fazendo o possível para acomodarem-se pela terra molhada sob as árvores do Bosque. Esgotados, cederam à exaustão do corpo e entregaram a vida ao destino, torcendo para que nada lhes devorasse as cabeças durante a noite.
Gaia, entretanto, não quis dormir. Conseguiria, se tentasse, mas sentou-se nas raízes daquela majestosa árvore e encolheu-se nas roupas que secavam aos poucos.
Ela analisou-os. Viu o pequeno príncipe tirar um sono tranquilo. Osi embrulhou-se no abraço do pai, que foi o primeiro a ceder. Carú e Coli conversaram sobre as aventuras que viviam até pegarem no sono. Gaia estava só.
Um som ao seu lado a despertou, assemelhando-se a um galho se partindo. A crisantiana rapidamente voltou sua cabeça para a esquerda, a princípio assustando-se ao vê-la aparecer ali.
Nafré a olhou, ensopada da chuva que ainda caía. Seus cabelos escorridos e pesados grudavam por seu rosto e peito, e seus lindos olhos pareciam ainda mais claros. Esteve chorando, Gaia observou. O rosto da irmã mais nova transformou-se em uma máscara que tentava sem sucesso segurar a tristeza. Nafré despedaçou-se quando Gaia abriu os braços.
Seus soluços ao jogar-se no colo da irmã mais velha foram altos o suficiente para acordar os outros, que nada disseram. Apenas a viram chegar bem e voltaram a descansar.
Nafré sentiu-se minúscula naquele abraço e Gaia permitiu-se acompanhá-la em suas lamúrias.
- Me desculpa - a loira balbuciou.
- Sou eu quem me desculpo, Nafré - a irmã a apertou com força, ignorando o quão molhada ela estava. - Eu devia ter estado lá por você.
- Eu não devia ter te cobrado tanto... - Nafré limpou as próprias lágrimas e olhou nos olhos da irmã, desfazendo aquele abraço, mas não a proximidade. - Você fez o certo. Eu te segui porque eu quis e... Eu só... - Nafré levou as mãos ao peito. - Está doendo, Gaia.
Mirza. Gaia viu o quanto se aproximaram, os dois. Ele foi o porto seguro que ela não foi.
- Eu sinto tanto... - Gaia arrumou os cabelos molhados da irmã.
- Nada disso foi sua culpa - a mais nova balançou a cabeça e levou as mãos ao rosto. - Ele morreu porque eu voltei. Porque se distraiu comigo.
- Não é verdade.
- Você não estava lá!
- Nafré - Gaia procurou pelas palavras certas. - Talvez tenha sido o melhor.
Os distintos olhos de Nafré a encararam com indagação.
- Ele está livre dessa guerra agora. Está com os Deuses. Está com a esposa que tanto amou.
Nafré lembrava-se de ouvi-lo contar sobre Tina. Ele era um homem apaixonado. Pensar daquela forma a deixou menos angustiada.
As duas foram deixando a conversa morrer aos poucos e deitaram-se lado a lado, abraçadas e aquecidas, reconciliando-se.
- Sei que não fui seu porto seguro quando precisou e agora você está tão independente e forte, mas... - Gaia tirou a dor do peito - posso tentar ser ao menos o seu cantinho? - Gaia ouviu a irmã rir. - É. Um lugar pra você chorar quando precisar.
A loira a olhou com um sorriso cansado e fechou os olhos.
- Você é tudo o que tenho, Gaia.
A noite foi regada a amor. Música, calor, comida, mas principalmente amor.
As estrelas pareciam ainda mais brilhantes, se fosse possível. Pareciam ameaçar escorregar dos céus para dançar ali com eles, os livres Kinos, na campina que esqueceu-se dos problemas por um dia.
Apesar de todas as exuberantes belezas, nada comparava-se ao sorriso daqueles noivos após serem consagrados, finalmente, como marido e mulher. Viorica e Alaric achavam que o amor não podia ser mais forte, não sabendo o quanto estavam errados. Agora eles não eram só dois, eram três. Eram centenas, unidos ali para prestigiar o amor dos arandianos que tiveram o privilégio de fugir da guerra. O xamã os casou.
O delicioso aroma do javali nas brasas da grande fogueira inundava as narinas dos extasiados Kinos, que ainda dispunham de deliciosas frutas que pareciam incrivelmente maduras e suculentas.
