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12. O Levantar de D'Ávila

Caiden não soube como encontrou forças para chegar ao chão.

Seu irmão chorava em seus braços, enrolado em panos limpos e protegido da chuva torrencial que avassalara D'Ávila naquela noite.

Sentiu como se a terra de seu quintal fugisse aos seus pés. Sua respiração, por mais que insistisse em puxar o ar, falhava. A chuva o cegava e o coração palpitava. Seu mundo inteiro virou do avesso, assim como seu peito teimava em fazer.

A ciência de onde estava e a situação em que se encontrava retornou apenas quando a figura de Gisèle desenhou-se à sua frente, um bosquejo dos cabelos loiros e dos olhos azuis desesperados. As mãos geladas da amiga apertavam-lhe com força o ombro, trazendo a atenção para si.

- Caiden! - Ela percebeu quando o amigo focou no presente. - Precisamos sair daqui!

Gisèle tomou o pequeno ser dos braços de Caiden e, mesmo que a criança pesasse menos de meio quilo, livrou-o de um peso enorme.

- Pra onde, Gis? - Foi o que Caiden conseguiu balbuciar em meio à tempestade.

Gisèle abriu a boca para responder, mas foi interrompida pelo som acima de suas cabeças. A porta do quarto onde estiveram outrora fora rompida e os gritos de Carú e Coli puderam ser ouvidos claramente.

Tudo o que Caiden gostaria de fazer era de voltar. Voltar não só para aquele quarto como para minutos atrás, quando sua mãe ainda vivia. Voltar não só minutos, mas anos, para quando Bóris não destruira aquela família.

No entanto, Caiden sabia que não poderia voltar.

Ele tomou a mão de Gisèle quando fugiu, atravessando o quintal dos fundos de sua casa e sumindo por entre as árvores de folhagem espessa que cresciam ali desde sua infância, no exato segundo em que o soldado imperial colocou o corpo para fora da janela do quarto onde jazia a mãe daqueles irmãos, Cida. Carú tentou ganhar tempo para os irmãos e a amiga, mas não fora o suficiente. O soldado avistou o agasalho de Gisèle antes que se perdesse por completo na escuridão da noite, sabendo então exatamente para onde seguir.


Gisèle segurou as lágrimas, sabendo que Caiden precisaria que ela fosse agora mais forte do que nunca. Ela soltou a mão do amigo para usá-la de proteção contra os galhos das árvores que vinham ao seu encontro. Deixou que alguns topassem contra seu rosto, dando preferência para a segurança daquela criança em seus braços, tão leve que ela pressionava os dedos contra o pano em seus braços para ter certeza de que o bebê ainda estava ali.

Ela ouviu o relinchar dos cavalos não muito distante.

Seus passos pararam instintivamente, puxando o ombro do amigo moreno.

- O que foi? - Caiden gritou, limpando a água da chuva que escorria de seus cabelos para os olhos.

- Não vamos conseguir fugir deles, Caiden! - Gisèle balançou a cabeça.

- E o que espera que façamos, Gis?!

Ela olhou em volta. A vegetação não os protegeria por muito mais tempo.

- Precisamos de ajuda...

- De quem, Gisèle?! Pelo amor dos Deuses, temos que dar o fora daqui agora!

- Como, Caiden?! - Ela ouviu o relincho dos cavalos se aproximando. Eles os cercariam rapidamente. Sua melhor chance era despistá-los e ganhar tempo.

A loira rezou para que Caiden confiasse nela.

Piscou os olhos com força antes de decidir seguir na decisão oposta à que vinham, rumando para o centro de D'Ávila.

- Você está roubando, seu velho bêbado! - Maurú gritou para o oponente quando o mesmo jogou o nove de espadas na mesa, atrapalhando sua jogada.

Havia pouca luz na cidade naquela noite que já tinha o pé na madrugada. Alguma vinha da taverna no centro de D'Ávila, onde os amigos bêbados insistiam em se reunir mesmo debaixo do pé d'água que a tempestade trouxera.

Maurú entornou mais um copo de cerveja gelada e bateu com o mesmo na mesa, frustrado ao perder a jogada. O homem tinha por volta de seus cinquenta anos. A barriga farta mostrava o quanto ele gostava de se sentar naquela mesa todos os dias e encher a cara de tudo o que o bar pudesse oferecer. Nesse dia, contentou-se com a velha amiga, a cerveja gelada que descia bem por sua goela.

