11. Convidados
O rei deixou o salão onde os bajuladores festejavam o nascimento de seu filho para sentar-se só em seu trono, fitando a imensidão do salão comunal vazio.
A chuva saudou-o fortemente com as pancadas nas janelas e clarabóias enquanto Sohlon impacientemente batia seus pés no chão de mármore branco.
Kaha embrulhou-se no peito quente do pai e sonhou um sonho tranquilo de quem não tinha nada a afligir a breve vida.
O rei beijou a testa de sua criança e apurou os ouvidos.
Os elegantes sons dos sapatos de sua rainha no piso frio o alertaram de sua presença.
- O que faz aqui, Odile? - Sohlon perguntou à sua amada.
A rainha aproximou-se com toda sua magnitude. Sua postura não relaxava em momento algum, mesmo para dirigir-se ao homem com quem partilhava a cama.
- Vim ver quem tirou meu marido e meu filho de nossa própria festa. - Ela sentou-se no trono ao seu lado, destinado à ela.
- Tratarei de assuntos delicados agora.
- Pois bem, que tratemos juntos então.
Sohlon respirou profundamente.
- Não será agradável, minha rainha...
- E desde quando são? - Odile virou o rosto para encarar seu esposo. - Pare de tomar as decisões sem mim, meu rei. Este reino é tão meu quanto seu.
Sohlon tomou-lhe a mão, beijando delicadamente seus dedos finos.
- Tem a liberdade de estar ao meu lado sempre que desejar, Odile.
A rainha sorriu, vitoriosa.
- Assim seja, então.
Kaha acordou nos braços do pai, como se previsse a chegada de seu convidado.
As portas do comunal salão do trono se abriram e a guarda apareceu à frente das majestades, do outro lado do recinto.
Os soldados escoltavam uma figura que não remeteu nada à rainha Odile, mas que fez Sohlon querer levantar-se de ansiedade.
Odile semicerrou os olhos quando a guarda aproximou-se com o homem. Seu capuz encharcado com cheiro de chuva cobria-lhe o rosto.
Roto seguiu em frente. O marechal estava impassível.
Quando a guarda chegou aos pés dos degraus que levavam aos tronos, a guarda dispersou-se, metade para cada lado, deixando apenas Roto com a figura encapuzada.
Odile não o conhecia. Não pessoalmente. Entretanto, seus instintos lhe davam certeza de quem era.
O Oráculo tirou o capuz e sorriu.
As histórias contadas ao longo do tempo traziam-no como diferentes personificações.
Alguns diziam que ele era uma entidade sem carne e osso que flutuava sobre as areias do deserto de Maloo, perdido em algum lugar entre as ilhas de Castilho. Outras, que era mais alto e forte que os gigantes que um dia habitaram o Vale de Awa. Ouvia-se até dizer que seu corpo era de um leão branco com a cabeça de uma coruja e olhos atrás da cabeça.
Mas não. O Oráculo não passava de um velho. Seus cabelos brancos e desgrenhados eram compridos e mal cuidados, assim como sua barba que chegava a roçar em seu peito. A única distinção de qualquer ser humano comum seria seus olhos, mais brancos que seus cabelos velhos. O corpo era magro, como se tivesse perdido toda a massa magra que um dia conseguira na vida.
Odile riu.
- Esse mendigo é o homem que tirou-lhe o sono por tanto tempo, meu rei?
O Oráculo mostrou-se impassível, assim como Sohlon.
O rei apoiou o rosto em uma das mãos e coçou a barba, sinal claro de sua inquietação. Seu filho murmurou em seu colo, despertando a curiosidade do velho.
- Há quanto tempo, meu rei. - As palavras do velho ecoaram pelo salão. - Fiquei surpreso quando mandou que me buscassem. Mais ainda quando descobri que vir ou não, não era uma opção minha.
Seus dentes amarelados sorriram cinicamente.
- Precisava vê-lo. - Sohlon endireitou-se no trono. - E precisava que visse.
Sohlon ajeitou a criança nos braços, agora com os olhos abertos de quem queria conhecer o mundo. O velho analisou o bebê.
- Este é Kaha, o Forte, herdeiro de tudo o que o sol toca, príncipe do Vale de Awa, primogênito real e o homem que dará continuidade a essa dinastia. - O rei fez com que suas palavras saíssem certeiras, mesmo que temesse, em segredo, o que aquela criatura em seu salão pudesse dizer.
