Azriel sonhava profundamente naquela noite. O arandiano gostava do canto que adotou naquele casebre. Era um quarto isolado, pequeno, onde ele jogou um colchão velho que encontrou no quarto do andar de baixo e ali encontrou refúgio. Deixara o quarto de casal para o casal e os outros três não se importaram em dividir o quarto de hóspedes, por mais que Kohan frequentemente reclamasse que a irmã e a petrichoriana não calavam a boca durante a madrugada, trocando ideias e feitiços e teorias da conspiração.
O arandiano despertou abruptamente ao som de um grito. Azriel sentou-se sem hesitação e viu o escuro. Nenhuma iluminação entrava no pequeno quarto.
O garoto forçou o ouvido mais profundamente. Esforçou-se a ouvir algo.
Nada. Nenhum mero som pôde repercutiu na casa. Ele voltou a se deitar. Mal conseguiu fechar os olhos quando ouviu novamente. O grito. Dessa vez, reconheceu perfeitamente. Era Ginevra.
Azriel não hesitou mais um segundo sequer em abrir a porta de seu quarto e sair correndo, ouvindo cada vez mais nitidamente o desespero de sua irmã.
- Gine!
Ele parou aos pés da escada, olhando para baixo.
Ginevra acabara de fechar a porta da casa e puxar um dos móveis da sala para frente, criando uma frágil barricada.
- Azri! - a irmã gritou de volta, olhando-o com olhos desesperados.
Uma investida contra a porta a fez gritar novamente.
Azriel irrompeu as escadas abaixo.
- O que é isso?! Onde estão os outros?
Ginevra estava pálida.
- Eu vi - em choque, ela sussurrou ao envolver suas mãos frias no braço do irmão.
- Viu o que, Gine?
As dobradiças da porta ameaçaram romper.
Quando Azriel voltou sua visão para procurar a de Ginevra, seus olhos depararam-se com o lado de fora.
A cortina da janela estava aberta e, através do vidro, ele teve a visão que nunca esqueceria.
O cheiro de podridão invadiu as narinas dos dois arandianos ali na sala.
Por mais que Azriel quisesse desviar os estupefatos e amedrontados olhos daquela figura, era impossível.
Do outro lado do vidro, viu uma figura afastada há pelo menos dez metros. O corpo acinzentado era completamente nu e não exibia sexo algum. Os membros compridos o deixavam alto, longilíneo, mas magro como um esqueleto. As unhas pareciam querer cravar-se em algo. Seus braços dobravam no sentido contrário das articulações do cotovelo, contorcendo-se ao se movimentar.
Azriel viu uma boca aterrorizante cortar o rosto de lado a lado. Seu olhar se focou na cabeça da criatura. Não tinha nariz e nem sequer olhos. Entretanto, Azriel soube que, o que quer que fosse, o encarava de volta.
Petrificado de medo, o garoto abriu a boca para tentar ao menos gritar. Foi quando a criatura se moveu e acabou com a distância entre eles e a janela em um abismal segundo.
Tanto Azriel quanto Ginevra gritaram ao ouvirem o vidro da janela estilhaçar-se.
- Vai! - Azriel empurrou Ginevra para o quarto dela, no mesmo andar, embaixo da escada.
Os dois se trancaram ali antes mesmo que a criatura pudesse adentrar a casa. Entretanto, eles ouviram os passos claramente arrastados do lado de fora do quarto.
Ginevra chorou e tremeu, mas pôs-se de volta para suas parafernálias rapidamente.
- Gine, o que está fazendo? - Azriel arregalou os olhos ao vê-la colocar uma pedra no pescoço, envolta por um cordão - Onde estão os outros?
- Eu sei o que é isso, Azri - sua voz tremeu. - E vamos resolver isso logo.
- Onde caralhos estão nossos irmãos?! - ele gritou.
- Se acalme! Estão bem, por enquanto.
Ginevra atravessou o quarto e colocou a mão sobre a de Azri. Ele sentiu quando ela colocou ali outro cordão com uma pedra enroscada.
- Ginevra, pelo amor dos Deuses, me diga o que é isso.
- Certo - Ginevra estalou os dedos, nervosa -, são espíritos.
