31. Histórias do Passado
As mãos do rei empunhavam fortemente a espada, hora ou outra fraquejando por conta dos músculos fadigados e a falta de sono. Sohlon tentou ignorar a noite em claro e seguir o dia normalmente. Seguir a vida. Ele empunhou a espada e atacou Roto, que era contra aquele treino matinal e deixou claro.
O rei atacou, desviou e atacou novamente. Sentiu a visão obscurecer-se e sua percepção comprometeu-se. Roto o empurrou com um dos ombros em uma defesa esperta e Sohlon veio ao chão, caindo de costas. Aquele nem de longe seria um bom dia de treinamento.
Assim que se viu no chão do pátio, o rei soltou a espada e deixou que o corpo relaxasse. Não se importou que Roto estivesse ali. Não se importou caso outro alguém o visse. A queda o acometeu da perda.
Ele chorou como um bebê. Como Kaha, que não ouviria mais chorar. Como o filho que amou por tão pouco tempo e não conseguiu proteger. Chorou como o filho que sentenciara à morte ao sentenciar outros. Ele sabia. A culpa batia em seu âmago, mas era completamente encoberta pelo luto e pelo ódio. Ódio do que ousou tirar a vida de seu bem mais precioso, seu primogênito e único herdeiro, o pequeno príncipe.
Roto deixou a própria espada cair ao chão. Não sabia como consolar aquele homem. Ele era o rei, mas era primeiramente seu melhor amigo.
- Nós vamos achar quem fez isso, meu irmão - Roto pronunciou, respirando profundamente. - E quando o acharmos, eu mesmo vou cortar a cabeça.
- Não - Sohlon sentou-se no chão e fitou Roto. Furor transbordava de seus olhos vermelhos junto com suas lágrimas. - Cortar a cabeça é rápido. É quase piedoso. Nem mesmo a forca ou a fogueira. Eu vou matutar sobre o que fazer com o infeliz que ousou invadir meus aposentos e tão cruelmente tirar tudo de mim. E eu quero a morte e o sangue dessa criatura em minhas mãos.
A porta do recinto se abriu ao fim da frase do rei, revelando o perito ofegante, como se tivesse corrido até ali.
- Vossa Alteza, sinto muito a interrupção! - ofegante, o homem já carregado de cabelos brancos o reverenciou.
Aquele homem que se apresentava a ele era o melhor perito de toda Cidade de Crisântemo. Fora convocado pela madrugada e estava ali antes mesmo do nascer do sol para investigar o infortúnio da realeza.
Sohlon viu nos olhos daquele homem que algo estava errado.
- Diga, homem! - ele ordenou, colocando-se de pé.
O perito engoliu o ar para formular as palavras que lhe deixavam ao mesmo tempo em pânico e em êxtase.
- Seu filho não estava ali no momento do incêndio, meu rei.
Os olhos de Sohlon tornaram-se vidrados. O perito apressou-se a continuar ao ver a postura rija de seu rei.
- Não havia resquícios da criança, meu rei! Nem no berço ou em qualquer lugar. Seu filho não estava naquele quarto quando foi devorado pelas chamas.
As palavras que chegaram ao ouvido de Sohlon causaram um efeito de completa petrificação. Ele demorou a entender o que aquilo significava.
Estaria Kaha vivo? Se sim, onde? Com quem?
Suas mãos tremeram e ele sentiu o fogo subir à cabeça. Sohlon limpou as lágrimas antigas como se lhe causassem vergonha e tomou a espada do chão, desviando das mãos de Roto que tentaram impedi-lo de fazer algo impulsivo.
- Prepare a guarda, Roto - as palavras de Sohlon foram incisivas. Ele já estava caminhando a passos largos quando as pronunciou. - Quero que vasculhem em cada centímetro dessa cidade e me tragam meu filho até meus braços. Quero o homem que fez isso vivo em minha masmorra, ou sua cabeça para que eu pendure na entrada do palácio pelos cabelos!
Roto nunca vira aquele olhar no rosto de Sohlon em toda sua vida, mesmo em situações extremas pelas quais passaram lado a lado. Tinha certeza de que aquilo não terminaria bem.
Ofensiva, a guarda esbravejou pelos portões como se partisse para a guerra. Centenas de soldados espalharam-se com seus cavalos pelas ruas labirínticas da cidade real e os gritos dos crisantianos puderam ser ouvidos quando invadiam suas casas e atropelavam os distraídos sem piedade.