O sorriso do Oráculo limitou-se a um delinear de lábios. Seus olhos brancos brilharam.
- E queria que eu viesse até aqui apenas para ver seu filho, meu rei? - O Oráculo ousou desafiá-lo. - Se esquece de quem eu sou, meu bom homem. Eu soube assim que esta criança foi concebida. Soube assim que ela nasceu. Têm energias fortes.
- O que quer dizer? - A rainha vociferou pela primeira vez. - Quer dizer que ele se sentará no trono, seu por direito?
O Oráculo podia ser mais que um humano. Um homem sábio e que dotava de sabedoria extrema sobre o Universo, mas seu coração guardava repúdio pelo homem à sua frente, a quem um dia tentara ajudar.
- O futuro muda, não é? - O Oráculo inclinou a cabeça, olhando em direção à rainha como se seus olhos brancos pudessem ver sua alma. Em seguida, voltou-se para Sohlon. - Quando primeiro apareceu às minhas portas, vinte anos atrás, eu vi um homem com coração puro e intenções boas. Juro que vi. Mas o que você fez, rei Sohlon... Nem o mais piedoso Deus o perdoaria.
- Os Deuses nos amam, pobre alma. - Odile respondeu, sentindo vontade de levantar-se e rumar em direção ao velho. - É por isso que estamos aqui hoje, o olhando de cima.
Sohlon tocou a mão da esposa, que engoliu as próximas palavras.
O Oráculo continuou.
- Ó, não, minha cara... Vocês são assassinos.
- Somos sobreviventes! - Sohlon gritou, fazendo Kaha chorar.
- O medo e o pavor que derramaram por todo esse reino junto com o sangue de inocentes... Não são sobreviventes, meu rei. Não são nem mesmo os carrascos. Suas mãos estão tão limpas e tão sujas...
Odile levantou-se. Sohlon tentou segurar-lhe a mão, mas ela o impediu.
- Roto, - a rainha o chamou. - tire sua guarda daqui.
Roto inclinou-se em um reverência. Seus soldados deixaram o recinto sem hesitação, deixando rei e rainha e marechal com o Oráculo em um salão imensamente grande.
Odile fez seus passos serem ouvidos quando desceu as escadas em direção ao velho. A rainha parou em frente à ele, encarando seus olhos brancos imersivos.
- Como sua majestade, a rainha, ordeno que me diga: - Odile falou baixo, mas sua voz ecoou por todo o salão. - meu filho, Kaha, o Forte, se sentará no trono e dará continuidade à nossa dinastia? Ou suas desgraçadas palavras ainda assombrarão minha família?
O sorriso do Oráculo não desmanchou-se, o que deixou os olhos da rainha flamejantes de fúria.
Os olhos do velho mudaram. Dos cantos, uma cor preta tingiu gradativamente os globos oculares daquele homem.
Odile não recuou quando o timbre da voz daquele homem saiu duas vezes mais intenso, como se não mais fosse a de um humano.
- O futuro é incerto, todos sabem, minha rainha. Vocês tentaram mudá-lo, mas sempre estiveram tão errados quanto às minhas palavras.
"Estão tão imersos em suas luxúrias que não movem um dedo para salvar seu povo da miséria e das doenças que assolam o Vale".
"O genocídio que derramaram sobre suas terras deixou os espíritos furiosos. Não consigo ver o futuro que recai sobre Vossas Majestades. Entretanto, consigo ver com clareza este mesmo trono em que seu marido está sentado arder em chamas, ateadas pelas almas das pobres crianças que se perderam por suas ordens".
"Eu ficaria esperto, minha rainha, já que o futuro pode ser tanto daqui há anos, quando seu filho ocupar o lugar de seu pai, quanto amanhã, ou mesmo hoje, logo depois de você findar minha vida com essa faca que empunha em mãos, atrás do corpo".
Odile enfureceu-se. Seus olhos verdes esmeraldas transformaram-se em puro ódio. Nada do que aquele homem dissesse seria bem ouvido pela rainha, que já estava pronta para defender seu posto.
O rei não se opôs quando sua esposa roubou a faca de Roto discretamente, nem quando ela ousou enfiá-la nas tripas do Oráculo, que nem mesmo piscou, aceitando seu destino.
Seu sorriso não desfez-se. Nada mais tirariam dele além da vida.
O homem sangrou um sangue dourado pelos dedos de Odile, que empunhavam o punhal com afinco.