- Espíritos? - indignado, Azriel indagou. - Desde quando espíritos derrubam portas?
- É uma ilusão, me escute! Ponha isso no pescoço.
Azriel olhou para o cordão em mãos. Ele o deixou pender entre os dedos e rapidamente envolveu-o no pescoço.
Como se de imediato, as investidas na porta pararam.
- Mas que merda...?
- Olha, preste atenção - Ginevra deu outras duas pedras na mão de Azriel. - Lhe explicarei direito depois, eu prometo. Essas criaturas entram na nossa mente, Azriel. Não sei o que viu, mas com certeza foi completamente diferente do que eu vi.
Azriel agradeceu por estar escuro. Seus olhos estavam vidrados. Viu-se em pânico. A pedra nas mãos o acalentaram.
- Estou ouvindo.
- Essas pedras estão com um feitiço de proteção. Venho trabalhando nele há muito tempo e só agora consegui canalizá-lo - Ginevra prosseguiu. - Esses espíritos não nos matam. Se eles te pegam, entram na sua mente e... não quer saber o que acontece, Azri.
- Gine - ele olhou para as pedras nas mãos -, nossa família ainda está lá fora?
Ele viu, mesmo no escuro, sua irmã concordar com a cabeça.
- Vamos encontrá-los, então.
Há quanto tempo estava correndo?
Viorica parou abruptamente. Não conseguia mais ouvir o choro da criança.
A arandiana olhou ao redor. Estava sozinha.
- Ric? - ela gritou para a escuridão.
Viorica viu uma neblina branca envolvê-la aos poucos, engolindo a atmosfera ao seu redor.
Ofegante, ela abriu a boca para chamar mais uma vez por ajuda quando ouviu mais claramente agora - o choro de um bebê.
Dessa vez, Viorica percebeu que o pequeno ser estava próximo e já não chorava mais como antes. Ela seguiu os murmúrios lentamente até encontrá-lo ali, nos pés de uma árvore, envolto por um cobertor creme. O bebê não devia ter mais de poucos meses, mas ele sorriu quando a encontrou.
A mulher arfou, aliviada.
- Você foi abençoada, Viorica de Arande.
A voz a fez sobressaltar-se e olhar imediatamente para trás.
Uma mulher estava parada em pé em frente à ela. Viorica sentiu uma presença boa e agradável. Ela era linda, com a pele negra vibrante e os cachos armados desenhando seu rosto angelical. Vestia um comprido vestido de cor vinho que reluzia mesmo sob a neblina.
Assim que Viorica a viu, teve certeza de que tratava-se de Momona, a Deusa da fertilidade. Era exatamente como descrita em todas as histórias.
O lábio inferior de Viorica tremeu.
- O que quer dizer?
Uma solitária lágrima brotou em seus olhos.
Momona deu um passo em sua direção.
- Sabe o que quero dizer, querida - a amável voz a serenou. Momona colocou uma das mãos no rosto de Viorica, que permitiu-se chorar.
A arandiana já suspeitava há algum tempo. Ela levou as duas mãos ao ventre e visualizou a vida que crescia ali, dentro dela, fruto de seu amor e de Alaric.
Viorica percebeu que o bebê não mais chorava.
Quando voltou-se para ele, aos pés da árvore, surpreendeu-se com a visão. Gritou.
O pequeno bebê em sua frente agora a encarava com olhos vermelhos como os últimos raios de sol. Lágrimas de sangue escorreram de seus pequenos globos oculares, mas ele não mais queixava-se. Estava estático.
Viorica deu um passo em sua direção, mas sentiu o aperto gelado de uma mão envolver seu antebraço. Ela voltou seu olhar para Momona, apenas para gritar ao não ver mais a mulher. O rosto de Momona derretia, desde o topo de sua cabeça até a ponta de seus pés, como se fosse feita completamente de cera.
Viorica, aos berros, desvencilhou-se da mão da mulher e chocou-se ao ver aquele punho soltar-se do corpo, desfazendo-se como pó ao seu toque.
A arandiana caiu para trás, assustada. Em um segundo, correu para longe da cena mais perturbadora que já pôde presenciar.