Azura deliciou-se com um pedaço do grande javali que seus novos amigos lhe trouxeram, os gêmeos Tui e Lia. Tinham seus cinco anos, o garoto e a garota, e as peles negras como a noite, que refletiam o brilho de Marama. Os sorrisos eram estonteantes, os das duas crianças que apegaram-se tão rapidamente à petrichoriana, a garota que conversava com os dragões.
Ela brincou de bola, os viu dançar, os viu brigar, como típicos irmãos, logo antes de sentar-se em um tronco de árvore e apenas os observar brincar com outras crianças que iam e vinham. Pensou em Gisèle e não conteve-se em procurá-la pela clareira. Entretanto, quem encontrou foi seu irmão, o homem que um dia tomou por tal. Düran timidamente aproximou-se deles.
- Tio Düran! - tanto Tui quanto Lia correram para os braços daquele homem.
Düran sorriu e abaixou-se para receber um deleitoso abraço dos pequenos.
- Oi, Tui! Oi, Lia! - o homem levantou-os, um em cada braço, e Azura pôde ver o carinho que seus novos amigos tinham por ele.
- Tio Düran, você já conheceu a tia Azura? - Lia carinhosamente passou as mãos pelos cabelos do homem ao indagá-lo.
Düran timidamente trocou olhares com Azura, que não demonstrou reação alguma.
- Já tive o prazer de conhecê-la, sim.
- Ela é linda, né, tio? - Tui cochichou em seu ouvido, o que fez Azura permitir que uma risada escapasse enquanto girava o graveto onde outrora jazia o pedaço de javali em mãos.
Azura mostrou-se impaciente. Não se sentia bem com a proximidade dele, mas a conversa com Lírio estava fresca em sua mente.
- O tio pode conversar com a moça linda a sós por um minuto? - Düran indagou.
Tanto Tui quanto Lia levaram as mãos à boca, rindo ao serem colocados no chão. Os dois gêmeos afastaram-se e o ar pueril os seguiu, deixando apenas a atmosfera sobrecarregada e intensa ali entre os petrichorianos. Todavia, o simples fato de a garota não estar esbravejando-se para cima dele e dizendo as duras palavras que ele merecia ouvir, deram à ele a coragem de indagar:
- Podemos conversar agora?
Azura, para sua surpresa, concordou com um aceno de cabeça ameno.
- Acho que isso merece um ponto final.
A garota levantou-se e ficou cara a cara com ele. Apenas de pensar na conversa que teriam, sentiu-se exposta demais ali. Ele compreendeu.
- Por que não me segue?
A garota mordeu o lábio inferior e cruzou os braços, concordando. Düran ditou o caminho e ela o seguiu com alguns passos de distância. O homem a guiou para sua tenda. Ele abriu a lona e deixou espaço para que ela entrasse, o que ela fez com certa hesitação. Aquele era um cubículo pequeno para se estar com ele, mas privado o suficiente para tocarem em assunto tão intrincado.
Assim que Düran fechou a tenda, eles novamente mergulharam na escuridão. Azura viu-se desesperada pela entrada de ar puro, já que o ar viciado daquele espaço exalava o aroma natural aprazível daquele homem, que lhe trazia boas lembranças e contrastava drasticamente com seus atuais sentimentos.
Uma vela acendeu-se entre eles, iluminando o espaço. Düran a colocou na grama e levantou-se, encarando a mulher. Não tinha palavras para começar aquela conversa. Tinha medo do resultado dela.
- Eu tenho muito a dizer, Azura - conseguiu pronunciar - e quero que escute antes de falar qualquer coisa. Quando eu terminar, diga o que quiser, faça o que quiser, coloque seu ponto final nisso, mas não me mate de sua vida antes de eu lhe contar tudo, por mais que não faça diferença alguma em como me vê agora.
Azura ainda estava com os braços cruzados e não conseguia sustentar aqueles olhos que procuravam pelos seus. Seu silêncio fez com que ele se aproximasse, apenas um passo. Ela não tinha para onde fugir. Ele recordou com pesar um passado próximo e que parecia ser tão distante.
- Não vou culpar o amor - Düran pronunciou com a voz cincada -, por mais que eu saiba o quanto foi desesperador querer lhe dar o mundo e não ter um tostão. Eu não tinha percebido ainda que você não se importava com míseras esmolas tão pobres quanto o dinheiro sujo.