Antes de cair ao chão, seus fios de cabelo viraram pó, efeito que gradativamente espalhou-se por todo seu corpo.
Das areias do Deserto de Maloo o Oráculo nasceu, às areias ele retornou como cinzas que voaram pelas janelas do salão.
Odile soltou a faca suja do sangue dourado e, furiosa, olhou para o marido, que balançava agitadamente um dos pés enquanto coçava ansiosamente a costeleta. Seu filho chorava.
- O que fizemos de errado? - Ela perguntou, tremendo. - Quero meu filho seguindo nosso legado, Sohlon.
- Ele seguirá. - O rei se levantou, olhando para Kaha. Engoliu em seco, tão furioso quanto a esposa. - Não importa o que mais tenhamos que fazer, minha rainha. Ele seguirá.
- Ela está ardendo em febre. - Viorica colocou as costas da mão na testa da garota desacordada.
Com o corpo tremendo da cabeça aos pés, a convidada inesperada se encontrava em um estreito colchão de molas estouradas no chão do minúsculo quarto de Ginevra. O corpo nu fora coberto por dois cobertores de malha fina e simplória, mas quentes o suficiente.
- Isso é bom. - Ginevra entrou no quarto com o preparado de folhas de alírias fervidas e própolis. - Quer dizer que o corpo dela está lutando.
Ginevra e Viorica se davam bem, apesar de não serem grandes amigas. Conheceram-se ainda na pobre escola da vila há meia década. Entretanto, só quando Viorica começara a namorar o irmão de Gine, há dois anos, trocaram as primeiras palavras uma com a outra.
Ginevra tinha a pele negra em contraste com os cabelos loiros tingidos crespos e rentes à cabeça. Era de inegável beleza, como se fosse abençoada pela própria Deus Aurora.
A garota sentou-se ao lado do corpo da desacordada. Com as pontas dos delicados dedos tirou os cabelos suados da convidada de seu rosto, deixando sua testa exposta.
- Posso ajudar? - Viorica se levantou, cruzando os braços e dando espaço.
- Na verdade, não pode. - Gine colocou os pedaços das folhas de alírias quentes na testa da garota morena, que nem ao menos mexeu-se. - Não há o que fazer. Vamos esperar que ela acorde.
Batidas na porta foram ouvidas atrás das duas. Alaric entrou segundos depois.
- Vio? - Ele chamou pela namorada, com a feição de abalo inegável. - Posso falar com você?
Viorica retirou-se do quarto e fechou a porta atrás de si, juntando-se ao namorado e deixando Gine cuidar da garota.
Alaric estava suado, cheirando à praia e água salgada.
- O que foi? - Vio perguntou, caçando a atenção de seus olhos, que vagavam pelo corredor atrás dela.
Alaric colocou as mãos na cintura da namorada, puxando-a delicadamente para mais perto.
- O que está fazendo aqui, Vio? Sua mãe vai te matar. Deveria ter voltado com pães para casa há pelos menos uma hora.
- Eu me entendo com minha mãe. Mas não me peça para deixá-los agora com essa bomba, Ric.
- Não quero te meter nessa merda...
- Ric, já estou metida nisso. - Vio cruzou os braços. Viu no âmago dos olhos de seu namorado que a situação com a família não andava bem. - Caíram matando em cima de você?
Alaric bufou, soltando um riso debochado.
- Sempre.
- Apenas por que quis salvar a vida de uma garota que achou à beira da morte nas areias da praia?
- Porque eu a trouxe aqui para dentro.
- Seus segredos estão seguros, Alaric.
- Minha família não pensa assim, Viorica. - Alaric inspirou profundamente.- Eles já estão encanados comigo porque introduzi você em nossas vidas.
- E eu sou eternamente grata pela confiança. Seus segredos estão seguros comigo também, Ric. Nunca falhou em quem confiou.
- Veremos.
Gine saiu do quarto ofegante, assustada ao vê-los prostrados bem ali.
A garota olhou de um para outro com alívio por não estar sozinha.
- Ela acordou.
Azura abriu os olhos cinzentos vagarosamente. A luz que adentrava pelas frestas da janela ao seu lado incomodaram-lhe a visão. Quando conseguiram acostumar-se à claridade, vagaram pelo local à procura de respostas.
Viu-se em um minúsculo cubículo, com o chão de cimento e o teto de tijolos aparentes caindo aos pedaços.
