38. Deixe Que Me Temam
Talvez devesse preocupar-se mais com a aparência, ele sabia.
Sohlon era um homem bonito, antes de ser rei ou assumir qualquer cargo que lhe trouxesse poder.
Nos últimos dois meses, entretanto, deixara a barba por fazer e os cabelos cresceram desenfreadamente. Ele voltara a beber com frequência e não se lembrava de como era sorrir.
Antes, Sohlon ainda carregava a carranca por onde fosse. Ele resumia os sorrisos à Odile e, por pouco tempo, à Kaha, seu pequeno herdeiro.
Agora, entretanto, acordava de frequentes pesadelos que o assolavam noite sim e outra também. O ar carregado arrastava-se ao seu redor pelo dia inteiro. Tudo o que fazia para distrair-se era lutar com Roto.
Nem mesmo podia tentar cavalgar pelos campos ao redor de Crisântemo. Estava ilhado naquele palacete com a guerra que cravara com o próprio povo.
Naquele dia em especial, Sohlon acordou enfurecido e decidido a fazer algo a mudar.
Reunidos no salão do conselho, as influentes figuras do Vale de Awa estavam mergulhadas no mais profundo silêncio. Nenhum dos homens ousara cortá-lo ao menos para ajeitar-se na cadeira.
O rei olhava janela afora. O dia estava abafado e quente, mas os céus carregavam nuvens nubladas e precipitadas para aquela hora do dia.
- Devem estar curiosos com o motivo de lhes requisitar aqui hoje - o rei cortou o silêncio, permitindo que todos finalmente respirassem em paz.
- Estamos, meu rei - Lorde Mirra o respondeu.
Sohlon voltou-se para eles. Estava claramente cansado, com carregadas olheiras e a aparência descuidada.
- Não quero opiniões e nem mesmo sugestões - o rei prosseguiu. - O que me traz aqui hoje é um informativo.
Em silêncio, os outros aguardaram.
- Vou reabrir as fronteiras de D'Ávila e Arande. Até mesmo da Pedreira. De todos os cantos que ousaram se fechar para mim. Ainda sou o rei dessas terras.
Os presentes tremeram. Eles sabiam que aquela decisão viria logo, e temiam ainda mais por saberem as consequências.
- Meu rei - Lorde Kunys arriscou sua garganta -, está ciente das consequências que sofreremos, certo?
Sohlon soltou o ar pesadamente pelas narinas. Kunys apressou-se a continuar.
- A guerra que está se alastrando por Crisântemo... vai se expandir por todo o Vale, meu senhor.
- Acha que sou inconsequente, Lorde Kunys? - o rei tentou conter a fúria em sua voz. - Eu não sou inconsequente. Eu sou o rei!
Sohlon gritou aquela última palavra, anunciando seu título. Todos mergulharam novamente no silêncio, inclusive Roto, que não mais conhecia seu amigo de tempos.
- Esses merdas aí fora acham que podem passar a perna em mim, mas eu mando na cabeça deles. Eu mando na cabeça de vocês! - ele bateu os punhos nas mesas, pouco se importando com a dor que alastrou-se imediatamente por suas falanges. - A mim não me importa mais Profecia alguma, a mim me importa que me temam! Sigam as leis, matem as crianças, façam as mães chorarem e se lembrarem que quem rege cada canto dessas terras sou eu!
O rei arrumou a coroa em sua cabeça.
- Marechal - ele voltou-se para Roto, com a voz mais amena, mas ainda carregada de furor -, tenho ordens diretas ao seu exército.
Roto levantou-se e aguardou as palavras de seu rei.
- Abra as fronteiras que nos impedem de entrar e comercializar. D'Ávila, Arande, a Pedreira, Vocra, Castilho, onde quer que seja. Mate quem ousar se impôr e lembre a eles quem é que dá as ordens aqui. Deixem que saibam o que aconteceu com Petrichor e lembre-os de Cinzas.
- Pode deixar, meu rei - Roto o reverenciou.