Crisântemo percebeu que a fatídica noite passada não era mais que a ponta de um iceberg. O luto havia passado e o rei estava pronto por vingança. Vingança aquela que recairia sobre seu povo sem distinção.
Os crisantianos esconderam-se em suas casas, desinformados, pouco sabendo que era exatamente para lá que os soldados rumariam sob as ordens do rei.
Uma explosão no centro ecoou por toda a cidade e alertou um a um. Mirza fizera aquilo no beco vazio ao lado da própria casa, usando uma bomba caseira que ele mesmo produzira, logo antes de sair correndo sem deixar vestígios de que esteve ali. Precisava avisar. Precisava avisar Dona Lore e seus cúmplices antes que fosse tarde demais.
Passos vãos foram tomados pelo Bosque das Lamúrias, adentrando terras pouco exploradas e com histórias assustadoras.
Aquele pequeno grupo de fugitivos queria apenas paz. Não podiam voltar atrás e seguir em frente era a única opção plausível.
Kohan seguia em frente e Azura seguia atrás, os dois mantendo distância um do outro e pegando as pontas do grupo.
Nenhum deles podia sequer negar que o Bosque era divino, como um paraíso esquecido pelos Deuses. A ausência humana o fizera bem. Esplendorosas árvores apontavam para o céu límpido sobre suas cabeças e a folhagem verde os protegia da fúria de Sonca naquele dia em especial. Pedregulhos enormes estavam dispostos aleatoriamente pela floresta e as mais bonitas flores e frutos apareciam para eles de hora em hora. Um animal ou outro ousava atravessar-lhes o caminho. Um esquilo, um coelho e pássaros de diferentes tamanhos e cores. Nada que os amedrontasse até ali.
Os sobreviventes ousaram pensar que aquela travessia, fosse para onde fosse, seria mais fácil do que pensavam, quando a noite começou a cair sobre eles.
O frio os chamou depois de horas de caminhada a fio sem descanso. A fome gritou em seus estômagos e ficou claro que precisavam parar.
Alaric e Kohan aprenderam a caçar com o avô. Azriel ainda era só uma pequena criança quando o homem faleceu, pouco se importando com aquela atividade que parecia tão cruel.
Os dois irmãos mais velhos trouxeram coelhos e sem dificuldade Ginevra acendeu uma fogueira com os tocos de madeira que conseguiram recolher.
- Acham uma boa acender uma fogueira? - Viorica indagou, mesmo que já abaixada ao lado do fogo, esquentando as mãos.
Já escurecera ao redor deles.
- Além desse lugar ser horripilante - Azriel respondeu-a. -, afastamos os animais e não vamos chamar a atenção de ninguém. Estamos longe de Arande. Além do mais, se quiser comer coelho cru...
- Eu gosto da fogueira, é - a garota concordou, arrancando uma risada fraca dos presentes.
Azura não sentiu-se disposta naquela noite. A fome pouco a acometia. Ela sabia escondê-la por mais um pouco. Sua curiosidade gritava muito mais alto. A petrichoriana pegou um livro dos que trouxera e sentou-se afastada deles, no escuro, mas próxima o suficiente do fogo.
A petrichoriana perdeu-se ali, em um mundo que ela desconhecia e lhe fascinava. Histórias do Mundo Velho, a origem da bruxaria, a feitiçaria, tudo aquilo lhe hipnotizou por horas. Ela mal percebeu o tempo passar. Voltou os olhos para longe das páginas apenas quando ouviu passos aproximando-se em sua direção, vindos da fogueira ao seu lado esquerdo, timidamente.
A última pessoa que ela esperava estava ali, ao seu lado, com um espeto improvisado e uma carne mal passada.
Kohan a estendeu a carne do coelho.
- Venho em paz.
Azura abriu um sorriso amarelo e aceitou de bom grado a bandeira branca.
Kohan deu um passo para trás, mas rapidamente voltou e sentou-se ao lado dela. Azura rapidamente fechou o livro e o guardou.
O homem estudou seus ferimentos, mas nada disse.
- Sinto pelo que disse - ele calmamente iniciou a conversa. - Estava com a cabeça quente.
- Disse o que pensa - Azura não soou agressiva. Ela mordeu um pedaço da carne no graveto e cerrou as sobrancelhas. Não sabia o que esperar. A carne dura não era suculenta, mas tinha certo sabor e os alimentaria o suficiente pelo menos para passarem uma noite sem problemas. Uma garoa fina começou a cair, anunciando logo uma chuva carregada. As árvores os encobririam parcialmente, com sorte.