Sentiu a pele nua em contato com os lençóis e cobertores. Tentou mexer os dedos das mãos, mas sentiu uma dor absurda percorrer-lhe o corpo, dos pés à cabeça.
Estava suada.
Com esforço, Azura levantou-se, puxando para si os cobertores e tapando suas vergonhas.
Seu corpo acordou, trazendo à tona a realidade da noite passada. Todas as lembranças atingiram-na como flechas atravessando seu âmago - viu o corpo de seu pai a despedir-se. Viu o pai de Ava-Lee chorando sobre seu pequeno corpo sem vida. Viu a cabeça de Marin rolar. Ouviu os gritos de Vera. Viu o soldado entregar-se ao penhasco com Arin nos braços. Viu Shiro, seu fiel amigo, morrer por ela. Viu Durän, incrivelmente a lembrança que mais lhe doeu, traindo-a.
Um soluço iminente escapou de seu imo.
Seu corpo febril não lhe incomodou mais, nem mesmo os machucados que ardiam em sua pele, cuja origem ela deduziu ser das areias da praia.
Azura cobriu a boca com as duas mãos, tentando conter o desespero ao perceber que perdera tudo. Suas lágrimas escorriam dos olhos como cascatas incontroláveis.
Seu peito doía. Uma dor emocional e física agitava-a de modo que Azura nunca conseguiria descrever.
O luto.
A dor.
A última lembrança que veio à sua mente foi Petrichor sendo consumida pelas chamas que tocavam os céus, antes da porta do quarto se abrir.
Após apresentar-se como Ginevra, a garota negra cedeu à convidada peças de seu guarda-roupa que achou que cairiam-lhe bem.
Deu privacidade à convidada que ainda não se nomeara e tentou entender o desespero que ela exprimia por seus soluços. A curiosidade bateu-lhe forte.
Azura banhou-se com a água gelada do banheiro em frente ao quarto de Ginevra. Seu corpo repeliu o líquido gélido, mas que fora bom para tirar o suor e as impurezas do mar do corpo.
Tentou não pensar em nada enquanto banhava-se rapidamente. Tinha muitas perguntas sem respostas misturadas à dores físicas e emocionais.
Seus suspiros ainda doíam em seu peito e seus olhos inchados teimavam em fechar-se. Estava cansada. Seu corpo pedia por repouso, diferente de sua mente agitada.
Azura secou-se com a toalha a ela designada e vestiu as roupas de Ginevra - uma calça quente de cor preta e uma blusa solta verde musgo, além de meias quentes e um par de botas pretas de cano baixo que assemelhavam-se muito às que ela tinha em Petrichor.
Arriscou olhar no espelho quebrado do banheiro escuro e mofado. Azura sentiu a dor do próprio reflexo. Seus cabelos negros molhados e escorridos ensopavam a veste verde. Viu o rosto com ferimentos superficiais da areia e os olhos vermelhos inchados.
Estremeceu, não sabendo decifrar se de febre, medo ou fúria.
Antes de pensar no luto exacerbado que a rasgava de dentro para fora, Azura queria respostas.
Ela ouviu o som de vozes vindas do lado de fora do banheiro. Sem mais delongas, resolveu segui-las.
- O que essa garota faz aqui? - Honda perguntou quando Viorica adentrou a sala onde a família inteira reunia-se.
Alaric cerrou os punhos com o ódio que sentia pelo desgosto da mãe com a mulher que ele amava, mas sentiu os delicados dedos de Viorica entrelaçarem-se nos seus discretamente, como se dissessem: "não se preocupe com isso".
Viorica preferiu não responder. Mesmo não se sentindo bem-vinda, queria estar ali.
Ela passou os olhos pela sala. Honda e Tron, os pais daquela família, estavam sentados lado a lado no sofá ocre encardido.
Ginevra tamborilava os dedos na janela, onde prostrava-se em pé, impaciente.
Kohan puxara uma cadeira da cozinha para juntar-se à eles. O mais velho dos filhos de Tron e Honda, mesmo que não de sangue, era o favorito. Eles nunca o verbalizaram, é claro, mas tinham grande carinho pelo homem moreno de barba cheia. Kohan era forte. Sempre fora. Ajudou na casa desde sempre, quando a situação em que a família se encontrava era mais decadente que a atual.