- Ainda não acabei - Sohlon prosseguiu. Roto manteve-se no lugar. - Quero minha esposa aqui.
Os olhares do rei e marechal se cruzaram, trocando mais que informações entre patentes. Eram ali os velhos amigos, e o marechal estava preocupado.
O rei prosseguiu:
- Darei o dobro de qualquer delação para quem me trouxer minha esposa e meu filho - Sohlon já havia decidido aquelas ordens há muito tempo. - Agora, vá. Deixe que eles saibam - Sohlon sentou-se em sua cadeira na ponta da mesa novamente enquanto Roto saía com as ordens que mudaria drasticamente o rumo do cenário. - Deixe que me temam.
A noite caiu sobre a Pedreira. O límpido céu do campo os sorriu em mais uma noite fresca.
Odile lia à luz de velas, um hábito que abandonou por tanto tempo e não percebeu o quanto sentia falta.
Lia histórias de épocas distantes, ficções transcritas que ela encontrou na humilde estante de livros daquela família do interior da Pedreira.
Ela demorou a concentrar-se no que lia, entretanto. A conversa com o garoto Fin não desaparecia de sua cabeça.
Odile rapidamente contou a história de Daisy, a garota que apaixonou-se por um homem do Porto. A história lhe machucou menos daquela vez. Odile percebeu que, em certo ponto, ganhara a simpatia de Fin, o filho primogênito da família.
O final daquela história, entretanto, Odile inventou. Estimou um final mais feliz para Daisy.
- Meu pai acabou por aceitar nosso amor - ela contou ao garoto, sorrindo com as palavras que queria que tivessem sido verdade. - Ele cancelou o casamento arranjado com o nobre de Castilho e eu decidi por viver com aquele homem incrível. Eu fui morar no Porto das Rosas e larguei tudo para viajar com meu mais novo marido pelo Mar de Pétalas e além.
- Não há nada além do Mar de Pétalas - Fin comentou, entretido com a história.
- Nunca saberemos, não é? - Odile sorriu para o chão e cruzou os braços.
- E... o que aconteceu com ele?
Um sorriso triste desenhou-se nos lábios de Odile. Nos lábios de Daisy. Até desmanchar-se.
- Ele ficou doente - ela mentiu, mas ainda queria um final ameno para aquela história. - Meu pai faleceu e não me deixou riquezas. Corri para cá, para Pedreira, procurando uma rota para D'Ávila e uma tia distante, mas incrível curandeira... Acabei ficando presa aqui quando fecharam as fronteiras.
- E por que ir até sua tia em D'Ávila para procurar medicina?
- Não tinha dinheiro - ela rapidamente respondeu, percebendo a verdade em suas seguintes palavras. - As doenças correm soltas por Crisântemo porque ninguém tem o dinheiro necessário para ir atrás de um bom tratamento.
Seu peito doeu ao admitir o que já sabia.
- E... como sabe que ele está bem? - Fin perguntou.
Odile sorriu.
- Eu sei que está - sua voz entregou aquela mentira, entretanto.
Fin viu que ela não mentia. Odile sentiu-se vitoriosa por conseguir omitir tanto e contar tanto. Gostou da história que criou para Daisy.
- Vai voltar quando as fronteiras se abrirem, certo? - Fin questionou.
- Vou, Fin - a rainha concordou com a cabeça. - Eu prometo.
Fin pareceu amansado. Soltou o ar e relaxou a postura pela primeira vez em frente à ela.
- Certo, então - ele concordou.
- Vai confiar um pouco mais em mim?
Fin riu e afastou-se. Odile sorriu ao vê-lo sumir pela porta do celeiro e a pequena Lili voltar com cautela com duas xícaras de chá de hibisco - com bastante açúcar. Odile surpreendeu-se com o pensamento. Percebeu o quanto gostava de estar lá.
A mulher voltou à realidade quando ouviu aquele desesperado grito.
Sua espinha dorsal congelou.
