32. Sangue Necessário
O chuvisco gelado era tão fino que penetrava as copas das árvores e recaía sobre aquela meia dúzia de fugitivos de modo que os ensopava e congelava aos poucos, de modo torturante.
Eles apagaram a fogueira por segurança logo antes de decidirem por descansar.
Aos poucos, cinco pegaram no sono. Quatro. Azura se dispôs a ficar acordada por algumas horas antes de acordar o próximo que tomaria seu turno. Não sabia há quanto tempo estava imersa nos livros de bruxaria da avó de Ginevra. Havia se perdido nas páginas e anotações antigas de modo que seu sono estava longe de a acometer.
De soslaio, viu a figura familiar se aproximar.
Ginevra não conseguira pregar os olhos. Todas as vezes que os fechava, a imagem de seu pai morrendo aos seus pés vinha para assombrá-la.
A bruxa abaixou-se de cócoras ao lado da petrichoriana, sentando-se em seguida em sua frente.
Nada disseram. As duas se viram sozinhas como nas noites que passaram em claro a conversar sobre a vida, o passado, o futuro, a magia. Dessa vez, pela primeira vez, tinham um ponto de partida.
Ginevra inspirou o ar profundamente e o soltou com dificuldade. Tinha algo a contar.
- Eu não sei o que está acontecendo comigo, Azura - ela admitiu, sem olhar para a amiga. - Eu sinto que alguma coisa mudou, mas não sei o que.
Azura a olhou sobre o livro, tentando decifrar aquele olhar melancólico que fitava a terra.
A arandiana prosseguiu.
- Desde a noite passada eu estou sentindo um formigamento estranho nas pontas dos dedos, na nuca, atrás dos olhos, e eu não sei se é algo bom. Eu não sei controlar. Eu tenho medo de... de surtar e acabar machucando vocês como fiz com aquele homem.
- Aquele homem ia me matar - Azura a lembrou. - E essa é sua família. Tem uma diferença gritante.
- Eu sei, mas... - Ginevra arfou. - Eu preciso entender isso.
Azura fechou o livro e a estudou, pensando se compartilhava com ela sua nova teoria.
- Eu tenho uma hipótese com base nas anotações de sua avó - revelou, por fim. - Mas não se anime tanto. Não sei como proceder. Talvez só venha a lhe revelar um problema.
- Diga - a bruxa pediu.
Azura se ajeitou no lugar e tamborilou os dedos na capa dura do livro, guardando-o novamente na mochila.
- Você me contou que... começou a dominar o fogo quando se queimou, não foi?
Ginevra concordou. Azura continuou.
- Bom, você desenvolveu suas habilidades curativas logo depois de perder sua avó para uma doença horrenda e ontem... impediu que aquele soldado cortasse minha garganta, já prevendo o que aconteceria.
- Não pude suportar te ver morrer sem fazer nada - Ginevra sussurrou, como se isso a deixasse fraca.
- Eu lhe agradeço por salvar minha vida - Azura colocou uma das mãos sobre a da bruxa. - Meu ponto é que sua magia está adormecida. E seus traumas e sentimentos intensos...
- A ajudam a despertar - Ginevra completou o pensamento.
- Talvez.
As duas se encararam.
- Quer dizer que eu vou ter que passar por diversos traumas para aprender a dominar minha magia?
- Não - Azura balançou a cabeça. - Tem que ser mais fácil que isso.
Ginevra balançou a cabeça em negação. Colocou as mãos nas têmporas e se apoiou ali.
- Eu não pedi por essa merda.
- Alguns diriam que é uma benção.
- Uma ova! - Ginevra esbravejou, arriscando acordar os outro quatro que com dificuldade pegaram no sono. - Se eu só vivesse uma vida normal, sem tudo isso, toda essa carga explosiva nas costas, talvez eu...
- Sem "talvez" - Azura a interrompeu. - Não chore pelo que não foi. Vamos aprender a lidar com isso. Eu tenho uma promessa e dívida com você.
Ginevra concordou, percebendo então o quão cansada estava.
- Não me ajude porque acha que tem uma dívida comigo - se levantou, procurando alento entre os irmãos dormindo no chão de terra dura e molhada. - Me ajude porque se importa.
