106. Questão De Tempo
A arandiana subiu as escadas de ferro geladas e adentrou a escuridão. O breu era tanto que a luz não vinha de cima ou de baixo e nem ao menos as próprias mãos conseguia enxergar, guiando-se pela memória motora e alcançando um degrau de ferro após o outro com as mãos e pés sincronizados. Não tremiam, como achou que fariam. Viorica não sentiu medo algum.
A primeira menção de que estava chegando foi a balbúrdia que chegou aos pés do ouvido, iniciando como um murmúrio distante e aumentando conforme aproximava-se, os braços e pernas começando a fraquejar ao subir a escada infindável. De repente, a luz vermelha do céu de Pouri alcançou suas mãos. Ela parou por um segundo, assustada, mas retomou a postura e continuou.
Viorica foi a primeira a chegar ao templo. Colocou os olhos atentos para por de cima da plataforma onde findava a escada e observou ao redor. O templo era majestoso, bem maior do que ela esperava. Bem maior que o de Arande, onde costumava rezar quando a vida cobrava. Estava vazio. A luz vermelha que o Deus das Trevas projetara no céu invadia os vitrais e desenhava sombras macabras nas paredes e piso. Ela puxou-se para fora.
Um a um, os sobreviventes saíram de dentro do quadrado no piso, no canto ao lado direito do altar aos Deuses. Assim que Dante passou, por último, o quadrado fechou-se, levando embora qualquer resquício dos túneis e da magia que escapou por entre seus dedos. Ginevra fuzilou a rainha, que soube de imediato o que a bruxa pensava. Não lhe tirava a razão. Não tinha como compensá-la pelo mal que fez aos seus iguais, por mais que prometesse tentar. Uma conversa para se ter outra hora.
Esconderam-se nas sombras aos sons da movimentação do lado de fora. Os soldados e serventes estavam esbaforidos, correndo de um lado para o outro. A chuva ainda não dera trégua alguma.
Pela luz que invadia o ambiente, conseguiram entreolhar-se.
As palavras de Kohan ainda corriam pela cabeça de todos. É uma missão suicida.
- O que estamos esperando? - Alaric murmurou. Alcançou a mão de Viorica na escuridão, tímida e automaticamente. - Vamos abrir os portões.
- Não pode ser tão simples, Ric - a mulher achegou-se nele.
- Não precisa ser tão difícil - a rainha cochichava. Voltou-se para Ginevra. - Consegue nos ajudar?
Ginevra quis gritar com o ódio que sentia. Hipócrita!, quis xingá-la, mas segurou-se. Agora minha feitiçaria é útil pra você.
- Do que precisa? - sentindo-se fraca, engoliu as injúrias e indagou.
- Preciso que seja nossos olhos.
À princípio, a bruxa não entendeu, mas acabou por ler nas entrelinhas. Concordou com a cabeça.
- Posso fazer isso.
- Tem algum plano? - Dante questionou, querendo ajudar.
- Sim - a bruxa mordeu o lábio -, e vou precisar de vocês.
Arande era uma terra pobre. Alguns diriam que era paupérrima. Quando a temporada das chuvas chegava, avassaladora, os rios subiam, o mar invadia as casas, o comércio, e o lamaçal abrasava as famílias por meses. Além da lama, a chuva deixava o lixo disperso pelas ruas e Arande era um esgoto a céu aberto. Foi por levar essa vida desde a infância que Alaric agarrou um rato com as próprias mãos sem problemas. Teve que expulsar muitos de sua casa, mas acabavam se acostumando com os invasores quando obrigados a se ilhar sobre as cadeiras nos dias em que a água invadia o quarto.
Encontrou o roedor correndo debaixo do altar na catedral, fugindo como se tão desesperado com a guerra quanto eles. O animal debateu-se em suas mãos e despertou nojo nos outros.
- Por que um rato, Gine? - Dante, de braços cruzados e estático, procurou entender. Só conseguia imaginar quantas doenças Alaric corria o risco de contrair só por segurar aquilo.
A bruxa andava de um lado para o outro, impaciente e focada nos próprios pensamentos. Parecia perturbada com a própria voz em sua cabeça.