Odile rapidamente fechou o livro e apagou a vela. A rainha irrompeu pela porta do celeiro e viu, além da escuridão da madrugada, uma luz acesa na casa da família que a acolheu. Os gritos de Celeste retornaram aos seus ouvidos. Sem hesitar, Odile correu o máximo que suas pernas permitiram em direção à eles.
Odile esmurrou a porta da frente da casa da família, agora ouvindo claramente os gritos de dor de Celeste.
Quem abriu a porta instantes depois foi a pequena Lili, aos prantos e assustada.
- Daisy - ela murmurou para a mulher.
Lili podia ter seus dez anos, mas ainda era leve e pequena. Odile tomou-a nos braços e correu para dentro da casa, fechando a porta atrás de si.
Ela seguiu os gritos da mulher e a única luz da casa acesa. O cheiro ferroso alcançou suas narinas.
A rainha parou em frente à porta do casal.
A luz de uma única vela iluminava o quarto. Celeste estava na cama com lençóis ensopados ao seu redor. Recostada na cabeceira da cama, segurava a barriga em mãos e gritava com a dor lancinante das contrações. Odile viu o sangue.
Pöli tentava acalmá-la e fazê-la respirar. Fin, entretanto, entendeu ali que sua mãe não sobreviveria sem ajuda.
Odile colocou Lili no chão. Ela viu a família em choque. Pöli não sabia o que fazer.
- Fin - Odile o chamou, tomando iniciativa -, pegue a carroça.
- Não, Daisy - Pöli interviu. - Não posso levá-la ao centro da Pedreira.
- Ela vai morrer sem ajuda, Pöli - Odile tentou manter a voz calma. - Sua esposa precisa de uma parteira.
Fin olhava do pai para mãe. Da mãe para Odile.
- Se aqueles soldados quiserem tirar meu filho apenas por nascer homem...
Pöli sabia que não tinha como ter certeza que aquela criança seria um menino, por mais que acreditasse fortemente que seria. Tinha motivos para temer, à princípio, por mais que não tivesse os contado para Odile. Fin não era sangue de seu sangue.
- Eu lhe garanto, homem - Odile prometeu, olhando tanto para Pöli quanto para Fin, e passando a mão nos cabelos de Lili -, não vou permitir que encostem em um fio de cabelo de sua esposa. Nem de seus filhos.
Aquelas palavras foram suficientes para Fin. O garoto irrompeu quarto afora e tomou a carroça. Com certa dificuldade, Pöli carregou sua esposa aos prantos. Ela não queria ir. Os cinco subiram ali e voltaram para o centro com o máximo de velocidade que os cavalos podiam atingir.
Odile apertou a mão de Celeste durante o trajeto. Rezou aos Deuses para que aquela boa mulher sobrevivesse.
Gisèle sentiu aquele confortável abraço que a pegou de surpresa.
Caiden voltou de um dia fora, suado e cansado, queimado pelo sol.
- Sai, Caiden! - ela o afastou com as mãos. Sabia que ele apenas a abraçava quando estava suado e ela detestava aquilo com todas as forças.
Caiden riu, esfregando-se na amiga loira. Gisèle o esmurrou no peito quando ele a soltou, limpando o suor do amigo de seu corpo.
- Ai, Caiden, como você é nojento!
- Não é culpa minha que sinto saudades suas o dia inteiro, Gis - ele brincou e ergueu os ombros. - O que está fazendo? Me deixe ajudar.
Gisèle carregava dois pesados baldes de água, um em cada mão. Ele tomou-os sem pestanejar.
- Deixe que levo um, pelo menos - protestou.
- Não! Anda, vai, me conta seu dia.
Gisèle riu. Caiden mantinha-se longe por um bom tempo e, quando voltava, voltava com a corda toda. Queria dar toda a atenção que podia para ela, Cöda e mesmo Tereza. Tereza. As bochechas da loira coraram com a lembrança.
- O que foi? - Caiden indagou, vendo as bochechas avermelhadas da amiga.
- Ah, nada - ela balançou a cabeça.
Eles caminharam lado a lado, costurando entre árvores e rumando em direção à clareira.
- Qual é, Gis?