- Talvez, em parte - Kohan concordou, dobrando os joelhos e os puxando para perto do peito. - Não tudo. Podemos só...
- Esqueça isso - Azura balançou a cabeça. Não lhe importava mais.
- Trégua?
- Trégua.
Tanto daviliano quanto petrichoriana sentiram um alívio sair de seus ombros. Talvez passassem um bom tempo juntos ali. Não podiam continuar com aquela amargura ou só prejudicariam a si mesmos e aos outros.
Ficaram em silêncio por longos minutos, mas o silêncio não foi constrangedor para nenhum deles. Azura decidiu rompê-lo em dado momento.
- Posso perguntar?
- O quê? - Kohan a olhou de soslaio. Mesmo sentados lado a lado, Azura ainda era muito menor que ele.
- Sua história - a petrichoriana arriscou. - Sei que não são filhos de sangue de Honda e Tron, então...
Kohan abriu um sorriso para a frente, encarando a escuridão aterradora da mata à noite. Ele era bonito sorrindo, Azura reparou. Gostava mais que a carranca que ele insistia em exibir.
- É uma história bastante longa, petrichoriana.
- Não vou a lugar nenhum.
- Bom - Kohan inspirou profundamente. -, eu nasci em Cinzas.
Os olhos de Azura se arregalaram. Ela conhecia as histórias daquela terra fantasma, mas nada disse. Kohan prosseguiu.
- Minha mãe era uma mulher linda, negra, com olhos azuis e... eu lembro perfeitamente dela. Ela e meu pai se apaixonaram, mas ele era um cafajeste. Logo depois que eu nasci ele se mandou de casa e deixou eu e minha mãe lá. Eu não lembro bem, sinceramente, mas eu acho que estávamos melhor sem ele.
"Cinzas não é uma terra grande. Meu pai sumiu por um tempo e minha mãe achou que não ia precisar mais se deparar com aquele embuste, mas o destino quis diferente. Ela o encontrou em uma feira, alguns anos depois. Um lugarzinho tão pequeno. Eu estava de mãos dadas com ela enquanto ela comprava um mamão e o mamão do meu pai tentou passar despercebido, mas ela o viu. Com outra. E um bebê".
"Minha mãe foi lá confrontar que o homem nunca mais foi nem ver o filho e a outra mulher ficou furiosa. Não por ele não contar que tinha um filho com outra, mas pela falta de responsabilidade dele com aquela família. Minha mãe não me fez com o dedo, né?".
Azura riu.
- Acho que entendeu quem era aquela criança, né?
- Azriel?
- Sim.
- Isso faz dele o segundo filho de seu pai...
- Sim, a mãe de Azriel ficou... apreensiva, acima de tudo. Aquela criança que ela achou estar segura era secretamente um alvo de soldados impetuosos.
"Meu pai morreu de cólera um ano depois e... minha mãe e a mãe de Azriel viram que, apesar de trágico, aquele vínculo que nos ligava já não existia mais. Ninguém saberia que Azriel era meu irmão de sangue."
"Elas nos levavam pra passear juntas, eu curtia brincar com ele, mesmo sendo mais velho e me irritando fácil com um bebê, e aí... o destino agiu de novo. Minha mãe se apaixonou. Pela mãe de Azriel. E as duas se amaram por pouco tempo, infelizmente. Logo... bom, você conhece a história".
O semblante de Azura estava triste.
- Minhas mães não tinham dinheiro suficiente pra fugir de lá - Kohan continuou. - Não com a gente. Então, em uma drástica decisão, elas nos entregaram para um casal bem remunerado que ia desaparecer daquelas terras minadas como pó. Deram todo seu dinheiro para que pudéssemos viver.
"Minha mãe escreveu uma carta e colocou no meu bolso. Disse que nos veríamos logo. Ela contou essa história, mas eu lembro. Lembro bem, apesar de ter tão poucos anos".
"Aqueles velhos ricos que fugiram de Cinzas passaram por Arande e nos largaram lá".
- Honda e Tron encontraram vocês?
- É, Tron me encontrou. Um bebê tentando cuidar de outro. Ele nos levou pra casa e lá ficamos. Conhecemos os filhos dele, Alaric e Ginevra, e tínhamos idades parecidas. Nos demos bem logo. Crescemos juntos.