- Bichinho asqueroso - Viorica, afastando-se do marido, amarrou a carranca.
Ginevra roeu as unhas - um hábito antigo que retornava junto com tantos transtornos compulsivos que deixara para trás - coincidentemente como um roedor, ansiosa.
- Eu vou guiar vocês - finalmente falou, mas suas palavras não lhes disseram nada.
- Como, Gine? - Viorica conversou com ela como quem conversa com uma criança, o que deixou Ginevra frustrada. Seu tom de voz denotava descrença e precisava que acreditassem que ela podia, já que ela mesma desdenhava de si em seu âmago.
- Eu lembro... vagamente - a bruxa arrancou uma das pontas das unhas, deixando que um pouco de sangue escorresse dali, o que não lhe incomodou. Estava colérica porque não tinha em mãos o livro da avó. Precisava contar com a própria memória para desvendar um feitiço que nunca usou e apenas leu por cima - de uma passagem do livro da minha avó.
Eles esperaram que ela prosseguisse. Ginevra aproximou-se de Alaric, estático com o animal nas mãos, que debatia-se como se sentenciado à morte. Não sabiam o que Ginevra queria. Talvez o roedor estivesse certo.
- Nossas consciências estão todas interligadas em um plano etéreo - andou de um lado para o outro enquanto falava, mais para lembrar a si mesma do que para convencer aos outros. - Nossas almas, nossas auras... Todas ganham um corpo chegando aqui. E é só isso, um corpo, uma carcaça quente que abriga uma alma e...
Os outros entreolharam-se às suas palavras. Não entendiam onde a mulher queria chegar e começavam a se preocupar com o quão insanas suas sentenças soavam. Ouviram-na prosseguir, atentamente:
- Mas e se conseguíssemos trocar de corpo físico? - a bruxa finalmente parou em frente a Alaric. Tocou a cabeça do rato com a ponta do dedo indicador e, em sincronia, todos entenderam.
- Vai trocar de corpo com esse rato? - as palavras de Dante soaram incrédulas.
- Trocar, não - Ginevra continuou. - Os animais são inteligentes, mas não tanto quanto somos nós, vocês sabem. Não têm essa consciência que temos. Eu consigo entrar no corpo desse animal, mas vou sair do meu e trancá-lo.
- Trancá-lo? - Kohan indagou.
- É. Feitiçaria simples. Nada no plano de lá vai tomar meu corpo vazio. Mas eu tiro esse rato daí e tomo o lugar dele. E guio vocês na frente.
- Nos dá o caminho mais seguro - Odile compreendeu, cruzando os braços.
- Ninguém vai desconfiar de um rato asqueroso - Viorica sorriu, orgulhosa da amiga.
- Por que não troca de lugar com um de nós? - Odile indagou, para a frustração da bruxa. - Não seria mais fácil?
Ginevra respirou fundo, procurando sua calma.
- Não vou deixar ninguém no meu corpo - falou, como se desconfiasse da própria sombra. - Não é tão simples assim. Ninguém vai entrar no meu corpo porque eu não conseguiria voltar e a pessoa não volta para o dela. E almas não vagam no plano etéreo por muito tempo sem se perderem. Ou pior. Não dá pra tomar o corpo de nenhum de vocês e não ter um corpo para deixá-los seguros.
Suas últimas palavras soaram confusamente convincentes.
- Certo - Alaric concordou. - Como vai ser?
A bruxa olhou em volta, vendo que todos esperavam por suas palavras finais. Gostou do poder.
- Vamos fazer assim:
Ginevra esboçou seu plano com detalhes que os outros não entenderam, mas deixou claro o que precisavam fazer. Teve medo, mas não demonstrou. E se sua existência acabasse se resumindo a viver em um rato? E se não conseguisse voltar ao seu corpo e acabasse vagando pelo plano etéreo, nem morta nem viva, por uma eternidade à procura de um corpo vazio? Que chances teria? O risco valeria a pena para botar o plano daquela mulher em ação? Era muito maior do que a rainha, sabia, mas a cólera falava tão alto em sua cabeça. Sua saliva tinha um gosto amargo quando pensou em tudo aquilo.