Ela olhou para trás por mais um segundo para ver curiosamente que destino aquela deusa de cera tomara, quando trombou com algo.
Não era uma árvore.
Viorica veio ao chão e, assustada, olhou para cima.
Alaric a encarava com um sorriso.
- Ric! - ela deixou as lágrimas de alívio escorrerem. - Ric, eu não sei o que está acontecendo!
Alaric a olhou, mas nada disse. O noivo a tomou nos braços e entrelaçou uma das mãos por seus cabelos.
Viorica sentiu-se diferente naquele abraço. Não tinha o afeto de seu amado. Não tinha o próprio aroma de Alaric. Antes que pudesse objetar-se, sentiu a faca entrar em suas entranhas.
Com um arfar de dor e surpresa, Viorica afastou-se. Ela olhou para baixo. A mão de Alaric envolvia a faca que estava fincada em sua barriga.
Ele a arrancou e viu a queda da mulher de volta ao chão.
Pasma e com a mão sobre o ferimento, Viorica olhou para Alaric. Ele sorriu.
Azura tentou respirar, mas o ar lhe faltou.
A petrichoriana abriu os olhos com dificuldade e sentiu as ondas do mar a jogando de um lado para o outro.
A garota abriu a boca e sentiu a água salgada adentrar seu corpo, com desespero. Azura nadou. Nadou para cima, olhando para a claridade sobre sua cabeça, onde achou estar a superfície. Seus braços e pernas se debateram até ela conseguir emergir à tona. Com desespero, Azura puxou o ar de volta para seus pulmões. Pasmou-se ao se encontrar ladeada de oceano.
Azura olhou para cima. Estava sol. Como podia estar de dia? Onde estaria ela, se não no Bosque das Lamúrias, correndo atrás de Viorica?
O corpo da petrichoriana já encontrava-se cansado, tentando manter-se na superfície em uma luta constante com as marolas agitadas.
Um grito lhe alcançou os ouvidos.
Azura arregalou os olhos. Conhecia-o perfeitamente.
- Azura!
Azura virou em todas as direções possíveis até ver o braço da criança levantado no horizonte. Ela reconheceria os cachos de Ava-Lee em qualquer lugar, assim como o vestido arroxeado que usava nas fatídicas festividades que lhe tiraram a tão jovem e inocente vida.
A petrichoriana não conseguiu pensar. Não sabia como, mas Ava-Lee chamava por ela. Não tinha tempo para pensar.
- Ava!
- Azura! Socorro!
A garota viu a pequena subir e descer na superfície do mar. Apesar de não ser uma boa nadadora, Azura atravessou as águas a nado o quão rápido seu corpo lhe permitiu. Engoliu mais água e sentiu o gosto horrível do sal inebriar seu cérebro.
- Ava! - novamente gritou o nome da garota. Não a via mais. Azura parou de nadar. - Ava!
De supetão, a garota sentiu um de seus tornozelos ser puxado para baixo, em direção à escuridão do oceano.
Azura não conseguiu manter-se na superfície, por mais que nadasse contra o que quer que segurasse sua perna. Ela sentiu os pequenos dedos a segurarem firmemente, como algemas.
Imersa no oceano, Azura olhou para baixo e viu Ava a puxando. Entretanto, Ava não parecia a garota pura que ela um dia conheceu. A pequena tinha um maléfico sorriso desenhado no rosto.
Com o espanto, Azura abriu a boca e deixou a água do mar entrar em seu corpo. O ar morreu. Ava a puxou para o fundo do oceano e Azura imergiu para a escuridão. Ela olhou para o fundo, para o mar sem fim que desaparecia no breu sob si.
Viu os corpos de milhares de inocentes mortos em Petrichor naquela noite, assim como Ava.
Em um instante, Azura cuspiu toda a água do mar que engoliu, sentindo o desgostoso gosto do sal correr por seu corpo inteiro.
Odiava aquela sensação, que esperava nunca mais ter que passar. Já quase perdera a vida para o mar uma vez, agora outra. Queria distância daquelas águas.
Azura rapidamente levantou-se.