A Kino concordava que dormir enrolada em uma coberta em noites frias era uma das melhores sensações que se podia ter, dividindo patamar com comer batata doce cozida acompanhando um käfi bem quente e comer queijo fresco com doce de goiaba do Seu Joni.
Frey acordou ouvindo seu nome ser sussurrado por entre as frestas fechadas da tenda.
- Frey!
A inconfundível voz a chamou.
A garota viu-se envolta no abraço de Caiden, que dormia como uma criança cansada após um dia exaustivo.
Frey se viu confortável. Optou por ignorar o chamado e fingir que estava dormindo.
- Sei que está acordada, caralho! Venha aqui!
A Kino bufou e tirou a coberta de si, livrando-se devagar do abraço do novato.
Ela rapidamente vestiu as roupas que espalhara pela tenda e esperou que o tecido lhe tirasse o frio com certa urgência.
Esfregou as mãos uma na outra ao sair da tenda e deparar-se com Dante esperando-a com os braços cruzados, impacientes.
- O que foi? - ela resmungou, cochichando.
- Caralho, Frey, você não perde tempo - Dante riu.
Frey quis revirar os olhos, mas segurou uma risada ao fechar o último botão de sua camisa.
- E perder tempo pra quê, Dan? Minhas opções aqui são limitadas. Quando chega carne nova, eu vou pra cima.
Dante riu.
- Sorte a sua! Queria eu ter um cara daquele na minha cama.
- Demorou, perdeu - ela brincou.
- De longe eu vi que ele não gosta da mesma coisa que eu - Dante ergueu uma das sobrancelhas.
- Sorte a minha.
Os dois amigos riram como adolescentes, antes de ouvirem a imponente bronca.
- Ei, imbecis! - Aurèlia esbravejou, aparecendo das sombras. - Estamos esperando vocês!
Dante e Frey guardaram as risadas para eles, engolindo-as com certa vergonha.
Em silêncio, seguiram Aurèlia pela clareira em direção a um destino conhecido.
As festividades já haviam acabado àquela hora da madrugada. A fogueira estava apagada e a harmonia da música fora substituída pelos sons dos animais noturnos que os cercavam.
Eles andaram por quase cinco minutos até ladearem a clareira em direção à grande tenda do xamã. Lá, uma vela acesa iluminava parcialmente aquele grupo que reunia-se com certa frequência. Entretanto, naquela noite fria, pareciam mais tensos e rijos.
Aurèlia esperou os dois amigos entrarem e fechou a tenda. O silêncio foi quebrado por Cássio, o xamã.
- Estamos com problemas a discutir, amigos - ele cruzou os braços, em pé, ao lado da vela acesa. Seus cabelos brancos que denotavam grandes experiências vividas cintilavam à luz amarelada das chamas trepidantes.
- O que aconteceu? - Frey indagou. Ela conquistou seu espaço ali por grande mérito. Quando chegou ali, chegou sozinha aos dez anos, fugindo das ruínas das Cinzas. Sobreviveu sozinha até ali. Os Deuses a quiseram viva. Quando chegou, teve sede por lutar. Aprender a se defender. A ela foi ensinado tudo pelo próprio xamã, que conhecia a arte da guerra de modo exímio. Frey e Aurèlia, com poucos anos de diferença, cresceram sabendo se defender.
- Lírio trouxe novas - Aurèlia explicou.
Lírio, o homem sentado em uma cadeira em um dos cantos, tinha uma história curiosa. Há uma década ele fora encontrado por aquele povo tão intrigante. Estava ferido, largado para morrer às margens de um riacho. O homem nunca ousou falar sobre o incidente ou a vida passada, mas mostrou-se um bom braço direito e mensageiro, sorrateiro e ligeiro.
Ia e vinha da cidade sem problemas, passando despercebido.
Lírio estava no auge de seus trinta anos. Tinha o corpo definido e cabelos negros, assim como a barba rala. Seus traços do rosto eram finos e muito bonitos. Nem mesmo o sol forte que os castigava conseguia deixá-lo menos atraente. Teve várias pretendentes, o homem, mas não se interessou por mulher alguma. Não romanticamente. Amores do passado ainda lhe apertavam o coração.