- Não dá pra roubar nesse jogo, seu imbecil! - Seu oponente gritou, fazendo os outros dois na mesa se encararem como se dissessem: "olhem esses dois, que idiotas!".

O bar estava mais cheio que de costume, entretanto.

A chuva abrigara forasteiros que foram pegos de surpresa à caminho de suas casas, interrompidos pela torrente que caía dos céus. O dono da taverna agradeceu. As merrecas que tinha no caixa não comprariam muito mais pães para pôr na mesa da família.

- Cale a boca, velho bêbado! - Maurú, mais velho e mais bêbado do que o homem o qual incitava as ofensas, gritou. Maurú levantou-se com dificuldade, sentindo o mundo girar ao fazê-lo.

O grande homem tropeçou em seus próprios pés antes de cair ao chão empoeirado da taverna, rendendo poucas risadas e muito pouco caso dos outros clientes ao seu redor.

O dono da taverna já se acostumara com a rotina de Maurú - beber até perder os sentidos, gritar com um ou outro, cair no chão como um saco de batatas e dar sorte de chegar em casa. De algum lugar tirava dinheiro para estar ali no dia seguinte.

Maurú balançou a cabeça, em uma falha tentativa de recobrar seus sentidos.

- Está bem, homem? - Um forasteiro o amparou, tentando erguê-lo com certa dificuldade.

Maurú, entretanto, fitou a chuva de onde estava. Podia estar bêbado, mas vangloriava-se de sua boa visão. Ela não o deixou na mão quando o borrão das duas figuras surgiu em meio às cortinas de água gelada que caíam.

Com certa dificuldade, Maurú levantou-se, apoiando o corpo no bondoso homem que o ajudara, mas sem tirar os olhos do horizonte.

Tentou balbuciar uma pergunta destinada a ninguém em especial. Queria saber quem eram aqueles dois cidadãos que se aproximavam, correndo como se tivessem visto um fantasma.

Entretanto, Maurú percebeu logo. Apesar da distância e da embriaguez deturpando-lhe os sentidos, o homem não conseguiria confundir Gisèle com mais ninguém.

A atenção que Maurú dava às duas figuras que corriam em sua direção fez com que também os outros clientes do bar os fitassem.

Os gritos de pavor da loira entraram na atmosfera, cortando a chuva e chegando aos ouvidos dos moradores de D'Ávila.

- Gisèle? - Maurú conseguiu murmurar, a voz saindo com gosto de cerveja.

A loira apareceu correndo aos prantos, seguida pelo garoto moreno. Em seus braços, o embrulho encharcado chorava sentido.

Os cabelos da garota, agora escuros e carregados de água, estavam colados em seu rosto. Ela jogou-se nos braços de Maurú, seu tio de criação, amigo de seus pais, o homem que a amparou quando eles se foram. Maurú sentiu o pavor da protegida em seus braços e envergonhou-se pelo estado em que se encontrava.

- O que foi, Gisèle?! - Sua voz embargada conseguiu gritar.

Gisèle afastou-se para olhar o tio. O som do trote dos cavalos aproximava-se por entre a chuva. Caiden tirou uma flecha da aljava e a armou, olhando para a escuridão da cidade.

- Eles vão nos matar, tio... - A voz da garota saiu trêmula.

Àquele ponto, toda a festa da madrugada que ainda restava no bar, desfez-se. Toda a atenção estava voltada para o casal desesperado.

- Quem vai matar vocês, Gisèle? - Maurú desejou desesperadamente que estivesse sóbrio naquele momento.

- É um menino, tio... - Ela balançou o bebê em seus braços, que berrava. Seus primeiros minutos de vida estavam sendo atípicos, para dizer o mínimo.

Maurú não compreendeu de imediato onde sua sobrinha queria chegar. Entretanto, o dono da taverna entendeu.

- É de Dona Cida, a criança? - O ruivo, já com entradas nos cabelos e os olhos cansados, perguntou. Ele identificou Caiden, o filho de sua fiel cliente.

Caiden o olhou com olhos cansados e sem vida, assustados e pasmados. Concordou com a cabeça.