O sol brilhava com fervor sobre sua cabeça e a petrichoriana sentiu a areia fofa em que se encontrava. Não era como a das praias de Arande. Ela olhou para baixo e viu os pés descalços afundados nos grãos brancos de areia. Azura arfou ao ver a água límpida alcançar seus tornozelos. Não estava com as mesmas vestes que instantes atrás. Agora, vestia o glorioso vestido vermelho que usou durante as festividades de Sonca e Marama.
Ela conhecia aquele lugar. Conhecia como a palma da própria mão. Olhou em volta e viu as árvores características daquele lugar que tanto amava. Sentiu o cheiro da terra molhada entrar por suas narinas e acalentar todo seu corpo. Estava em Petrichor.
- Olá, pequena Azura.
A petrichoriana sentiu uma pontada no coração. Ela voltou-se o olhar para a voz que a chamava.
Ele estava ali, próximo a ela. Estava belo como sempre fora, forte e astuto, carregando o ar de pacificidade e inteligência que ousava exibir com orgulho.
Nero a encarou com um breve sorriso e desapareceu por entre as árvores.
A filha seguiu a figura do pai, hipnotizada.
Kohan travou os pés no chão, como se algo o ordenasse a fazê-lo.
Ele ainda estava ali, parado no Bosque das Lamúrias, mas nada conseguia ver além das poucas árvores ao seu redor. A folhagem densa sobre sua cabeça não permitia que a luz de Marama adentrasse plenamente ali.
O arandiano não sentiu medo, entretanto. Estranhou o silêncio. A completa ausência de qualquer som. Nem dos animais, nem de passos amigos, nem mesmo do vento. O silêncio o engoliu.
Kohan olhou em volta, sentindo uma paz estranha crescer no peito, mas que não deu atenção.
Ao seu lado, por alívio, ouviu um passo. Ele virou bruscamente em sua direção, deixando a boca entreabrir ao vê-la ali.
Na pouca luz da lua, Azura reluzia, bela. Não estava como antes. Não parecia a parceira de luta, a colega de quarto, a mulher com quem tanto debatia e hora odiava, hora gostava, hora aturava.
Os cabelos de Azura estavam soltos como nunca estavam. Mesmo sem vento, eles pareciam dançar em sintonia com a energia ao seu redor. Suas tatuagens estavam ainda mais vivas e sem as cicatrizes que arrumara em Arande. Estava com um ponto vermelho no centro da testa, como nos rituais de sua terra natal. Seus olhos cinzentos pareciam ainda mais brilhantes. Ela trajava o mesmo vestido vermelho em que a encontraram em primeiro momento, praticamente sem vida na praia de suas terras. Dessa vez, estava limpo e esvoaçante. O perfume natural que Azura exalava assemelhava-se às flores raras que cresciam pelos campos dos quatro cantos do vale de Awa.
Kohan percebeu que estava sem ar. A petrichoriana sorriu.
- Azura? Quando...? Como?
Azura tirou os cabelos negros da frente do rosto e deu um passo em direção ao homem, logo findando o espaço entre eles.
Kohan não entendeu, mas sentiu seu peito bater mais forte.
- Pare de se enganar, Kohan - a voz de Azura soou docemente, como se flutuasse pelo ar escasso ao redor deles.
- O que quer dizer? - a voz do arandiano falhou.
Azura andou ao redor dele. Ele a acompanhou. Ela parecia deslizar sobre as folhas secas sob seus pés.
- Eu vejo como me olha - um sorriso travesso desenhou-se em seus lábios.
Kohan sentiu um arrepio atravessar toda sua espinha.
Ele abriu a boca para defender-se, mas não encontrou palavras. Azura estava muito próxima.
Ele viu os lábios da petrichoriana sorrirem próximos aos dele. Sentiu-a tomar sua mão e empurrá-lo até suas costas recostarem-se em uma árvore.
- Você nega? - ela indagou, encostando seu tronco contra o dele.
Kohan não era de pedra. Sentiu a excitação crescer em seu corpo. Azura percebeu e sorriu, convidando-o para conhecer seus lábios. Ele percebeu que ela ainda segurava sua mão. Azura colocou a mão de Kohan sobre sua cintura e ele cedeu.