A petrichoriana engoliu as palavras que queria dizer ali, percebendo o quão indigestas elas eram.
- Quando fiz o que fiz, quando vi as consequências exorbitantes, quando vi que perdi tudo, que perdi você, minha família, minhas terras, e que tudo aquilo foi culpa minha... eu não quis mais viver - o homem prosseguiu. - Você me deixou lá, aos pés do penhasco e eu não sei quanto tempo fiquei ali, esperando que o destino me levasse. A noite passou, o fogo se apagou com a chuva da madrugada e eu vi a dor que eu deixei, o erro crasso que eu cometi e... eu estava com as riquezas que eles prometeram pesando no bolso como se banhadas do sangue de todos ali. Eu não aguentei. Eu me levantei e caminhei até o penhasco.
Lágrimas brotaram nos olhos da petrichoriana.
- Eu estava pronto para dar um passo em direção ao abismo e mergulhar nas pedras, no mar, acabar com a minha vida como a de Arin acabou, no mesmo lugar. Era o mínimo que eu poderia fazer. Os deuses nunca me perdoariam, você nunca me perdoaria, eu nunca me perdoaria e não conseguiria viver com isso. Tenho certeza que tentei por mais de uma hora quando percebi o quão covarde eu era para mesmo tirar minha própria vida.
Azura limpou as lágrimas que escorreram, ainda mantendo a feição duramente impassível. Düran prosseguiu.
- Eu caí de joelhos novamente, ouvindo a solidão tétrica que eu mesmo tinha criado e... ouvi mais que isso. Um grito pedia por socorro. Era uma criança e estava chovendo, escuro, difícil de ver e ouvir. Eu voltei para a floresta e gritei por ele. E ele gritou por mim, até eu achar um garotinho. Era Pedro o seu nome e ele tinha seus sete anos.
A petrichoriana lembrou-se de Pedro, o garoto que vez ou outra gostava de brincar com Ava-Lee e as outras crianças.
- Pedro estava vivo, mas ferido, e vi que os Deuses precisavam que eu ao menos o ajudasse antes de partir. O garotinho me disse que tinha família em D'Ávila. Eu tomei Pedro no colo e nós deslizamos pela enlameada floresta até chegarmos à praia, onde eu encontrei o pequeno bote dos pescadores atracado nas pedras. Com as minhas poucas habilidades de navegação, chegamos a D'Ávila ao amanhecer. Eu paguei os melhores médicos para Pedro e passamos o dia procurando pela família dele. Quando finalmente achamos, Pedro não precisava mais de mim, e me vi sozinho novamente com a minha culpa.
- Você ficou com o dinheiro? - Azura cerrou as sobrancelhas.
- Teria sido ainda mais em vão, não? - Düran ergueu os ombros, envergonhado. - Doei tudo, porque não precisava mais.
- E por que não?
- Porque eu tinha desistido da vida, Azura - o homem prosseguiu. - Eu estava pronto para morrer, mas os Deuses não me levavam e eu achava que esse era meu castigo, ou mais uma chance. Então eu doei toda aquela grana para quem precisava, ali em D'Ávila, comprando apenas o suficiente para sobreviver alguns dias e eu entrei no Bosque. Já que eu estava pronto para acabar com tudo, achei que seria histórico entrar ali e ser devorado por alguma coisa extraordinária, como dragões e cães infernais. Mal sabia eu que tudo isso aqui estava escondido sob nossos narizes o tempo inteiro.
Düran hesitou por apenas um instante, perdido nos próprios detalhes de sua história.
- Foram dias e noites difíceis, acho que percebeu. Não é fácil lá fora. Eu me obriguei a comer e beber, aprendi como ficar bem por minha conta e risco e... certo dia, encontrei Aurèlia. Ela não era nada parecida com essa mulher aí que você conheceu. Aurèlia fingiu-se indefesa, com a perna machucada, quebrada, com a comida acabando, e eu a ajudei. Ela me lembrava muito de você e eu apenas não... Enfim, eu a carreguei, fiquei de guarda enquanto ela dormia, dei toda a minha comida e... ela achou que eu era digno para estar aqui. Para ser um Kino e ter uma nova chance. É aqui que estou há dois meses. Eu quis matar aquele homem do passado, aquele Düran que me causava tanta dor pela dor que causei, mas eu sentia necessidade de lembrar daquilo, porque sabia que ainda a veria.