- Vamos colapsar no ritmo em que as coisas estão indo, Cássio - Lírio batia impacientemente um dos calcanhares no chão. - Vocês não têm ideia de como estão as coisas ao redor do Vale de Awa.
- Acredito que vá nos contar, então - Dante o intimou. O garoto negro podia ser magro e pouco intimidador, mas tinha habilidades reconhecidas, principalmente pelo xamã. Dentre elas, o poder de ver e ouvir os mortos era o que deixava o líder mais intrigado.
- D'Ávila colapsou. Desde que aqueles dois que encontraram fugiram com o bebê, aquelas terras viraram de cabeça para baixo - Lírio comentou. - Começou com uma pequena revolta em uma taverna e se espalhou por toda a cidade. O comércio fechou em protesto. Não exportam mais nada. A coroa vai entrar em crise se D'Ávila não voltar a fazer a economia circular. Eles acabaram de comprar uma guerra.
- Soube de Petrichor - Aurèlia comentou, também com os braços cruzados, impaciente e nervosa. - Aquele tal de Düran nos contou que Petrichor agora é uma terra tão habitada quanto as Cinzas. Eles varreram tudo de lá.
- E tem mais vindo dos lados de Arande - o xamã comentou. - Nossos homens voltaram hoje da ronda. Arande está no caos por causa de uma bruxa.
- É das nossas - Dante comentou. Sangue bruxo corria por suas veias, por mais que não conseguisse manifestar magia. - Bruxos são raros. Devíamos trazê-la.
- Esse é o problema, Dante! - Aurèlia esbravejou. - O que vamos fazer quando não tivermos mais espaço? Quando não tivermos mais controle dos nossos? Nós sobrevivemos nas sombras por anos.
- Antes disso tudo, Aurèlia - o pai sabiamente a replicou. - Desde quando viu tantas revoltas ao mesmo tempo pelo Vale de Awa?
- O que está dizendo, meu pai?
Os cinco se entreolharam.
- Sinto que a hora da Profecia se realizar está cada vez mais próxima. - Cássio colocou ali seu pensamento, deixando os outros refletirem.
- Não gosto disso - Frey resmungou, tirando os cabelos do rosto.
- E por que não, Frey? - Lírio calmamente questionou, se levantando. - Não acha bom que possamos finalmente ser livres?
- Somos livres, Lírio - a garota debateu.
- Nós. Apenas nós. As pessoas que estão lá lutando por seus direitos em todos os cantos do Vale de Awa não acham isso. Não é fácil para eles.
- E o que fazemos para ajudar? Somos menos que a metade de qualquer uma das terras - Dante tentou ajudar a amiga.
- Por enquanto - Aurèlia levou as mãos à nuca, preocupada. - Estão fugindo. Estão desesperados demais a ponto de entrarem no Bosque e não damos conta desse jeito.
- O que propõe, minha filha? - Cássio indagou. Confiava na liderança de Aurèlia. Ela estava pronta para tomar decisões importantes.
Aurèlia balançou a cabeça.
- Que estejamos prontos, pai - ela concluiu. - Se os tempos estão mudando... se acha que a Profecia do Oráculo de Maloo está para finalmente ser testada... temos que estar prontos para tempos tenebrosos.
- Vamos estar - Lírio comentou. - Eu, pessoalmente, estou cansado de me esconder.
- Lírio... - Aurèlia tentou calmamente debater.
- Não, Aurèlia. Podemos estar vivendo aqui por anos, mas quando vou poder realmente viver livre dessa cerca aqui e conhecer um mundo sem... sem...?
- Sangue - Cássio concluiu por ele. - Tanto sangue derramado.
- Sabem que vamos derrubar mais sangue se finalmente comprarmos uma guerra, não sabem? - Frey exprimiu.
- Sim, Frey - Cássio concordou com sua protegida. - Mas essa guerra já foi comprada há muitos anos, por nossos ancestrais. Essa guerra só virá para finalmente decidir que destino teremos - os cinco se entreolharam. Cássio encerrou. - Se vamos viver em paz ou se vamos morrer tentando.
Gaia ignorou todo o receio do animal em qual montava e cavalgou a toda velocidade em direção à cidade, acompanhando a rainha praticamente lado a lado dessa vez.