- E onde está sua mãe, garoto? - O homem perguntou, de trás do balcão.

Caiden não respondeu. Não verbalmente. Ele tentou, os Deuses sabem. Seus lábios tremeram em resposta.

Dona Cida estava morta. A mulher mais querida de D'Ávila, feliz com a vida, mãe de uma linda família, ansiosa pelo filho que viria.

Todos a conheciam. Todos sentiram a dor daquela perda. Mas Caiden sabia que não era hora para lamentos, assim como Gisèle.

Eles ouviram o relinchar dos cavalos se aproximando. Estavam perto o suficiente para que Caiden os visse, apesar da chuva.

- É um menino, tio Maurú! - Gis gritou, deixando as lágrimas mesclarem-se às gotas de chuva. - Eles vão matar o menino, vão matar a gente...

Maurú já não tinha mais problemas para ficar em pé. Seus olhos encheram-se de lágrimas ao ver Gisèle naquele estado.

Ele olhou para os presentes no bar. Não tinha uma alma ali que não estivesse tocada pelas súplicas desalentadas da garota.

O dono da taverna apagou as luzes, fazendo com que tudo mergulhasse na mesma escuridão da cidade. Apenas a lua os iluminava.

Maurú tocou os ombros da garota. Os soluços da menina saíam descontroladamente, mas ele fez com que ela o olhasse.

- Gis, vocês tem que dar o fora daqui. - Sua voz saiu firme, como se ele conseguisse isolar todo o álcool para falar com a garota que viu crescer. - Tem que sair de D'Ávila, vocês dois.

Seu conselho doeu no próprio peito, pois ele sabia que no fundo estava a mandando para longe. Provavelmente não a veria mais.

- Mas tio...

- Vamos atrasá-los. - O homem que ajudou Maurú a se levantar disse firmemente.

- Eles vão matá-los... - Caiden apontou a flecha para a escuridão. Sabia que tinham sido encontrados. Os cavalos trotavam em sua direção.

- Dona Cida está morta, filho. - O dono da taverna murmurou. Caiden pôde ver a luz da lua iluminando algo na mão do homem. Uma lâmina. Uma espada. - E sua mãe não merecia isso.

Foi a gota d'água para os habitantes de D'Ávila.

Caiden achou que ninguém se disporia a lutar por eles, mas Gisèle passava muito mais tempo nas ruas que o amigo. Ela sabia que não seria a morte de Cida que faria o povo se levantar. A trágica notícia apenas seria o estopim.

Todos sentiam a fome, a pobreza que pesava nos bolsos. Sentiam as injustiças e morriam com as doenças.

Não era justo.

Cida foi a gota d'água.

Caiden viu quando o primeiro homem correu para fora da taverna. Ele jogou uma garrafa de gin vazia na direção dos soldados, errando um deles por pouco.

Outro seguiu depois dele.

Caiden olhou para Gisèle. A loira o olhava também. A menina voltou-se para o tio.

- Fujam daqui, Gisèle.

- E vocês, tio?

- Vamos vingar a Dona Cida.

Um por um, as dezenas de clientes daquela taverna correram em direção aos três cavaleiros, armados de o que quer que encontrassem ao alcance.

Estavam em clara vantagem.

- Corram! - Maurú gritou, por fim, e Gisèle obedeceu.

Antes de ir, Caiden disparou a flecha. Sua mira impecável acertou no peito do soldado do meio, fazendo-o tombar do cavalo.

Os homens na rua bradaram de excitação. Das janelas, as pessoas formaram platéia. Alguns saíam às ruas. Alguns se juntavam ao pequeno grupo de rebeldes.

Mais soldados surgiram no horizonte ao ver a baderna. Entretanto, ninguém recuou.

Foi a morte de Dona Cida que levou aquelas pessoas à luta. Eles se mantiveram firmes e fortes enquanto Gisèle e Caiden fugiam.

Os cidadãos de D'Ávila juntaram-se às ruas naquela madrugada. Lutaram.

No fundo, foi Cida. Foi a mulher de coração puro que fez com que aquele povo despertasse. Foi Cida que os fez abrir os olhos. Foi Cida quem lutou. A morte dela os levou até ali e o sangue derramado pelas ruas de D'Ávila naquela noite - seja dos soldados, seja dos cidadãos - misturado à água da chuva que correu pelas valetas e não os deu descanso, não foi em vão.