Os lábios de Azura tremularam.
- Eu sabia que a veria e queria que você me visse como Düran, nascido de Petrichor, o homem com quem cresceu e que precisava lhe contar tudo isso antes de você decidir o que fazer - o homem encerrou sua sentença.
A petrichoriana percebeu que aquele espaço era para sua fala, mas ao abrir a boca, nem uma palavra conseguiu escapar. Ela engoliu um soluço teimoso e ousou olhá-lo nos lindos olhos, sentindo a dor ao fazê-lo. Ele não deixara aquilo mais fácil.
- Você me perdoaria? - a pergunta de Düran foi soprada com mais dificuldade do que contar aquelas histórias, pois ele já esperava a resposta e não sabia se estava pronta para ela.
Azura cansara de mostrar-se forte. Ela oscilou no lugar, trocando o peso de perna para perna. De repente estava difícil demais encará-lo. Ela levou uma das mãos à boca e engoliu as palavras chulas que queria dizer, despertando um lado ajuizado.
- Eu te perdoo, Düran - Azura viu os olhos daquele homem dobrarem de tamanho e brilharem, mesmo sob a fraca iluminação daquela chama que os separava. - Mas não o perdoo por você. O perdoo por mim. Porque esse sentimento horrível de... de ódio e zanga está me matando. O perdoo porque quer seguir sua vida e a culpa o prende. Mas eu nunca vou esquecer. Nunca.
Azura o contornou e ameaçou sair da tenda, querendo que fosse aquele seu ponto final, mas sentiu o toque do homem em seu punho, delicado, a mantendo ali.
- Espere - Düran pediu, vendo que os olhos de Azura estavam tão banhados quanto os seus. Ele tinha mais a dizer. Parecia que nada seria suficiente. - Entendo se me odiar pelo resto de nossas vidas, mas tenho uma proposta.
Düran aproximou-se de Azura e ela quis correr, mas aqueles olhos a prenderam ali. Fez questão de ao menos livrar seu punho.
- O que quer?
- Que me ajude a matar o passado - Düran pediu. - Não perdoe aquele homem, ele não merece. Eu nunca o perdoaria. Mas e se... pudéssemos começar do zero?
- O que quer dizer?
- Quero dizer que... se pudéssemos esquecer daquele Düran, eu abriria mão de toda a nossa história para ter outra chance de conhecê-la.
Azura entendeu aos poucos onde aquele homem queria chegar, convencendo-se aos poucos daquelas palavras. Pareciam um caminho mais fácil.
- Você não precisa dar uma outra chance para Düran de Petrichor, Azura, mas eu adoraria se desse a primeira chance para Düran, dos Kinos.
Uma segunda chance. Azura arfou e limpou algumas lágrimas que ainda molhavam seu rosto, reluzindo à luz amarelada que ameaçava apagar-se. Seus olhos cinzentos não respondiam que sim, mas não lhe disseram um temido não. Düran arriscou-se naquele momento. Não poderia deixá-la ir embora de novo sem tentar.
Ele estendeu-lhe a mão.
- Te encontrei na floresta toda estilhaçada por monstros do Bosque e ainda não sei seu nome - Düran entrou na própria brincadeira, esboçando um sorriso fraco. - Sou Düran, Kino, e adoraria conhecê-la.
Azura deixou seu lado emocional mostrar-se ao rir vagamente daquele homem. Estava cansada. Queria jogar-se ali naqueles braços, mas lembrou-se de que aquele Düran estava morto e que aquele era apenas uma figura que ela se permitiria conhecer. Reconhecer.
Para o alívio de Düran, Azura estendeu a mão e o cumprimentou.
- Azura - sorriu - de Cinzas.
Ela deixou o mistério ali com um sorriso que não conseguiu conter, por mais que tentasse. Deixou Düran em sua tenda, estático, tentando processar aquelas palavras. Se aquele homem mudou, não foi o único. Sua vida desmontou-se em pedaços para ela unir aos poucos, e encontrava mais e mais peças que não sabia faltarem até aquele instante. Tinha muitas a colocar em perspectiva ainda.
Azura deixou a tenda de Düran determinada. Nem ao menos pensou antes de rumar até a garota. O clima de festa a abraçou novamente quando a petrichoriana caminhou a passos certeiros até a loira. Gisèle a saudou ao vê-la se aproximar.