Ela tinha uma sensação ruim na ponta do estômago e um amargor estalando na língua. Sua intuição lhe dizia que precisava estar em casa logo e que sua cabeça estava novamente em jogo.
Não demoraram a chegar, a criada e a rainha. Odile, entretanto, seguiu para o pátio de seu palacete e Gaia voou escadarias abaixo em direção ao Porto das Rosas. Ela viu os soldados e o caos se alastrando. Parou bruscamente quando encontrou-se sem passagem.
Ainda de cima do animal, Gaia olhou em volta. Estavam revistando casa por casa.
A crisantiana teve certeza de empalidecer.
Não podendo chamar atenção, Gaia desceu do cavalo e o deixou livre pela cidade. Tombou duas vezes no caminho em direção à Lore, não sabendo se apenas tropeçava de medo ou pela pressão que insistia em cair.
Gaia facilmente se misturou à multidão desesperada.
Um pensamento estarrecedor lhe veio à mente. E se Nafré ainda estivesse lá?
Odile encontro-o e teve certeza de ser obra do destino.
Ela viu Sohlon montado em seu cavalo e a espada empunhada, liderando com fúria nos olhos seus soldados. O sangue derramado pelo pátio exalava inocência.
A rainha cavalgou o mais rápido que pôde e colocou seu cavalo em frente ao do rei. O animal assustou-se.
- Odile - ele exclamou.
A rainha desceu do animal e viu o rei fazer o mesmo.
- O que está fazendo, Sohlon? - ela o questionou, incrédula. Ele tomara decisões importantes na ausência dela. Decisões como aquela, como derramar ainda mais sangue e tomá-lo para conta da coroa, era algo que ela merecia saber.
- Ele está vivo, Odile - as palavras que saíram da boca de Sohlon a petrificaram. O rei viu as órbitas esmeralda dos olhos de sua esposa tremerem ao se arregalarem. - Nosso bebê está vivo!
Odile tinha tantas perguntas que mal lembrou-se do que acontecia ao seu redor. Sentiu as pontas de seus dedos tremerem sobre o aperto nos braços do homem que amava.
- O quê?
- Eu não posso explicar agora, meu amor - ele tomou as mãos da esposa e beijou as costas de cada uma delas. - Eu preciso achar nosso Kaha.
- Assim não, Sohlon! - ela viu-se protestando.
Sohlon a olhou com indagação.
- Dê a eles o que quiserem - os olhos verdes da rainha transbordavam súplica. - Dê o que quiserem. Dê riquezas, dê minha própria coroa, mas faça isso certo!
O rei não entendeu as súplicas de sua esposa. Especialmente as dela, sempre tão decidida e pronta para fazer o que fosse preciso.
- Estou fazendo isso para ter nosso filho de volta em nossos braços - Sohlon impensadamente soltou as mãos de sua esposa, mas Odile apenas aproximou-se em súplica.
- Então faça do jeito certo, meu rei - ela implorou, deixando uma lágrima escorrer. - Não é tempo de nos temerem. Vamos achar nosso filho e merecer tê-lo de volta.
Sohlon olhou fundo nos olhos de sua mulher. Procurou sua esposa forte e não encontrou. Viu apenas uma mulher insana pela dor de perder seu filho. Ele teria de lidar com Odile depois.
- Vou fazer as coisas do meu jeito.
O rosto de Odile contorceu-se em decepção. Ela abraçou seu marido, que pouco entendeu.
Sohlon sentiu o aroma do perfume de sua esposa e deixou-se inebriar por um momento. Mal sentiu quando os hábeis dedos da rainha tomaram a espada de suas mãos.
Odile deu dois passos para trás e evitou olhar nos olhos de seu marido. Sohlon não compreendeu.
A rainha voltou para seu cavalo e não ousou olhar para trás. Com lágrimas nos olhos, deixou seu marido ali, decepcionada.
Não sabia o que faria, mas se o que aquele homem que amava dizia fosse verdade, então ela traria Kaha de volta para o calor de seus braços. E faria de seu jeito.
As ruas do Porto estavam mais movimentadas que o habitual, Gaia viu a baderna alastrando-se do centro até ali como chama em palha.
Chegou tarde demais.