Gisèle riu. Tinha saudades de conversar com ele com frequência. Tinha saudades de vê-lo bem e feliz.
Ela rendeu-se àqueles olhos castanhos pedintes e com ar pueril.
- Certo - Gisèle olhou para trás. Ninguém estava por perto -, tive uma conversa estranha com Tereza hoje.
- Estranha?
- É. Lembra que eu disse que tinha certeza que ela era super caída por você?
Gisèle continuou andando. Os dois adentraram a clareira.
Não obtendo resposta de Caiden, Gisèle olhou para trás. Ele estava parado.
Caiden olhava para frente, estático e estupefato. Sua boca estava semiaberta.
- Está tudo bem? - Gisèle indagou.
Os baldes com água caíram das mãos de Caiden. Ela viu quando aqueles olhos tão familiares transformaram-se em globos oculares completamente negros.
O queixo de Gisèle veio ao chão e ela não encontrou palavras.
Apenas quando viu seu amigo tombar para frente, desacordado, Gisèle gritou por socorro.
Gaia sentia falta de casa. De olhar no espelho de seu quarto e ver aquela mulher habitual, criada da rainha, sustento da casa que dividia com mãe e irmã.
Naquele momento, entretanto, olhava-se através do espelho daquela casa com a qual custava familiarizar-se. Não reconhecia a mulher que refletia.
Seus cabelos escuros estavam mais lisos e caídos, como se alguma coisa na umidade do ar de D'Ávila os puxasse para baixo. Ela não gostou. Sua pele parecia ainda mais branca pela falta de sol. Teimava em esconder-se dentro daquela casa a todo custo, evitando até mesmo o jardim com flores mortas e mato alto que os antigos donos deixaram para trás.
Suas vestes resumiram-se em mangas longas, mesmo quando o calor vinha recebê-los. Odiava as cicatrizes no braço esquerdo, onde a pele fina e flácida pela queimadura lembrava-lhe daquele dia em que tomou as decisões que mudaram o rumo de sua vida. Talvez, de todo o Vale.
Valia a pena, ela pensava.
Kaha acordou com um deleitoso sorriso no rosto. Ela não entendia aquela criança tão pequena, que acordava sorrindo e nem ao menos resmungava.
- Bom dia, príncipe - ela o saudou do berço, deixado para trás pelos davilianos quando a criança da família nasceu em momento inoportuno. O móvel nem ao menos chegou a ser usado.
Gaia tomou o bebê nos braços e o acomodou ali, sentado, como ele gostava, virado para o mundo, e não para ela. Eles se observaram no espelho. Gaia cheirou aqueles cabelos que exalavam o cheiro da pureza.
Kaha estava grande, forte. Seus olhos assemelhavam-se cada dia mais com os de sua mãe. Tinha a pele com a melanina do pai. Mas se sentia bem no colo de Gaia.
Mirza apareceu na porta do quarto. Aquele tempo ali, isolado, o fez certo bem. O homem não suportava mais a vida que levava em Crisântemo. Sentia-se minimamente seguro em D'Ávila, mesmo com o bebê real escondido sob aquele teto.
O crisatiano voltou a trabalhar. Não gostava da ideia de ser sustentado plenamente por Isaac e sua herança. O homem ajudava no descarregamento dos navios cargueiros do porto quando estavam em Porto das Rosas. Agora, entretanto, D'Ávila estava em uma duradoura greve, em que nada chegava ou partia do porto local. Mirza viu-se apenas capaz de ajudar como ferreiro na produção local. Saía cedo e voltava tarde, cansado, suado e, com frequência, queimado. Não se importava, entretanto.
Mirza não tinha família. Ele amou uma mulher, uma vez. Após a morte de Tina por uma gripe avassaladora, Mirza não teve mais motivação de vida. Viu em D'Ávila uma boa oportunidade de recomeçar. E viu naquela família, tão distinta e formada em circunstâncias tão infortunadas, uma campânula aconchegante.
Ele bateu na porta de Gaia ao vê-la conversar com Kaha pelo espelho.
Gaia sobressaltou-se, mas sorriu.