- Ei, Azura! - a loira ergueu um dos braços em saudação, enquanto rodopiava com Cöda no outro.
A petrichoriana perdeu a fala naquele momento. Queria acabar logo com aquilo que não sabia como começar e nem se aquele seria o momento certo. Entretanto, a árdua conversa com Düran anestesiou-a.
- Posso conversar com você?
Gisèle percebeu a tensão naquela voz, em um evidente contraste com o clima festivo.
- É claro que pode - Gisèle rapidamente colocou Cöda nos braços de Caiden e seguiu a recém feita amiga até as extremidades da clareira, beirando as árvores. A luz da fogueira fracamente as alcançava ali e a distância da música e das boas vibrações fez com que Gisèle mergulhasse naquele mesmo clima de tensão em que a petrichoriana se encontrava. - O que foi?
Azura sentiu o coração tropeçar. Cruzou novamente os braços, percebendo o quanto aquele gesto era naturalmente defensivo.
- Pode me falar de seus pais?
Os olhos azuis da loira cintilaram mesmo no escuro. Suas sobrancelhas uniram-se em uma incredulidade evidente às palavras da outra. Sem intenção, soltou uma risada debochada.
- Por que quer saber de meus pais?
Azura massageou as têmporas. Não sabia como fazer aquilo.
- Por favor? - pediu.
A daviliana, ao ver a inquietação da recém chegada, cedeu às respostas.
- Não sei o que quer que eu diga, Azura. Meus pais conheceram-se em Cinzas e mudaram para D'Ávila antes mesmo de eu nascer. Não me contaram muito mais sobre o passado deles e, para ser sincera, me arrependo de não ter perguntado. Eles eram...
- Amara e Santi - a petrichoriana completou.
Gisèle arfou, incrédula.
- Como sabe o nome de meus pais? - indagou. - Quem é você?
Azura soprou o ar de seus pulmões e deu um nervoso passo à frente.
- Qual sua primeira memória, Gisèle? - a garota tomou as agora frias mãos da loira, que não recuou, por mais que sentisse medo e mais algum sentimento indecifrável. - Qual a primeira coisa de que se lembra em sua vida?
Gisèle riu para os céus, uma risada nervosa e quase inexistente.
- Eu não sei, eu... acho que... estar brincando em minha casa, em D'Ávila, em um dia quente... Azura, não sei onde quer chegar. Como sabe quem são meus pais?
Azura lembrou-se o quanto a revelação lhe machucou e apertou um pouco mais as mãos de Gisèle entre as suas.
- Por que são meus pais também.
Os Deuses sabiam que ela tentou entender. Gisèle ouviu as palavras de Azura estática, não sabendo ao menos se aquilo era por opção sua. Ouviu que nasceu em Cinzas e que aquela ali, parada à sua frente, era sua irmã. Ouviu que seus pais lhe deram ao mundo por mando dos próprios Deuses e achou que Azura estivesse insana, até ouvi-la contar cada detalhe de seus pais. Os rostos, cabelos, estatura, até mesmo as vozes e uma linda marca de nascença no pescoço de Amara e a barba rala e falhada de Santi.
Gisèle rapidamente lembrou-se das palavras de Dante. De que ela tinha uma importante relação com alguém há muito perdido no mundo e que aquela pessoa, quem quer que fosse, mudaria o rumo das cenas.
Azura lhe contou como soube. Lhe contou da própria história como se despejasse o mundo sobre as costas de Gisèle.
A loira ouviu. Processou. Mas não acreditou. Aquela não podia ser sua irmã, porque isso significaria que seus pais mentiram para ela durante toda a sua vida e guardaram um segredo daquelas dimensões até mesmo nos leitos e últimos instantes de vida.
A daviliana puxou as mãos geladas de volta para si e evitou ao máximo encarar Azura. Ela afastou-se sem dizer uma palavra, sabendo que aquele era o fim de sua noite, e Azura não a seguiu. Lhe deu espaço e orou para que tudo se ajeitasse logo.
A petrichoriana viu-se exausta de tanto tentar retomar as rédeas de sua vida e meneou em direção à sua tenda. Queria sossego por pelo menos uma noite.
Para seu desagrado, o destino lhes tinha outros planos.
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