Dona Lore estava do lado de fora de sua casa. O beco estava sendo revistado. A porta de sua casa estava escancarada e a senhora estava apreensiva.
De longe, Gaia sentiu o ar lhe faltar e as pernas bambearem. Antes que pudesse arfar, duas mãos fortes a puxaram para longe dali.
A garota viu quando Isaac a virou bruscamente para si.
- Gaia, respire.
Apenas quando o homem sussurrou em seus ouvidos, Gaia deu-se por si. Estava sufocando à procura de ar.
- Vai precisar correr. Ele não está aí - o homem a alertou.
- E está aonde? - Gaia respondeu-o no mesmo tom.
- Nafré está o levando para sua casa.
Gaia levou as mãos à cabeça.
- E você deixou, caralho?
- Claro que não! Dona Lore me disse que ela saiu correndo com o bebê quando viu a merda rolando lá do centro até aqui.
Gaia quis chorar. Nafré estava mais envolvida do que ela mesma e a culpa era dela.
- E o que eu faço?
- Eu tenho uma ideia - foi só então que Gaia viu que o garotinho Osi estava escondendo-se atrás de Isaac o tempo inteiro. - Aqui não é mais seguro.
Isaac estava com a perspectiva mais ampliada que Gaia. Aquela guerra interna que ele acidentalmente ajudara a começar não terminaria tão cedo.
- Vou encontrar Mirza. Pegue sua família e nos encontre no cais do porto. Tenho um dinheiro guardado. Acho que consigo nos levar pra longe daqui.
- Pra onde?
- Pra longe, agora vá!
Gaia não perdeu mais tempo. Ela viu Isaac distanciar-se segurando na mão de Osi e ela puxou todo seu fôlego para subir correndo em direção à sua casa, nadando mais uma vez contra a corrente que queria empurrá-la para longe de seu destino.
Imersos na conversa, nem Isaac e nem Gaia perceberam que estavam sendo observados. Observados há tempo. E não era pelos soldados.
Gaia irrompeu sem fôlego pela porta de sua casa, fechando-a bruscamente em seguida e consequentemente quase derrubando a guirlanda feita à mão por sua mãe.
- Nafrè! - a garota gritou. Sua voz soou desesperadamente esganiçada.
Suando e igualmente em desespero, a figura loira de sua irmã desceu as escadas rapidamente, abraçando-a como não fazia há anos.
As duas choraram, aliviadas.
- Onde ele está?
Rose apareceu da cozinha com Kaha nos braços. O pequeno bebê brincava com as rendas do decote da mulher.
Rose encarou Gaia com o rosto estupefato.
- Mãe, me desculpe... - a garota chorou, aproximando-se da mulher com receio.
A mãe, entretanto, apenas puxou-a para um abraço apertado.
- Fez o que teve que fazer, filha...
- Mas mãe... - Gaia sentiu-se nada mais que uma criança. Queria ter o tamanho de Kaha para não carregar responsabilidade algumas nas costas.
Gaia não completou sua frase. A porta da frente bateu atrás delas.
Nafré gritou um grito agudo.
As três se juntaram no hall, lado a lado, olhando para a porta.
Nafré segurou a mão da mãe e Gaia colocou-se na frente das duas, em um gesto corajoso que não sabia onde ia dar.
As três recuaram ao ouvirem as investidas incessantes contra a porta. Esconderam-se onde puderam assim que a fechadura arrebentou-se.
O homem deparou-se com uma casa silenciosa e escura, com os únicos gritos vindos de trás de si.
Ele empunhou um facão ao dar o primeiro passo em direção ao seu interior e fechou a porta atrás de si.
Conth a viu entrar ali. Tinha suspeitas fortes recaindo sobre a criada pessoal da rainha e a bagunça na cidade caiu-lhe como uma luva para que ele pudesse ir atrás dela em paz.
Uma risada sádica saiu da boca do homem, por mais que estivesse furioso. Ele queria aquele bebê mergulhado nas chamas. Quando ouviu os boatos de que a criança estava viva, soube que era ali que deveria procurar.
Seus passos denunciavam sua posição, rangendo a cada piso de taco em que passava. Seu facão reluziu à luz da lua.
Conth entrou na cozinha, aparentemente vazia. Seus olhos negros brilharam. A porta do armário estava entreaberta.