Azriel sentou-se nas almofadas empoeiradas no canto da sala. O mais novo da família - exceto por Tuco, que passava os dias esporadicamente com os tios e brincando com a vizinha, Bedí - já era maior de idade. Azriel era irmão de sangue de Kohan. Sua pele, entretanto, era mais clara e seu porte físico bem mais magro, apesar de ser poucos anos mais novo. Não pareciam irmãos. Os olhos de Azriel eram verdes como o mar de Arande em seus dias mais esplendorosos.
- Deixe-a, Honda. - Tron ignorou a presença de Viorica. - Se fosse uma ameaça, já saberíamos.
Honda olhou pelo canto dos olhos para a nora, que manteve-se firme ao lado de Alaric. Não deixaria que a mulher passasse por cima dela.
- Não é com Viorica que deveríamos estar preocupados. - Kohan balançou a cabeça, coçando a barba rala. - Temos uma completa estranha usando da pouca água que temos para se banhar em nossa casa.
- E que vai comer da nossa pouca comida daqui a pouco. - Azriel adicionou.
- É com isso que estão encanados? Sério? - Ginevra roeu as unhas. - Não sabemos se essa garota é confiável. Ela pode muito bem contar tudo o que sabe sobre nós à primeira autoridade que passar pela rua.
- Ela não sabe nada sobre nós. - Alaric acrescentou.
- Mas irá saber. - Ginevra completou seu pensamento.
- Não se ela for embora agora. - Tron, o pai da família, murmurou com os olhos distantes.
- Não podemos só largar a menina, pai. - Azriel balançou as pernas, impaciente. - Ela claramente não é de Arande. Viu as tatuagens dela?
- É, e as roupas. - Kohan observou.
- Por que não poderíamos mandá-la embora? Já salvamos a vida dela, está em débito conosco. - A mãe indagou.
- Ela está ferida, mãe. Vai além da febre e dos ferimentos no corpo. - Ginevra balanço a cabeça, pensativa. - Quando eu entrei no quarto, ela estava desesperada, aos prantos, morrendo de medo...
- Ela disse algo? - Viorica perguntou timidamente, introduzindo-se na conversa.
- Não. Nem um nome, nem nada. Estava apavorada. - Gine deu de ombros. - Tenho o pressentimento de que algo horrível aconteceu.
- Por que não perguntam à ela? - Tron cruzou os braços. - Não vejo porquê não, já que ela ouve nossa conversa em silêncio nesse exato momento.
Azura arregalou os olhos ao ver-se descoberta. Não produzira som algum e superfície alguma refletia seu reflexo. Como aquele homem descobrira que ela estava ali, ao lado do batente da porta da sala, ouvindo tudo?
O silêncio fez-se presente.
Ela respirou fundo antes de aparecer no recinto. Seus olhos piscaram impacientemente ao ver-se sendo analisada pelos presentes com um misto de repúdio e intriga, curiosidade e medo.
Apenas Azriel, o garoto pálido com olhos verdes, se levantara ao vê-la chegar.
- Sente-se aqui. - Ele ofereceu, colocando-se de pé ao lado da irmã.
- Não será necessário. - Azura cruzou os braços.
Alaric viu o desconforto da garota cuja vida salvara e aproximou-se dela, falando baixo em seu ouvido, procurando confortá-la.
- Sente-se, por favor. Vou lhe trazer um copo d'água. Deve estar tão confusa quanto nós.
Azura sentiu a boa energia que aquele homem emanava, sentindo-se estranhamente familiarizada com sua presença. Ela concordou com a cabeça, esboçando um quase indecifrável sorriso com os lábios e desengonçadamente sentou-se nas almofadas no chão, ainda quentes pelo corpo do garoto que cedera-lhe espaço.
- Como se sente? - Viorica perguntou.
Azura abriu a boca para responder, mas não encontrou as palavras. Sentiu que a febre ia embora e perguntou-se o que a garota que lhe emprestara as roupas, Ginevra, colocara em sua testa. Entretanto, não conseguia dizer que estava bem.
- Melhor. Viva. - Azura debochou com um sorriso de lado para a garota que fora simpática, ignorando os olhares penetrantes dos outros presentes.
- Isso é bom, então. - Kohan, o moreno forte e alto com a barba por fazer, pronunciou-se. Sua voz era calma, mas sua postura e expressão não condiziam com tal. - Quer dizer que pode responder algumas perguntas.
- Se puderem responder as minhas também.