O arandiano puxou a garota pela cintura e selou um beijo ardente entre eles. Percebeu que o desejava há mais tempo do que achou possível.
Kohan sentiu o gosto da boca de Azura, inesperadamente fresco e doce.
Azura entrelaçou-se naquele beijo e enroscou-se mais no colo de Kohan. Seus delicados dedos apertaram os cabelos de Kohan atrás de sua nuca e ele deixou um gemido de excitação escapar. Azura sorriu e desceu uma das mãos pelo abdômen do garoto.
Kohan a girou e colocou suas costas contra a árvore em um desejo que beirava a violência. O homem desceu suas mãos pelo corpo de Azura e apoiou-as no início de suas coxas, puxando-a para cima e a tirando do chão. Azura enroscou suas pernas em seu tronco e gemeu quando Kohan depositou desesperados beijos em seu pescoço, explorando seu corpo.
Azura riu. Não uma risada gostosa em que curtia os amassos. Não. Uma risada diabólica saiu de sua garganta. Ela não era mais a mulher de segundos atrás.
Kohan afastou-se dela. Um sorriso de deboche desenhou-se naqueles lábios atraentes.
O arandiano travou.
- O que foi? - ele timidamente indagou.
- Sua ingenuidade é cômica, Kohan - ela brincou com ele. - Acha que uma mulher como eu se sentiria atraída por um homem como você?
- Viorica! - Alaric gritou pela noiva por todos os cantos do Bosque, sentindo um amargor na boca que só o remetia a cenas ruins.
Ele não obteve resposta, entretanto. Não encontrou Viorica, assim como não viu Kohan e Azura, que tinha certeza que o seguiam até então.
Alaric olhou para o céu. Estava negro. Completamente negro. Não existia luz. Nem da lua, nem das estrelas.
O arandiano arfou, sentindo o medo percorrer seu corpo. Quando o fez, pôde ver o hálito gelado que saiu de sua boca, juntamente com uma espessa fumaça branca de suas gotículas de saliva condensadas ao entrar em contato com o ar extremamente frio.
Neve. Alaric sentiu a neve cair. A neve branca que contrastava com a floresta mergulhada no breu. Era a primeira vez que ele a conhecia, em circunstâncias tão peculiares.
Nunca em sua vida inteira encontrou-se mais confuso.
- Vio! - ele ousou gritar. Sua voz ecoou por entre as árvores como se estivesse em um completo vazio sem fim.
Foi quando o viu. Apavorou-se de início ao vê-lo ali, mas encontrou paz ao vê-lo sereno. Tron, seu velho e bom pai, o esperava para um acerto de contas.
- Pai? - Alaric cochichou, aproximando-se da figura paterna. Ele passou as mãos pelos braços desnudos, procurando desesperadamente por uma fonte de calor. Em Arande, por mais que algumas noites viessem a ser frias, aquele extremo era algo que ele nunca precisara experienciar.
Tron abriu os braços, oferecendo um abraço ao primogênito.
Mesmo que não soubesse como seu pai poderia estar ali, Alaric não conseguiu cogitar. Não encontrou forças ou mesmo motivos.
Viu Tron com os braços abertos a esperá-lo. Viu aquele homem que admirou ao crescer, no qual se espelhou, e cuja aprovação tanto estimou - em vão. Agora, depois de sua morte, Tron lhe estendia os braços abertos.
Alaric sentiu seu coração arder.
Ele se jogou nos braços do homem que viu morrer para que eles pudessem viver. À princípio, sentiu o corpo quente do pai abraçá-lo e reconfortá-lo. Entretanto, aquele abraço transformou-se em uma redoma de gelo. Alaric sentiu o toque frio de seu pai. Tentou desvencilhar-se daquele abraço, apenas para perceber que abraçava um bloco de gelo. Seu pai não se mexia. Quando Alaric tentava soltar-se, aos seus ouvidos chegavam os sons de estalidos de algo maciço rachando.
Tron desmanchou-se sob seus braços. Alaric tentou segurar os pedaços do que achou ser seu pai, em vão.
Quando Tron desmanchou-se, Alaric teve uma visão distante que desenhou-se à sua frente, no horizonte escuro. Ele conseguiu distinguir claramente, entretanto.
