19. Acalentadoras Palavras
- Se concentre, Ginevra.
O sussurro imponente da petrichoriana surtiu mais como uma súplica do que como uma advertência.
A bruxa inspirou profundamente. O ar com aroma de sal do mar penetrou seus pulmões com uma sensação familiar ao mesmo tempo repulsiva e reconfortante - uma lembrança da terra, mas do lar. Suas pestanas, fechadas às ordens da nova amiga, tremulamente pediam para abrir.
Ginevra sentia as ondas da orla quebrarem em seus pés descalços que gradativamente afundavam na areia.
- O que deveria estar acontecendo, Azura? - Tentando não expor sua impaciência, falhamente, a bruxa indagou.
Azura, por sua vez, folheava com cuidado o livro que os arandianos expunham na humilde sala de estar. As folhas estavam amareladas, desgastadas e enrugadas, com um cheiro de mofo forte que a fazia querer espirrar de minuto em minuto.
Ginevra, não obtendo resposta, abriu seus olhos. O horizonte focou-se à sua frente em tonalidades azuis que acostumavam-se calma e vagarosamente à órbita. Azura não estava em seu campo de visão. Ela voltou-se para trás. A convidada estava sentada na areia atrás dela, desfrutando da ventania forte que vinha com a maresia da manhã e bagunçava seus cabelos. Um lenço emprestado por Ginevra encobria a capa do livro.
Azura levantou os olhos para Ginevra, vendo uma garota impaciente.
- Deveria estar tentando se encontrar. - Azura virou outra página.
- Não venha com esse papo espiritual pra cima de mim, Azura. - A bruxa sentou-se no monte de areia ao seu lado. Observou-a folhear as páginas com tamanha concentração. - Se meu pai descobrir que tirou o livro de casa...
- Ele não vai se importar. - Azura arriscou um palpite. - Estou tentando te ajudar. Estamos em um trecho deserto da praia logo ao nascer do sol. Não há ninguém aqui.
- É, porque estão todos dormindo como seres humanos normais.
Azura fechou o livro. Sua pouca habilidade em vocraniano estava enferrujada.
A petrichoriana esforçou-se para não fuzilá-la com o olhar.
- Okay, eu vou parar de reclamar. - Ginevra adiantou-se.
- Não sei como quer que eu te ajude, Gine. - Azura voltou-se para ela. - Já vi um pouco do que é capaz de fazer. Como se encontrou?
- Quer dizer aquele lance de acender fogo com o dedo? - Ginevra deu de ombros. Aquilo não era algo digno de se chamar de bruxaria.
- Não só. Você me curou quando eu estava definhando no chão do seu quarto...
- Eu não queria nenhum cadáver fedendo onde eu durmo, talvez tenha sido um bom incentivo.
- Cale a boca. - Azura segurou uma risada. - Aquela mistura de ervas... tudo aquilo. Como aprendeu?
Ginevra concentrou-se na conversa. A ausência de sono não a ajudava a focar. Ela caçou uma memória boa em seu âmago.
- Bom, acredite ou não, comecei a dominar o fogo uma vez, quando fui cozinhar e queimei a mão na panela. Bem irônico, na verdade, mas a minha avó, mãe do meu pai, quem me ensinou tudo. - Ela sorriu com a lembrança. - Eu adorava aquela velha, pena que ela faleceu quando eu tinha só... seis, sete anos.
- Sinto muito. - Azura viu o pesar nos olhos da nova amiga.
- Está tudo bem. Ela disse que eu seria forte... e eu achava que ela se referia a comer todo o espinafre no almoço ou coisa parecida. - As duas riram da recordação. - É, não foi bem isso. A vó me ensinou a plantar, a cozinhar e... em certo ponto ela me ensinou do que eu realmente era capaz com aquela idade.
Azura ficou muda, ouvindo os relatos com atenção e curiosidade.
- Escondidas do meu pai, é claro, - Ginevra continuou. - a vó me ensinou a arte da medicina com as plantas.
- Vi muito disso. - Azura puxou lembranças. - Eu lembro do meu pai usando. A cozinha ficava com aquele cheiro gostoso de várias ervas cozinhando...
- É, eu sempre gostei dessa parte. - A bruxa deitou-se para observar o nascer do sol. - Mas não era bem esse o objetivo da velhinha.
- E qual era?
Ginevra acomodou-se sobre a blusa e soltou um longo bocejo. A luz dos raios de Sonca a mandavam fechar os olhos outra vez. Foi o que fez.
- Ela me ensinou a me conectar com aquelas plantinhas. Disse que minha conexão com os elementos tinha um potencial forte. E eu lá sabia o que isso significava? Enfim, ela me ensinou a fortalecer as propriedades das folhas, fazer pontes entre elementos... eu fiquei boa logo. Eu só... sentia o que eu devia fazer e acontecia. As misturas ficavam com uns tons diferentes toda vez, era lindo, mesmo quando dava errado. Parecia tão simples... talvez crianças aprendam rápido.