- Quanto anos Azriel têm? - Azura indagou.
- Dezenove.
- E você?
- Vinte e quatro. Mais novo e mais velho. Ginevra têm vinte e um e Alaric têm vinte e três.
- E... as mães de vocês? - Azura arriscou-se a perguntar.
- Nunca soubemos mais de nada. Cinzas mergulharam no caos e... não tiveram sobreviventes para contar a história em primeira pessoa. Os que conseguiram fugir, devem guardar esse segredo a sete chaves e eu não os julgo.
Azura concordou com a cabeça.
Por mais que a história fosse triste, Kohan se acostumara com ela. Não sofria ao contá-la. Não se vitimizava com o passado difícil. A vida o levou até pais incríveis, irmãos incríveis. O levou até ali e podia lhe mostrar ainda muito mais, ele sabia.
- E você, petrichoriana? - Kohan indagou, mudando o foco da conversa. A chuva forte e gelada começou a cair sobre eles, mas a fogueira manteve-se ali, protegida pelas densas folhas nas copas das árvores. Os quatro arandianos, agora de barriga cheia, pareciam conversar de modo mais descontraído. - Qual sua história?
- Vocês já sabem minha história - Azura tirou o xale do pescoço e o passou pelos ombros, procurando aquecer-se.
- Não, você contou só o que achou conveniente. Só omitiu o porquê de saber lutar bem pra caralho, o que me deixou bastante intrigado já que petrichorianos são um povo pacífico.
Azura sorriu para baixo.
- Meu pai - com orgulho, lembrou-se de Nero. - Ele acreditava que temos muito mais a aprender em vida. Que nosso corpo é um instrumento que vale a pena ser explorado. Para defender e atacar. Desde cedo aquele velho me ensinou tudo o que eu sei.
Kohan ouviu o pesar na voz da garota e não insistiu na conversa.
- Sei que deixou muito pra trás.
- Sim, deixei - Azura concordou, vendo a chuva pingar pelas frestas das árvores. - Alguns amargores, mas muitos amores.
- Amargores?
- Sim.
- Tipo?
Azura inspirou profundamente. Viu-se de peito aberto para desabafar sobre o que tentava esconder a todo custo, sufocando a si mesma.
- Eu já amei um homem, uma vez - Ela nervosamente descascava a raiz da árvore ao seu lado. - Ele era... meu melhor amigo.
- E o que aconteceu? - Kohan pisou em ovos.
- Ele me traiu. Traiu todos nós. Foi por causa daquele homem que um dia eu amei que... Petrichor sucumbiu.
Kohan não persistiu na história.
Eles deixaram o assunto morrer.
- Vai vingar seu povo, Azura de Petrichor.
- Vou? - ela perguntou com um sorriso desacreditado, fitando as pequenas formigas que faziam trajeto ao seu lado.
- Vai - Kohan incisivamente colocou. Ele observou sua família ali, na fogueira. Conseguiu ver quando Viorica finalmente mostrou a aliança que ele sabia que ela ganharia e os outros sorriram e comemoraram depois de horas apenas zumbizando. - Assim como eu vou vingar o meu. Os meus.
Cinzas levava o nome por ter a terra argilosa de uma tonalidade cinzenta passando por toda sua extensão, das praias ao centro, do centro à fronteira com Vocra.
Por ironia do destino, entretanto, as terras de Cinzas padeceram no fogo da fúria dos reis soberanos e nada restou lá.
As lendas diziam que agora Cinzas era uma terra desabitada onde os animais mais temerosos de Awa se escondiam e esperavam para um dia, finalmente, atacar.
Pouco se sabia sobre a verdade. Os boatos tidos como certos eram os de que um homem de identidade desconhecida reunira seu próprio grupo de rebeldes, que revoltou-se contra as injustiças que aquela coroa impunha sem escrúpulos.
Eles lutaram fortemente, mas Cinzas sucumbiu, junto com seus habitantes. Poucos fugiriam, entre eles as duas crianças que se isolaram em Arande, filhos de duas mulheres incríveis que lutaram bravamente até o fim.
Gisèle estava bêbada e nada podia tirá-la de seu estado de êxtase. Ela rodopiou pela clareira, em volta da fogueira, ao som dos gloriosos instrumentos que tocavam, e trombou fortemente com alguém, fazendo a pessoa derrubar uma grande quantidade de vinho seco sobre a camisa branca.
A daviliana levou as mãos à boca.
- Ai, Deuses! Me desculpe!