Alaric viu sua amada. Viu Viorica sorrindo para ele. Ele precisava dela naquele momento.
Quando o arandiano deu o primeiro passo em direção à ela, o sorriso de Viorica desfez-se. O homem viu quando o desenho formou-se em seu pescoço - o corte que ladeou sua garganta e a abriu, fazendo o sangue jorrar de seu corpo.
Alaric gritou, mas dessa vez a voz não saiu. Ele não conseguiu se mover. Para seu desespero, olhou para o próprio corpo, para baixo. Não sabendo como ela poderia ter parado ali, em sua mão, uma faca ensanguentada reluziu.
Viorica correu. Não sabia como seu corpo podia obedecê-la no estado em que se encontrava.
Além de ter uma facada profunda em sua barriga, teve medo pela criança que nem conseguiu agradecer à Momona pela graça de carregar. O pavor de ter sido ferida pelo homem que amava deixou-a em um estado de completo desespero.
Ela correu pela floresta, derrubando seu sangue pelas folhas secas do Bosque.
A arandiana olhou para trás, apenas para não vê-lo mais.
Sentiu a queda abrupta na água, no riacho que outrora não estava lá. Ela subiu rapidamente à superfície, mas antes mesmo que pudesse puxar o ar de volta para seus pulmões, sentiu fortes mãos a empurrarem pelos ombros novamente para o fundo do riacho.
Viorica sentiu suas costas abruptamente baterem nas pedras depositadas no fundo da água e abriu os olhos, em uma busca desesperada por ajuda, enquanto tentava tirar as mãos que a afogavam agora pelo pescoço. Entretanto, mesmo submersa, ela o reconheceu. O homem que amava e a quem recorreria em qualquer mísero perigo, agora estava a um passo de findar-lhe a vida.
Ginevra correu com os dois amuletos de proteção em mãos.
Não sabia como, mas sabia exatamente para onde seguir. Seus fortes instintos a mandavam correr e adentrar cada vez mais o Bosque das Lamúrias.
O cordão que carregava no peito, entretanto, a mantinha segura e longe dos espíritos de Pouri. Não sentia mais o medo. Não por si.
Azriel afastou-se. Separados ajudariam mais.
Ginevra abruptamente parou. Sentiu uma dor no peito. Ela apurou os ouvidos e ouviu o som do riacho correndo ao seu lado.
Seus instintos nunca foram tão fortes. Ela correu para lá sem pestanejar.
A bruxa puxou o corpo inerte de Viorica de dentro do riacho, arfando com o esforço e o desespero.
- Viorica! - ela gritou para a figura sem reação na orla do riacho.
Ginevra colocou a mão na testa da amiga, em um gesto que aprendeu apenas de olhar o pai.
Sentiu a vida ainda pulsar em Viorica. Ela rapidamente colocou o cordão com a pedra em volta do pescoço da mulher apagada.
Ginevra esperou desesperadamente por uma solução. Não sabia como ajudá-la. Sentiu o desespero apertar em sua garganta.
Viorica, sentindo certo alívio pelo amuleto agora em seu peito, engasgou com toda a água do riacho que ingerira.
Ginevra não tardou em virá-la de lado, ajudando-a a tirar tudo de seus pulmões.
A bruxa sentou-se na orla, aliviada.
Viorica a observou, estupefata. Colocou as mãos no abdômen e o viu intacto, ainda sentindo uma dor fantasma. Quando seus olhos se encontraram com os da amiga, mesmo na escuridão, Viorica chorou.
Ginevra a puxou para um abraço.
- Se acalme, Vio - pediu -, foi só um sonho ruim...
- E Alaric? - entre os prantos, Viorica pensou no homem que amava.
Ginevra olhou-a dentro dos olhos novamente.
- Precisamos ir atrás dele.
Viorica observou o amuleto forte em volta do próprio pescoço, o objeto enfeitiçado pela amiga que acabara de salvar sua vida.
Procuraria por explicações depois.
Ela rapidamente tomou todo o ar que podia e pegou o amuleto sobrando nas mãos de Ginevra. Salvaria Alaric do que quer que os assolasse, prometeu a si mesma.
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