- Talvez precise de um gatilho como sua avó.
- Talvez. - Ginevra deu de ombros. A preguiça de continuar trazia-lhe um sono aterrador. - Eu levo alguns pesares, entretanto.
- Como assim?
- Eu não pude salvá-la.
- A sua avó?
- É. Câncer. - Ginevra sentiu as pálpebras tremerem. - Não temos um bom tratamento aqui em Arande e... não tínhamos dinheiro pra procurar algum lugar decente. Ela morreu lutando. Eu a vi morrer lutando enquanto lutava pra salvá-la. Eu era uma criança...
- Gine... - Azura procurou por palavras que não encontrou.
- Está tudo bem, Azura. Foi há muito tempo.
Ginevra adormeceu ali mesmo, deixando Azura com o livro indecifrável de segredos milenares e os raios de sol beijando-lhe a pele.
Queria ajudar a bruxa como seu pai lhe ajudara. Queria ajudá-la como a avó de Ginevra fizera anos antes - apenas precisava aprender a guiar-se primeiro.
Há quem diga que a beleza da criança está na pureza da alma.
Os primeiros anos de vida são uma brincadeira, mesmo quando se encontram em situações como aquela.
A garotinha roubara o pacote de maçãs da feira de D'Ávila e aproveitara das pernas ágeis para correr como o vento. Conhecia aquelas vielas melhor que qualquer guarda e todos conheciam a pequena menina de cabelos cor de fogo que só queria sobreviver.
- Onde estava, criatura? - O homem esbravejou quando a viu entrar na toca, ofegante. - Já disse pra parar com isso.
Com apenas dez anos, a garota protestou. Jogou as maçãs aos pés do homem e a atenção de todos os refugiados ali se recaiu sobre ela.
Dormiam embaixo da ponte, os desafortunados e desabrigados. Ela se acostumara a chamá-los de família, por mais que muitos não a conhecessem. Jornadas ali podiam ser passageiras ou permanentes. Fora o próprio homem de bom coração, Júne, que a acolhera ali. Sem família, ele usava da pouca renda para alimentar aquelas bocas famintas.
Ele olhou da maçã aos seus pés, ao mesmo tempo emocionado e irritado, para os olhos da menina.
Júne aproximou-se dela com um olhar pesaroso no rosto.
- Não precisa fazer isso, Tereza. - O homem tocou-lhe o ombro. - Está se arriscando demais.
A garota de cabelos cor de fogo olhou no fundo dos olhos do homem. Amadurecera rápido. Precisava amadurecer rápido.
- Preciso sim, Júne. - Ela pegou uma das maçãs do chão e estendeu-a ao homem. - Você também precisa comer.
- Tereza! - A voz distante a despertou de um sono profundo.
Tereza abriu os olhos devagar, a claridade a cegando. Não sabia como conseguira dormir bem ali, na terra dura, em meio aos insetos que agora sacudia de seu corpo.
Tanto Gisèle quanto Caiden já estavam de pé, a postos. O fogo da fogueira fora apagado a muito, logo antes de ela pegar no sono, no turno de Caiden. Encheram a barriga na noite anterior com dois coelhos que o garoto conseguiu caçar.
Cöda dormia como um pequeno príncipe, embrulhado no improvisado aconchego da blusa de Caiden atada ao corpo de Gisèle, que lhe passava calor e conforto. Parecia uma bolsa de canguru. O pensamento fez o canto da boca de Tereza esboçar um sorriso.
- Vamos em frente. - Caiden inclinou com a cabeça para a mata.
- Está indo pro lado errado. - Tereza botou-se de pé.
- Não, não estou.
- Sim, está.
Ela olhou rapidamente para o céu.
- A Pedreira fica a Noroeste.
- Sim, é pra lá que estamos indo.
- Pelo caminho errado.
Caiden mostrou-se impaciente.
- Eu disse que ia levá-los, não disse? - Tereza manteve a calma. - Apenas me sigam.
Gisèle não demonstrou reação alguma. Suas olheiras evidenciavam que a noite não fora agradável.
Caiden, no entanto, procurou pelo olhar de aprovação da amiga.
- Vamos segui-la, Caiden. - Gisèle respirou fundo.
Tereza sorriu, vitoriosa, e pôs-se na frente do grupo, passando pelos dois e rumando na direção que tinha convicção de ser a certa.
- Achei que não confiasse nela, Gis. - Caiden sussurrou, ainda sem tirar os olhos das costas da ruiva, que distanciava-se.
- Todos merecem um voto de fé. - Gisèle afagou a cabeça do bebê em seu colo. - Aliás, se ela estiver errada, pode jogar na cara dela depois.