O garoto voltou-se para ela, espantado. Riu em seguida, vendo-a cambalear.
- Opa, espere! - ele a amparou. Gisèle não sentia o chão parado sob seus pés.
- Eu sinto muito mesmo! - mesmo em estado alterado, sentiu vergonha.
- Não se incomode com isso, de verdade - simpaticamente o bonito homem a acalmou. - Acho melhor se sentar.
- Não, eu preciso te arrumar outro vinho!
- Fique tranquila, eu já bebi demais!
- Eu também! - Gisèle riu, esganiçada. Ela reconheceu vagamente aquele rosto. - Ei, espere. Não é o outro cara que chegou também?
Ela lembrou-se dele. De ele estar ao lado dela e dos dois amigos quando foram por fim recebidos aos Kinos, formalmente.
- É, sou eu - o homem com os cachos claros e curtos ainda a segurava, Gisèle percebeu. Ela não estava alterada o suficiente para deixar uma boa conversa passar, por mais engraçada e sem nexo que fosse, mas não conseguia parar em pé. - Cheguei uma semana antes.
A loira sentou-se no chão, com o outro apenas a olhando.
- Está tudo bem? - ele perguntou, com um sorriso.
- É, sim, sente aí! - ela chamou, acomodando-se com as pernas cruzadas e fazendo um aceno estabanado com as mãos.
O dos cachos riu e a acompanhou, por mais que achasse que estavam no meio do caminho.
- E então, qual sua história? - a loira indagou, curvando-se para frente.
O homem arregalou as sobrancelhas.
- Assim, na lata?
- É, ué.
O dos cachos mordeu o lábio inferior. Gisèle o viu desconcertado.
- Te ajuda se eu falar primeiro? - ela indagou.
- Talvez!
- Okay, certo.
Gisèle o contou tudo, em uma história que durou mais do que esperava. Desde o dia em que fugiu de D'Ávila, até encontrar Tereza e a noite que quase lhe tirou a vida, mas a permitiu chegar ali.
- Tudo bem, você é um livro aberto, loira - ele respondeu, rindo.
- Provavelmente eu vou me arrepender de muito amanhã - Gisèle sussurrou com a voz embargada.
- E vai se lembrar de tudo o que eu te disser?
- Provavelmente não - ela voltou os olhos para o céu, sincera.
O homem riu.
- Tudo bem, eu... não estou confortável para entrar em detalhes.
Gisèle percebeu que tocara em um assunto delicado e rapidamente arrependeu-se. Ele, entretanto, continuou.
- Eu fiz uma merda. Uma merda das grandes - ele impacientemente fincava as unhas na própria mão. - Eu perdi tudo por causa de algo que eu achei que fosse certo.
Gisèle reuniu toda sua ciência para mostrar-se presente.
- Sinto por ter perguntado - mesmo com a voz sonolenta e arrastada, a loira soou sincera.
- Não se desculpe - ele prosseguiu. Viu-se desesperado para contar sua história para alguém. - Eu perdi a mulher que eu amava por um erro crasso. Então eu... fugi. Fugi para o Bosque e até pensei em me entregar à morte, mas... sabe aquela ali?
O dos cachos apontou com a cabeça para Aurèlia.
- A gostosona? - Gisèle viu-se chamando-a como Tereza a chamara. - Sei.
O dos cachos esboçou um riso.
- Ela fingiu estar ferida e eu a encontrei no Bosque. Estava supostamente com a perna quebrada ao escorregar de um desfiladeiro. Vi uma chance de me redimir, esquecer o passado. Eu lhe dei tudo o que eu tinha. Comida, água. Ajudei-a a se curar e a carreguei por quilômetros e quilômetros sem reclamar - dessa vez, ele olhou para o céu. - Aurèlia achou-me merecedor de uma nova chance.
Gisèle viu tristeza naqueles grandes olhos castanhos.
- Você precisa se achar merecedor também - suas sábias palavras saíram impensadamente. - Se não, do que adianta?
Ele concordou com um sorriso pueril. Decidiu por deixar tudo para trás e recomeçar a vida ali, onde ninguém o conhecia. Seu nome, entretanto, resolveu manter. Uma lembrança do homem que um dia fora.
- Eu não me apresentei! - a loira arrumou sua postura e estendeu-lhe uma das mãos. - Sou Gisèle de D'Ávila.
Ele a cumprimentou com prazer.
- Sou Düran. De Petrichor.
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