Curtindo de seu sadismo, o homem andou a passos lentos por volta da mesa, como se procurasse por algo que já soubesse onde está.
Ele parou em frente à pia, observou a paisagem e, com um puxão brusco, escancarou o armário do gabinete. Uma voz feminina e aguda gritou. O homem sorriu.
- Ande, pra fora! - ele ordenou, afastando-se o suficiente para ver uma garota loira sair de dentro de seu esconderijo com o rosto pálido. - Isso, levante.
Nafré chorou ao ver o facão levantado em sua direção. Seu corpo estremeceu e teve certeza que toda a cor saíra de seu rosto.
Conth deu um passo em direção a Nafré, que recuou até encostar no armário em suas costas. Viu-se encurralada e um soluço de medo escapou por sua garganta.
Conth riu. Gostava de ser temido.
- Fale, cachinhos dourados - o homem tirou os fios loiros de Nafré de seu peito com a ponta da faca. Nafré fechou os olhos. - Olhe pra mim!
A garota obedeceu, abrindo vagarosamente os olhos inchados e molhados.
- Você têm lindos olhos... - ele observou as íris de cores diferentes. - Não me obrigue a tirá-los junto com a informação que quero.
Nafré fechou os braços em frente ao peito em um gesto defensivo.
- Onde está a criança que pegaram, garotinha? - Conth indagou com o rosto próximo ao de Nafré. - Onde está o bebê que deveria ter morrido noite passada?
Nafré não ouso responder. Ela olhou fixamente para o homem em um ato de coragem. Nada diria.
Conth findou o espaço entre eles e Nafré jogou seu rosto para o lado, sentindo o hálito forte de bebida barata sair da boca do homem. Ela permitiu que seus soluços saíssem ao sentir as costas da mão do homem alisarem sua bochecha.
- Você é linda, menina - Conth sussurrou. - Não me faça ter que estragar esse lindo rosto...
Nafré ouviu uma pancada e o homem simultaneamente gritou, indo ao chão ao seu lado com uma das mãos na nuca e o sangue escorrendo por suas vestes, saindo de suas costelas inferiores.
Gaia acabara de quebrar um vaso em sua cabeça e furar suas costas com o utensílio de metal que usava para acender o fogo da lareira.
- Fique longe da minha irmã, seu filho da puta nojento! - Gaia esbravejou. Nafré viu-se livre para correr e pegar uma faca de cozinha afiada em mãos, não sabendo como proceder a não ser que fosse descamar um peixe.
Conth, desnorteado, apagou aos poucos com a pancada e viu o sangue deixar seu corpo na cozinha daquela família, só então ouvindo o choro de Kaha ao adentra o ambiente no colo de uma mulher mais velha.
As três se entreolharam.
Rose tomou a iniciativa. A mãe atravessou a cozinha e colocou o bebê real nos braços da filha mais velha.
- Mãe? - Gaia indagou, procurando por um norte.
Rose puxou as duas filhas para um abraço apertado.
- Esse homem não agiu sozinho - Rose apontou para o homem morrendo em sua cozinha, já sem consciência. - Tirem esse bebê daqui enquanto há tempo.
- E o que você vai fazer? - Nafré perguntou, entre os soluços que ainda a assolavam.
- Dar cobertura, querida. Eles não vão atrás das minhas crianças.
- Mas, mãe! - Gaia protestou.
- Sem mais, Gaia! Arque com as consequências de suas decisões. É uma mulher adulta.
Gaia chorou. Não queria ser uma mulher adulta ali.
- Mãe, eu não deveria... se eu não tivesse...
Rose tomou o rosto da primogênita em mãos e repetiu as sábias palavras que sempre carregou como lema.
- Nada mata mais que a incerteza de algo que não foi - ela olhou dentro dos olhos da filha e viu seu reflexo. - Agora, ande! Tire esse bebê daqui junto com sua irmã. Fujam. Se escondam. Vão para o mais longe que puderem. Vou segurar as pontas aqui. E, quando der, voltem para mim, meus bebês.
As três se despediram.
Gaia embrulhou Kaha no xale que a mãe usava e a criança parou de chorar ao sentir o calor e o cheiro familiar do colo da garota.