- O que a faz achar que está no direito de fazer perguntas? - Kohan a encarou, mas Azura aprendera a não recuar.
- Não estou?
- É claro que está. - Ginevra interrompeu Kohan antes que ele respondesse.
Azura olhou para a garota negra. Seus belos olhos negros como preciosas ônix eram ao mesmo tempo intimidadores e amigáveis.
- Vejo que minhas roupas lhe serviram bem. - Gine comentou, com um sorriso tímido.
- Perfeitamente, obrigada. - Azura agradeceu, passando as mãos pela blusa verde com tecido delicado. Não se importou nem um pouco com os rasgos que começavam a se formar embaixo das axilas.
- Responderemos suas perguntas, garota. - Tron tomou a iniciativa. - Se primeiro responder às nossas.
Azura encarou o homem que parecia ter um bom coração, apenas sendo superprotetor com os que amava.
Com um aceno de cabeça, a convidada concordou.
- Meu nome é Azura. Sou nascida de Petrichor. Vivi lá por toda a minha vida. Onde estou?
- Arande. - Alaric respondeu, retornando com o copo de água.
Azura olhou para o copo de barro, puxando na memória o que conhecia sobre Arande. Pouco lhe veio à memória. Recordava-se com clareza que localizava-se do outro lado do Rio Ma'h, que desembocava no Oceano Platina e cruzava-o até as praias de areia escura de Arande.
- Petrichor? - Honda perguntou, dando um sorriso irônico. - Deve estar cagando riquezas.
- Julga minhas terras antes de conhecê-las, senhora. - Azura tentou soar respeitosamente, escondendo o desgosto ao ouvir as palavras. - Petrichor não é rica em dinheiro, é rica em natureza. As praias de lá tem a areia mais macia de todo o Vale de Awa e as mais belas pinturas do Sol e da Lua ao refletirem no Rio Ma'h. Somos abençoados por Sonca e Marama, Deuses do Sol e da Lua. Por TeAo, o Deus da terra fértil, protegidos pelo próprio Deus da proteção, Puipuiga, e, tenho certeza que GaO, o Deus das riquezas mais miseráveis, não achou necessário olhar por nós. Então, minha senhora, podemos até estar "cagando riquezas", mas não as que lhe convém deste lado do Rio. Depende do seu ponto de vista.
Viorica segurou uma risada ao ver o queixo de Honda cair.
- Pois bem, Azura de Petrichor. - Kohan tomou a frente no interrogatório. - Como veio parar desacordada nas praias de Arande?
O semblante de Azura entristeceu-se. Ela procurou pelas palavras mais eufêmicas, querendo esquecer dos detalhes que a trouxeram à sala da casa dos arandianos.
- Foi um massacre. - Ela começou por aí. - Os soldados de Crisântemo interromperam nossas celebrações e tomaram à força a criança de minha amiga. Um recém nascido inocente que de nada tinha culpa. Eu revidei.
Suas palavras saíram arranhando pela garganta. Não conseguia tirar a imagem de Durän de sua cabeça. Não conseguia parar de pensar que toda Petrichor mergulhara em chamas por sua culpa.
- Não sei se restou algo ou alguém. Subi na primeira jangada que encontrei e a tempestade me tomou. Acho que conhecem o resto da história.
Não era o que se esperava. A sala inteira mergulhou-se novamente no silêncio ao ouvir as palavras da garota em sua sala.
- Passou por muito, Azura de Petrichor. - Tron, com seus olhos pesados, procurou por palavras que conviessem no momento.
A dona dos olhos cinzentos não soube respondeu. Acreditou ser sua vez de fazer as perguntas.
- Tinha algo comigo? Quando me encontraram na praia?
Todos os olhares voltaram-se para Alaric e Viorica automaticamente.
- Tinha uma mochila, mas... Estava aberta. - Viorica respondeu. - Não sei o que pode ter sido perdido. Lavei o que encontrei.
- O que tinha? - Azura perguntou, esperançosa.
Viorica vasculhou sua memória.
- Uma troca de roupas, não mais que isso. Suas vestes do corpo estão secando no varal também. Ah, e um xale vermelho estava bem amarrado ao seu pescoço e tronco.
Azura suspirou.
- Apenas isso?
- Bom, eu tirei isso de você por motivos óbvios. - Alaric tirou da cintura um bonito punhal, o qual fez os olhos da garota brilharem.