- Bom dia - ele a cumprimentou. - Sabe que dia é hoje?
- Claro que sei - Gaia aproximou-se da porta ao cochichar. Ela olhou para os lados do corredor, vendo-se sozinha com Mirza. - Aniversário daquela criatura emburrada que eu chamo de irmã.
Mirza riu. Ele amarrou o lenço que sempre usava na cabeça.
- Vou trazer alguma coisa pra ela - Mirza encantou-se por Nafré. Tomou-a como uma grande amiga, apesar da boa diferença de idade.
- Mirza... - Gaia sussurrou calmamente -, cuidado com os gastos.
Mirza revirou os olhos.
- Sua irmã merece um mimo de vez em quando, Gaia.
- Eu discordo - Gaia brincou, balançando Kaha de um lado para o outro.
O homem riu.
- Prepare um jantar pra ela, o que acha? Quando eu chegar, fazemos uma surpresa.
- Acho uma boa ideia - Gaia cedeu. - Agora, vá trabalhar. Deixa que eu lido com a aborrecente.
Mirza sorriu e beijou a bochecha de Gaia, fazendo o mesmo com o topo da cabeça de Kaha.
Se sentiu seguro ali e pronto para mais um dia.
Nafré gostava de fugir para os fundos da casa durante o dia. Tinha muita energia e curiosidade, principalmente para saber defender-se.
O dia em que fugiu, em que Conth a ameaçou na própria cozinha, ficou marcado em suas memórias e vinha à tona em seus pesadelos com mais frequência do que ela achava ser normal.
Quando Nafré encontrou o arco e flecha largados no canto da casa, apressou-se a aprender a manuseá-los.
Ela montou nos fundos do quintal um grande alvo com madeiras que coletou nas poucas vezes em que foi às ruas de D'Ávila. Surpreendeu-se quando viu que não estava tão mal assim depois daqueles meses de prática.
- Posso tentar?
Nafré assustou-se com Osi. Ele achou seu esconderijo.
Aquele dia em especial, a loira havia acordado com um bom humor inesperado. Ela estendeu o arco para Osi, que sorriu.
Mesmo o garoto parecia ter crescido naqueles dois meses. Era só uma criança, mas uma criança que aprendeu a amadurecer rapidamente. Foi obrigado, desde a noite em que perdeu a mãe. Era jovem, mas entendia mais do que transparecia.
O garoto negro posicionou a flecha no arco e esperou instruções de Nafré pelo canto do olho.
Nafré riu. Ela mesma não sabia o que estava fazendo.
- Segure assim - sugeriu o jeito que encontrou ser mais fácil. - Agora, mire - o ajudou a apontar para o alvo que criara e viu Osi fechando um dos olhos para focar melhor, com uma careta engraçada. - Agora, atire.
Osi atirou a flecha, acertando pelo menos dois metros distante do alvo.
Ele comemorou com um grito, entretanto.
- Você viu como foi forte?
A garota riu ao vê-lo correr em direção à flecha caída.
Ela sentiu-se observada. Pelo canto do olho, viu que Isaac a estudava com um sorriso simpático.
- O que foi? - perguntou.
- Nada - Isaac deu de ombros. - Fiquei sabendo que hoje é dia de comemorar.
- Aposto que foi Mirza quem lembrou. Se dependesse de Gaia...
- "Se dependesse de Gaia" o quê? - Nafré assustou-se ao ver a irmã aparecer ali com eles. Em um dos braços, segurava Kaha. Na outra mão, segurava um bolo. Nafré sentiu o cheiro de cenoura que Gaia acabara de fazer. Sobre ele, uma vela acesa ameaçava apagar com o pouco vento que os rondava na manhã seca. - Não me faça derrubar isso aqui de propósito.
Nafré sorriu. Um pensamento gostoso se passou por sua cabeça naquele instante em que apagou a vela: talvez pudessem viver ali em paz, afinal.
Em silêncio, introspectivos e ouvindo aos sons da madrugada, os seis sobreviventes calmamente se encontraram ali, onde um dia esteve a cabana que os abrigou por dois meses.