Para Kohan, a paisagem era linda.

O homem não era de aproveitar dos detalhes que o cercavam, mas a praia, o horizonte, as gaivotas, as ondas quebrando na arrebentação, tudo isso o proporcionava uma boa sensação no peito.

Azura o seguiu, como pedido.

O homem tirou os sapatos antes de pisar na areia negra da praia e ela fez o mesmo, deixando as botas emprestadas de Ginevra ao lado das dele.

A garota sentiu como se seu coração estivesse anestesiado. Ainda sentia a dor no músculo, mas não conseguia interpretá-la. Sentiu-se mal por não estar aos prantos. Seu âmago parecia não entender. Algo a mandava voltar. Ela voltaria, se pudesse. Voltaria à nado, não se importando com as ondas esbravejantes que Morgana tanto gostava em seu mar. Voltaria para os braços do pai como uma garotinha assustada, se pudesse. Voltaria para o calor do Durän que um dia conheceu, se pudesse. Voltaria a cavalgar com Shiro pelos campos de camélias e levaria Ava-Lee para colher jabuticabas. Se pudesse.

- Está bem? - A pergunta de Kohan cortou o silêncio.

O homem balançou a cabeça ao perceber a pergunta que fizera. É claro que ela não estava bem.

- Me trouxe aqui pra me matar? - Azura perguntou com uma entonação travessa.

- Se quisesse te matar, te mataria em casa.

- Aqui fica mais fácil de se livrar do corpo.

- Mais testemunhas.

- Menos sujeira.

Kohan riu.

- Pare de me dar ideias.

O homem tirou do bolso duas sacolas. Entregou uma à Azura.

- Pra quê isso? - A garota perguntou.

Ele apenas a guiou para a beira do mar. A água fria tocou-lhes os pés.

Azura sentiu-se arrepiar.

Kohan se abaixou para alcançar algo na areia. Ele levantou uma espécie de concha marrom e mostrou à Azura.

- Já viu um marisco?

Azura balançou a cabeça em negação.

Kohan lavou a concha na água e colocou-a na sacola em seu braço.

- A tempestade deve ter trazido vários aqui pra orla. E, com sorte, conseguimos trocar por um pão ou uma carne pro jantar. - Ele olhou de soslaio para a misteriosa garota, tentando interpretar se seu plano de conversar com ela era convincente. - Vai ajudar?

- É claro que vou. - Azura abaixou-se e pegou um marisco. Era mais pesado do que aparentava. Ela girou-o entre os dedos antes de guardá-lo na sacola. - É o mínimo que posso fazer.

Eles começaram a caminhar lado a lado, chutando as areias da praia em busca da moeda de troca.

- Tem outra coisa que pode fazer, na verdade. - Kohan tentou parecer pouco incisivo, mas Azura sabia onde ele queria chegar.

- O que quer saber?

- Quero saber o que sabe.

- Sobre o que? - Ela cerrou as sobrancelhas, confusa.

- Sobre nós.

- O povo de Arande?

- Pare de se fazer de desentendida. - Kohan soou mais grosseiro do que esperava, mas não se importou. - O que sabe sobre minha família?

- Por que acha que sei algo sobre sua família? - Azura abaixou-se para pegar mais do tal marisco. A água do mar molhava as barras da calça preta.

- Porque não é nenhuma coitada desligada.

Azura bufou.

- Por que isso interessa tanto pra vocês?

Kohan parou de andar. Parecia estressado. Em seu interior, procurava paciência. Suas palavras, entretanto, soaram mais calmas do que ele mesmo esperava.

- Você vem de longe. Teve uma vida diferente. Nunca nem viu um marisco na vida, o que me faz acreditar que não conheça muitas coisas sobre o lado de cá.

Azura ergueu uma das sobrancelhas. Kohan voltou a caminhar ao lado dela. Era mais fácil que encará-la.

- Exatamente. - Azura debateu. - Não sei nada sobre vocês. Por que eu seria uma ameaça?

- Porque, se palavras erradas saírem de sua boca, minha família vai pra forca.

Azura sentiu um arrepio na espinha.