Caiden riu.
- E isso é bom?
- Sempre me ajuda, é. - Gisèle deu de ombros e seguiu Tereza.
Caiden ficou para trás e sorriu para si mesmo. Apesar de todos os pesares, sentia-se em boa companhia - mesmo com a forte sensação ruim que lhe batia no peito.
- Só por curiosidade, - Tereza coçou os cabelos ruivos e embaraçados. - como estão limpando essa criança?
- Tem que limpar? - Caiden ergueu as sobrancelhas em tom travesso.
Gisèle revirou os olhos.
- Eu joguei a merda na terra que vira adubo. - A loira respondeu. - E dei um banhinho nele com a água da chuva que eu esquentei na fogueira ontem à noite.
- Boa ideia. - Tereza a elogiou. - Ele já tá melhor que eu.
Os três caminhavam em fila, desviando de galhos e troncos de árvores que invadiam-lhes um caminho mal definido.
Não comentaram entre si, mas a mudança da mata era evidente. Os troncos pareciam mais escurecidos e finos, longilíneos como se tocassem o céu. As plantas rasteiras eram maiores e batiam em suas cinturas, como se acabassem de entrar em uma terra de gigantes.
- Nós temos um plano? - Gisèle arriscou-se a perguntar.
- Andar até encontrar alguma coisa útil ou até não conseguirmos mais andar. - Tereza murmurou. - Seja de fome ou cansaço.
- Acalentadoras palavras. - Caiden ironizou.
- Ninguém fala assim. - Tereza voltou-se para trás e torceu o nariz.
O início do dia não fora fácil. Os pés descalços dos fugitivos despreparados sentiam a sensibilidade de pisar em galhos e pedras a cada passo. O desenrolar da manhã, no entanto, tornou-se mais monótono. Os pés acostumaram-se, os corpos entraram em uma marcha incessante e ritmada. Uma barriga roncou. Logo depois, a outra. Cöda chorou.
- Acho que é hora de recuperarmos energia. - Gisèle balançou a criança nos braços.
Tereza revirou os olhos, mas não deixou que a vissem. Por ela, continuaria até o anoitecer e talvez um pouco mais. Eles não tinham resistência a situações extremas como ela e ainda carregavam a tiracolo uma criança recém-nascida.
Antes que sua boca a traísse, Tereza ouviu os inconfundíveis sons que a chamavam.
- Escutam isso? - A ruiva olhou para trás, parando bruscamente.
Os dois amigos a encaravam com interrogação no olhar.
- Escutando o quê? - Caiden não ouvia mais que sua própria voz ao som do choro do irmão.
Tereza apurou os sentidos. Seguindo os próprios instintos, rumou mata adentro.
Caiden bufou.
- Espere. Tereza?
Gisèle os seguiu, mesmo a contragosto.
Caiden seguiu os cabelos esvoaçantes da ruiva que se destacavam na imensidão verde ao redor deles.
Ele abriu a boca para chamá-la outra vez, mas seus olhos depararam-se com o pote de ouro no fim do arco-íris que Tereza perseguia com convicção.
A loira alcançou-os logo depois, vendo tanto Caiden quanto Tereza petrificados, fitando o riacho que se estendia em frente a eles.
Gisèle soltou o ar com força, aliviada. Foi a primeira a passar pelos dois e correr para a água. Com uma das mãos fez uma concha e pegou água, levando-a diretamente para a boca e repetindo diversas vezes até saciar sua sede insaciável.
- Nem sabe se a água é limpa. - Caiden abaixou-se ao lado dela.
- Pelo amor de Deus, Caiden. - A loira protestou. Em um gesto rápido, colocou Cöda nos braços do amigo. - Eu moraria aqui.
- Não é má ideia. - Tereza tirou a blusa e a jogou na terra ao lado dos dois.
Tanto Caiden quanto Gisèle a olharam em confusão.
- O que vai fazer? - Gisèle perguntou.
- Tomar um banho, oras.
A ruiva tirou as calças e exibiu uma roupa íntima desgastada. Quando ameaçou tirá-las, Caiden olhou para o outro lado com as bochechas coradas.
Gisèle abriu a boca para protestar, mas não sabia o que dizer. Tereza parecia mais certa que eles, parados ali como duas árvores criando raízes.
Nua, a ruiva adentrou o riacho e ajoelhou-se até que a água fria alcançasse seu pescoço.
- Eu... - Caiden olhou para o céu, desconfortável. - vou achar alguma coisa para comer.
O garoto devolveu Cöda para Gisèle e tomou seu arco e flecha, deixando as duas para trás com o irmão.
Gisèle não sabia que caminho seguir - protestar a falta de pudor de Tereza, rir, ou se juntar a ela.
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