Apesar de quietos por fora, estavam alvoroçados por dentro. Tinham certeza de que era ali que ela estava. Agora, entretanto, não passava de um lugar completamente vazio. Seus pertences estavam empilhados ali, cuidadosamente. Não puderam dizer estar surpresos. Ginevra os avisara diversas vezes. Aquela noite, Puipuiga decidiu que era hora de partirem.
- Não acredito que essa merda da cabana era verdade - Kohan conseguiu cortar o silêncio.
Ginevra deu um passo à frente e foi rumo aos seus pertences. Tinha tanto a dizer e ao mesmo tempo, nada. Ela apertou o amuleto que fez e acabou por salvar-lhes as vidas.
- Gine - Azriel foi o primeiro a chamá-la -, o que eram aquelas coisas?
A bruxa calmamente voltou-se para o grupo. Percebeu o quão abatidos estavam, sentiu a energia pesada que carregavam no peito naquele instante.
- Aparições - apressou-se a explicar, querendo logo findar aquele assunto. - São espíritos do Bosque, mas não os bons. São filhos de Pouri e se alimentam do medo. Entram em nossas cabeças e nos torturam. Não podem nos matar, mas fazem o impossível para que nós mesmos tiremos nossas vidas.
Viorica estremeceu e apertou mais forte a mão de Alaric ao seu lado. Um segundo depois e ele não estaria mais ali, ao lado dela, com vida. O pensamento a aterrorizou.
- O que vamos fazer agora? - a voz embargada da arandiana perguntou. Todos a olharam. Não sabiam a resposta.
- Continuar - Azura sugeriu, de braços cruzados. Levava uma das mãos à nuca, certificando-se de que uma hora o sangue parasse de escorrer dali.
- Pra onde, petrichoriana? - Kohan a provocou, claramente frustrado com meias sentenças.
Azura não o olhou. Ainda não compreendia aquele homem. Hora afeiçoava-se por ele, hora queria esganá-lo. Ele nem ao menos dissera nada sobre quase matá-la. Entretanto, Azura guardou os pensamentos para si naquele momento. Estava cansada e aflita.
- Quer ficar aqui, no meio do nada, esperando outra surpresa do Bosque? - Azura o questionou.
- Se me der uma ideia melhor...
- Cale a boca - as palavras saíram da boca de Viorica. Ela mesma espantou-se com a agressividade com que as disse. Viu as lágrimas que não conseguiu controlar rolarem por seu rosto.
Kohan ergueu as sobrancelhas.
- Como é?
- Disse para calar a boca, Kohan - Viorica abraçou a raiva que sentia naquele momento. - Estou tão cansada de como age em situações difíceis.
- Ah, me desculpe, minha cunhada - debochou, rindo. - Não vejo você fazer nada para ajudar.
Viorica levou as mãos à cabeça.
- Eu não quero saber o que aconteceu com você, mas eu preciso de tempo pra entender o que aconteceu comigo.
- Eu te explico - ele prosseguiu.
- Kohan - Ginevra o censurou, mas o irmão mais velho prosseguiu.
- Aconteceu o mesmo que aconteceu comigo. Com Azura e com Alaric. Esses bichos entraram nas nossas mentes e nos fizeram miseráveis, mas eu só vejo você se fazendo de vítima aqui, Viorica!
Alaric abriu a boca para defender sua noiva, mas Viorica já estava pronta para aquela conversa. A arandiana deixou as lágrimas escorrerem.
- Não estou me vitimizando, imbecil! - ela deu um passo à frente e ficou muito próxima de Kohan. Os outros ao redor sentiram-se desconfortáveis. Não queriam uma discussão naquele momento em que os nervos estavam tão aflorados. Palavras não intencionais poderiam vir à tona. - Eu vi...
Ela cessou sua fala. Guardou-a para si.
- Viu o quê? - Kohan insistiu, imponente.
- Kohan, deixe ela - Azriel pediu.
- Não, me diga o que viu, Viorica!