Em Petrichor, a vida era fácil, ela reconhecia. Em que tipo de universo aquele povo vivia que precisavam de uma forca para resolver seus problemas? Ela deixou a pergunta sumir em algum lugar sombrio de sua mente. Decidiu responder às questões de Kohan.

- Sua irmã me curou da febre em questão de minutos. Quando levantei da cama eu senti um cheiro forte e vi uma bacia com algumas folhas e flores amassadas, misturadas a um líquido escuro. Parecia uma medicina alternativa e caseira, mas brilhava com um pigmento verde cintilante que nunca vi na vida. Nem meu pai, o incrível curandeiro que era, fazia algo parecido.

- O que mais? - Kohan perguntou, impassível.

- Na prateleira da sala tinha um livro de capa dura, logo atrás do sofá em que seus pais estavam. Está numa língua antiga, mas que sempre me trouxe curiosidade. É do antigo povo de Vocra. Eu sou ignorante em relação à ela, mas me lembro do básico. Se me recordo bem, estava escrito: "Segredos Milenares", o que eu realmente acho que não deveria estar tão exposto, pelo título.

Kohan não respondeu, deixando uma brecha para que Azura continuasse.

- No quarto de sua irmã, eu... bisbilhotei, admito. Mas não me diga que não faria o mesmo se acordasse em um lugar completamente desconhecido?

- O que encontrou? - Kohan perguntou, fitando o horizonte.

- Nada demais pelo quarto. Isso até eu levantar o colchão. Tinha um livro com uma espécie de... uma coletânea de palavras mais complexas do que eu gostaria. Tinha na língua dos antepassados de Vocra, mas mais algumas outras que nunca vi na vida. - Azura fez uma pausa. - Acredito que tenha a ver com o que querem tanto esconder.

- Algo mais?

- Bom, seu pai soube que eu escutava a conversa antes mesmo de eu entrar na sala. Como ele fez isso, não faço ideia, mas achei no mínimo curioso.

Kohan abriu um sorriso de canto, apesar da preocupação. O homem admirou-se com a percepção da convidada.

- Posso lhe contar uma história, Azura? - Ele alcançou mais dois mariscos aos seus pés, que camuflavam-se à areia escura.

- Que tipo de história?

- Do passado.

- Eu conheço as histórias do passado.

Kohan riu, desacreditando.

- Não pode saber tudo sobre tudo.

- Não acho que eu saiba. - Azura justificou-se. - Que história seria?

O garoto puxou o ar profundamente, engolindo algumas gotículas da água salgada do mar que voavam para cima deles com o vento.

Pescou os detalhes em sua memória antes de lhe contar.

Alguns dizem ser pura lenda, histórias para amedrontar crianças ou distorções drásticas do que realmente ocorreu.

"No que acreditar, já não sei te dizer. Histórias são complexas. Temos sempre apenas um lado, um ponto de vista. Bom, eu vou lhe dar o meu. O que mais acredito, quero dizer".

"Creio eu que já ouviu falar de Vocra, como bem percebi. E creio eu que já ouviu falar das bruxas do passado, quando elas rondavam as terras do Vale de Awa".

"Rezam as histórias que as bruxas eram dotadas de muito poder. Você, Azura, que vem da terra do Sol e da Lua, com certeza conhece as histórias. As divindades que nos rondam, todas elas, subiram aos céus por conta das bruxarias".

"O ser humano, entretanto, é dotado de uma ignorância sem limites. Foi em Vocra que Morgana mergulhou nas águas dos mares".

"Sabe o que aconteceu com a bruxa assim que Morgana se foi com os mares?"

"Ela foi morta".

"Ninguém, em momento algum, acreditou nas palavras daquela bruxa. De que Morgana estava em paz, que cuidava dos oceanos e que protegeria os mares por todo o Vale de Awa".

"Não, o ser humano é sujo, Azura".

"Aquela bruxa que de bom grado ajudou a salvar a terra de Vocra foi queimada viva em praça pública, acusada do assassinato da menina Morgana".

"É essa a história que conhecemos. Essa é a história real, e não a romantização de que tudo virou um oceano de pétalas de rosas quando a Deusa subiu aos céus".

"Não, os humanos não entendem. E temos pavor do que não conhecemos. É por isso que a bruxa foi queimada viva na fogueira de Vocra. É por isso que matamos até hoje tudo o que não é de nossa ciência - porque temos medo".