Ela se levantou de um salto, rumando em direção à Alaric. Ele pensou em recuar o punhal, mas não conseguiu decepcionar aqueles olhos esperançosos.
Azura sorriu ao tomar o punhal nos dedos, como se a arma a pertencesse desde sempre. A herança de família ainda estava sob sua posse, a lembrando de suas origens.
De repente, um grande vazio tomou conta de seu peito. Ela olhou dentro dos olhos escuros de Alaric ao perguntar:
- Não havia uma caixa preta? - Sua voz falhou ao se lembrar do segredo escondido embaixo da cama do pai. - Na mochila...
Alaric procurou pelos olhos de Viorica, que negou tristemente com a cabeça.
- Sinto muito, garota.
As lágrimas ameaçaram voltar aos olhos de Azura. A ideia de que nunca saberia do conteúdo daquela pequena caixa, a qual seu pai dedicara suas últimas palavras, a assombrou.
- Isso lhe pertence também. - Ginevra tirou do bolso um pequeno saco de tom vinho com badulaques que fizeram barulho ao toque.
Azura atravessou a sala em direção à ela. Ginevra o colocou em suas mãos.
A dona dos pertences abriu o pequeno saco, analisando seu conteúdo - brincos e jóias banhados a ouro brilhavam ali dentro.
Com as pontas dos dedos, Azura vasculhou o conteúdo que pouco lhe importava, encontrando em meio à ele o que procurava. Ela tirou a chave que seu pai lhe entregara em seu último suspiro de vida. Ainda estava com o cordão amarrado nela.
A garota rapidamente colocou em volta do pescoço, como se pudesse acabar perdendo-o repentinamente.
As outras jóias pouco a importavam. Ela fechou o pequeno saco vinho e fez questão de estendê-lo aos pais da família.
Honda a olhou surpresa, pegando o conteúdo em mãos e analisando-o.
- Salvaram minha vida. - Azura justificou-se. - Não sei como retribuir. Não é muito, mas talvez ajude a pagar as despesas, principalmente as que dei.
Ninguém encontrou palavras às suas. Ela prosseguiu, virando-se para Ginevra.
- Poderia me ceder suas roupas? Vou retirar meus pertences que lavaram com gentileza e retirar-me. Não me importo com seus segredos e não quero deixá-los apreensivos.
- Tem para onde ir? - Azriel perguntou, apoiado no batente da janela.
- Vou arrumar. - Ela forçou um sorriso ao garoto.
- O que pretende fazer sem um tostão no bolso? Além do mais, não está em estado emocional para isso. - Ginevra mostrou-se preocupada.
- Eu vou me virar. - Azura apertou o punhal que guardara na altura da cintura e a chave que lhe dava esperanças de prosseguir. - Não se preocupem comigo. Espero um dia pagar a dívida que tenho com vocês.
Como costume de Petrichor, Azura reverenciou aquela família, retirando-se do recinto. Não queria vitimizar-se. Sua decisão já estava tomada.
A casa não era grande. Ela soube para onde seguir.
Estava na cozinha quando Honda a alcançou.
- Espere, menina. - Ela a parou.
Azura olhou para a mulher, aparentemente cansada da situação.
- Não conhece Arande. Não vai durar um dia aí sozinha. - Honda preocupou-se.
- Com todo o respeito, senhora, mas também não me conhece. - Azura sorriu tristemente. - Sei me virar.
- Fique.
Azura ergueu as sobrancelhas, surpresa.
- Não posso pedir-lhes mais.
- Não está pedindo nada. Eu estou pedindo. Fique por esta uma noite, pelo menos.
Kohan apareceu atrás dela. O homem era muito mais alto que a mãe de criação. Colocou uma das mãos no ombro da mulher, como se insinuasse que tomaria conta de tudo.
Honda trocou olhares com Azura uma última vez antes de retornar à sala, deixando Kohan e Azura sozinhos. O homem não amolecera sua feição como a mãe.
- Sei como pode pagar sua dívida.
- Como seria? - Azura cruzou os braços.
- Me acompanhe hoje. - Kohan adentrou a cozinha e pegou dois baldes, guardados embaixo da pia. - Mais mão de obra vai ser bem-vinda.
- E para que precisam de mão de obra?
Kohan abriu a porta da cozinha, deixando a luz do sol entrar. Com um aceno de cabeça, convidou Azura a segui-lo.
- Verá.
(Ilustração autoral- Kohan)
(Inspirado no ator Cauã Reymond)
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