Viorica se sentiu insana. Todos a olhavam.
De repente, as lágrimas que escorriam não pareciam mais de raiva, e sim de pura tristeza. Ela levou as costas de uma das mãos em frente ao rosto para proteger-se das lágrimas que lhe queimavam.
Kohan sentiu uma pontada de remorso ao vê-la assim.
Não esperavam mais uma resposta quando ela veio.
- Eu vi algo que eu queria muito - ela admitiu. Precisava colocar certas palavras para fora, mesmo que seu olhar se focasse nas folhas secas aos pés deles. - E eu fiquei tão feliz e... isso foi arrancado de mim com tanta brutalidade....
Os outros mantiveram o silêncio por alguns segundos. Ginevra entendeu.
- Está grávida.
Viorica limpou as lágrimas e deu de ombros. Não conseguiu ainda olhar para Alaric.
- Eu não sei - ela conseguiu murmurar. - Eu não sei mais.
Ginevra deu um passo em sua direção e acabou com a distância entre elas. A bruxa colocou a mão sobre seu ventre. Lágrimas brotaram também de seus olhos quando ela sorriu.
- Está, Vio - ela confirmou.
Viorica chorou de emoção. De alívio. De cansaço. De medo. Ela cobriu os olhos com as mãos logo antes de sentir o forte abraço de Alaric sobre ela, que tentava segurar a emoção em vão antes de derrubá-la sobre seus ombros.
Apesar dos pesares daquela noite conturbada, algo bom surgiu ali.
Deco nasceu. Celeste o batizou assim que o tomou no braço.
- Ele tem cara de Deco - Lili concordou, debruçada sobre a mãe e o novo irmão.
Eles correram até o centro e Fin quase acidentou-se ao descer da carroça ainda em movimento à procura de ajuda.
A família encontrou sua benção com uma parteira local que acordou com a baderna do lado de fora de sua casa.
Pöli lhe ofereceu o pouco de dinheiro que tinha em troca de um parto seguro tanto para sua esposa quanto para seu filho. À Celeste foi cedido o conforto de uma cama e lençóis limpos. A parteira colocou Deco no mundo com sucesso e sumiu ao ver o menino chorar, deixando a família em paz.
Pöli chorou ao beijar a cabeça de seu novo filho, apaixonado pela criança.
Fin ainda tremia. O adolescente olhou para Odile no canto do quarto, sentada e imóvel, absorvendo a cena. Ainda não estava tranquila.
- Obrigado.
Odile surpreendeu-se com aquela palavra vinda de Fin. Ela sorriu em resposta.
- Não me agradeça.
Estavam em paz na madrugada silenciosa até ouvirem o relinchar dos cavalos agitados do lado de fora.
A família congelou. Mesmo a pequena Lili e o novo integrante, Deco.
- O que foi? - Lili indagou.
Odile, ao lado da janela, puxou a cortina para o lado e teve certeza de empalidecer.
- Merda - ela viu os soldados se aproximando, mesmo que ainda distantes. - Aquela mulher abriu a boca.
Pöli tremeu, assim como Celeste.
- Eu disse que não deveríamos ter vindo! - a mulher deixou as lamúrias rolarem.
- Eles não podem fazer nada - Fin sussurrou para si mesmo. Os pais o olharam.
Odile viu que um segredo desenrolava-se entre eles. Um segredo que ela desconhecia.
- Sabe que não é meu filho, Fin. Não de meu sangue - o pai o lembrou.
Odile levou as mãos ao rosto. Isso com certeza estaria nos documentos daquele garoto.
- Eu não me importo! - Fin gritou. Deco chorou.
- Mas eles se importam! - Pöli esbravejou.
- Andem - Odile se levantou, pasma, e tomou Deco dos braços de Celeste.
- O que está fazendo? - Celeste protestou.
-Vamos fugir, andem! - Odile esbravejou.
- Daisy? - Lili a seguiu para a porta, não deixando outra opção para a família. Eles voltaram para a carroça e fugiram, torcendo para que fossem mais rápidos do que os que os procuravam.
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