E por que me conta isso, Kohan? - Azura perguntou. A água gelada que tocava-lhe os pés lhe trouxe uma sensação ruim.

A garota conhecia as histórias dos Deuses. Conhecia a história de Morgana, a criança vocraniana que se sacrificou para que seu povo pudesse ter terras férteis e uma boa colheita de novo. Mas Azura não tinha conhecimento do que aconteceu depois.

- Você, de Petrichor, terra em que tudo é bom e nada lhes falta, - Kohan respondeu-a com uma indagação. - sabe qual é o crime mais grave que um habitante do Vale de Awa pode cometer?

Os flashes de Marin e Vera lhe vieram à mente. Azura apertou os olhos para afastá-los.

- Ter um segundo nascido homem.

- E sabe qual o segundo crime mais grave?

Azura balançou a cabeça, negando.

Kohan engoliu em seco antes de cochichar.

- Prática de bruxaria.

Azura ligou todos os pontos com aquelas palavras. Aquela família era diferente. De repente, tudo fez sentido para a garota dos olhos cinzentos. Os livros, o medicamento milagroso, a febre que passou rapidamente.

- São bruxos. - Ela concluiu.

Kohan concordou com a cabeça.

- Não todos nós. A tataravó de meus irmãos por parte de Tron foi bruxa. Ela tinha uma sabedoria fora do normal, aquela mulher. Entretanto, foi morta por seu povo logo depois de dar a luz à sua filha.

"O dom pulou gerações até chegar a Tron. Ele manifestou muito do que sua bisavó tinha, mas aprendera desde cedo a esconder tudo. Não era o mais forte ou o mais sábio, nem mesmo muito capaz de praticar feitiçaria, mas... Viu como ele tem instintos fortes, não viu?"

- Isso explica bastante. - Azura concordou, ainda processando tais fatos.

- E então... Ginevra. Tron disse que assim que ela nasceu ele soube que sua filha seria forte. Tão forte quanto seus ancestrais. E isso o apavorou. Sabe a recompensa pela cabeça de um bruxo?

- Imagino que apenas pouco menos que a delação de um segundo filho.

- Exato. E agora entende nossa preocupação, Azura de Petrichor?

Azura arriscou olhá-lo de soslaio.

- Nunca falarei nada a ninguém sobre sua família, Kohan.

- E por que acreditaríamos?

- Porque tenho um débito com vocês. Além disso, não preciso de riquezas sujas. Vi o que o dinheiro é capaz de fazer. - Sua mente voltou para Durän. Ainda tentava entender como o amigo pôde fazer aquilo por algo tão pobre quanto dinheiro.

- Isso não é suficiente. - Kohan murmurou.

- E vai fazer o que agora, Kohan? Me contou tudo isso pra me matar? - Dessa vez, Azura falou seriamente. - Porque se for, tente agora e juro que se arrependerá.

- Foi uma ameaça?

- Foi um aviso.

Kohan parou de caminhar. Viu a sacola de mariscos cheia nas mãos de Azura, mais do que a que ele enchera.

Já estavam longe da casa da família.

O homem recompôs-se. Seria mentira dizer que não pensou em se livrar de Azura pelo bem dos que amava, mesmo que jamais verbalizasse tal pensamento insalubre.

Entretanto, ele jamais o faria. Não sem um bom motivo, e uma provocação não era um bom motivo para findar-lhe a vida. Aliás, a confiança de Azura o intimidava, era fato.

- Estendo-lhe o pedido de minha mãe. Fique conosco.

- Não quero incomodá-los. Já há bocas demais para alimentar na sua mesa.

- E teremos mais uma. - Kohan a encarou, fazendo Azura parar de andar. - Pelo menos por hoje.

Azura perdeu-se nos olhos castanhos daquele homem. Eram indecifráveis, até mesmo para ela, boa em sentir as auras. Ele era bom, mas bruto. Bondoso, mas mau. Vingativo e compreensivo. Os polos díspares que rondavam seu universo particular chegavam a ser bonitos de tão intrigantes.

Por fim, Azura sentiu que não queria ficar sozinha. Algo em Kohan a fazia sentir-se menos morta, para não dizer mais viva.

- Eu fico. Por uma noite.

(ilustração autoral - praia de Arande)

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