Gaia e Nafré saíram pelos fundos da casa, rumando para uma ruela onde assustaram-se ao ver Mirza às esperando.
O homem pegou a criança nos braços sem nada dizer e as guiou para o porto.
Gaia e Nafré deram uma última olhada para trás. Rose sorriu, as encorajando.
Gaia não ousou verbalizar, mas sentiu medo que essa fosse a última vez que visse o rosto da mulher que a criou.
Ninguém focou nas desesperadas figuras que corriam em direção ao porto.
As duas garotas surpreenderam-se com as casas em chamas de quem recusava-se a deixar os soldados entrarem. Viu as lamúrias dos crisantianos que mergulharam na desgraça por conta daquelas autoridades impetuosas.
- Onde está Isaac? - Gaia gritou, correndo para acompanhar os passos de Mirza.
- Se os Deuses quiserem, salvando nossas bundas - ofegante, Mirza respondeu. Seu cabelo hoje estava preso em um coque baixo e fios encaracolados e rebeldes fugiam do aperto do elástico.
O Porto das Rosas estava um caos, como se a avalanche vinda de cima tivesse arrastado os cidadãos desesperados até as águas do Mar de Pétalas.
Mirza deu uma das mãos para Nafré e Nafré tomou a mão da irmã. Eles costuraram a malha de pessoas até finalmente chegaram ao destino, dessa vez não passando despercebidos.
A rainha viu sua criada.
Odile observou Gaia correr para longe, de cima do cavalo. Sua confidente ia embora com seus segredos.
De onde estava, a rainha viu aquelas três figuras barganharem lugar em um barco e o adentrarem. Seus olhos se arregalaram ao ver um pequeno embrulho nos braços do homem que guiava Gaia e uma garota loira.
Seu peito doeu. Sua boca secou e seus instintos gritaram. Aquele era seu filho.
Odile não conseguiu caminho com o alazão por entre os crisantianos. Ela desceu do animal, quase caindo antes mesmo de chegar no chão, e empurrou todos os que pôde para chegar ao cais.
- Espere! Pare o barco! - a rainha gritou, mas a embarcação já estava distante o suficiente da orla para que ela não conseguisse entrar. - Eu ordeno que pare esse barco!
A rainha gritou, mas não foi ouvida.
Odile olhou para suas vestes. Ela não era a rainha. Ela podia até se parecer fisicamente com Odile, mas suas vestes sujas de água do mar e areia e seus cabelos desgrenhados pelo vento a tornavam indiferente.
Ela gritou para o mar. Seu filho estava ali, ela sabia. Os Deuses tinham lhe dito.
Odile tomou o homem que contava o dinheiro do suborno nas mãos pelo colarinho.
- Ei! - ele protestou, mas a rainha o ignorou, intimidando-o.
- Para onde vai o barco?
- O que é isso, moça?!
- Para onde vai a porra do barco, homem? - ela gritou.
- Para D'Ávila! Pelo Estreito! - o homem gritou, sussurrando em seguida ao sentir as mãos de Odile se afrouxando. - Sua maluca.
O Estreito N'ova. Ela não chegaria ali sem um barco.
Odile olhou ao redor. Estava desesperada e sem um tostão de todas as suas riquezas no bolso. Ela teria que achar outro caminho. Não desistiria de seu filho, mesmo que tivesse que abrir mão de todo o resto de suas fortunas.
Ela correu de volta para o cavalo, ainda preso pela multidão e assustado.
Odile subiu no animal e deu meia volta.
Não fugiu por ali. Ela correu até a extremidade de Crisântemo a toda velocidade e sem olhar para trás, nem mesmo de modo figurado.
Ela ouviu um trovão ruir sobre sua cabeça ao sentir o sol de Sonca ser encoberto pelas nuvens carregadas que chegavam mais cedo naquele dia.
Odile se viu na ponte de seus pesadelos. Na ponte em que perdera Nikki e a vida que pretendia levar com o homem que amava.
Ela partiu como Daisy, vendo-se dividida. Deixou tudo para trás assim que pisou fora de Crisântemo.
Diferente de Sohlon, ela faria tudo para recuperar seu filho sem ter que derramar mais sangue - apenas se necessário.
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