Aprontaram-se. Ginevra prostrou-se em frente a Alaric e, mais especificamente, àquele rato mal-cheiroso e ensopado com a chuva que caía lá fora. Deixou seu nojo de lado e envolveu o animal com as duas mãos, mas o irmão não o soltou, sob suas ordens. A bruxa fechou os olhos. Kohan, por sua vez, colocou-se atrás dela em um gesto protetor, esperando que o que ela lhe disse para fazer se concretizasse.
Novamente o silêncio predominou naquele espaço que até então parecia tão seguro. Estavam lá dentro do palacete e aquele lugar parecia tão perto e tão distante, um misto de sensações díspares explodindo nos âmagos. Uma energia circundou a sala, quente. Foi a mesma sensação que tiveram quando a bruxa apagou todas as luzes de Crisântemo. Perceberam que sua magia era quente em contraste com aquela atmosfera álgida e quase glacial. O som que vinha de fora sumiu por um instante. Não ouviam passos ou gritos ou a chuva. Foi como se os ouvidos de todos estivessem entupidos e, distante, um zumbido surgiu. A rainha chegou a fechar os olhos e limpar os ouvidos com o incômodo.
De supetão, o frio voltou como um baque e a surdez desapareceu.
Todos se entreolharam.
- Funcionou? - Viorica murmurou. Olhavam para Ginevra.
A bruxa despencou e Kohan estava lá para amparar seu corpo vazio. Quando sentiu-a em seus braços, inerte, não conseguiu deixar de pensar que não tinha vida ali. Seus braços fraquejaram com o pensamento de que algo poderia dar errado e Ginevra nunca mais voltasse.
- Alaric - Dante chamou-o. Alaric, até então inerte, olhando de Kohan para Ginevra, olhou para o Kino. Dante olhava para o rato em suas mãos.
O arandiano fitou o animal. Este não mais se debatia. Parecia um ser inteligente, esperto. Olhava para ele. Alaric olhou do corpo de sua irmã sendo colocado no piso frio com delicadeza para o rato. Teve certeza.
- Funcionou.
A petrichoriana sentiu os pelos do corpo se eriçarem. Ela voou em frente aos dragões, em frente ao seu povo. Sem exceção, todos seguiam-na como se Azura fosse a luz no fim do túnel, a luz que finalmente enxergavam dentre tanto medo e escuridão.
Não limpou as lágrimas que ameaçavam cegá-la, dessa vez de uma emoção tão latente que machucava se não colocada para fora. De onde estava, Azura viu toda Crisântemo. Aproximava-se mais e mais do palacete e sua única aflição foi ver os portões ainda fechados.
Por pouco tempo, pensou. Onde quer que estivessem, sua família lutava para abri-los. Ela aguentaria firme com todo o Vale de Awa. Era só questão de tempo.
Olhou para baixo mais uma vez. Quem liderava os seus era Aurèlia. Em outros tempos - não tão distantes - não lhe confiaria nada. Entretanto, naquele momento, lhe confiava a própria vida e o futuro do Vale de Awa. Aurèlia por terra, ela por ar. Riu com o pensamento. Deixou os portões com a amiga. Sua missão era ali em cima.
Cercando os portões, a frota dos soldados do rei prostrava-se em posição defensiva. Os que fugiam e retornavam, tremiam como baratas tontas.
Os gritos de bravura dos seus só a empurravam para frente, o incentivo necessário.
Os músculos das pernas tremiam, abraçados ao dorso de Tohrak, mas ela já não sabia dizer se de fadiga ou emoção. Azura soltou as mãos do animal e ergueu o arco e flecha. Tohrak desviou de todas as flechadas vãs que investiram contra eles e a mulher não precisou se preocupar. Como se o majestoso dragão lesse seus pensamentos, Tohrak sobrevoou o palacete. Azura viu o desespero dos soldados lá embaixo.
Tohrak mergulhou. Azura disparou a flecha certeira no peito do homem na primeira torre em que encontrou brecha. Sem pensar nas consequências, a petrichoriana saltou de Tohrak, um vão de metros, e pousou nos telhados do lugar, rolando sobre o ombro com o impacto. Ergueu-se rapidamente. Dali conseguia ouvir com mais clareza seu povo se aproximando dos portões. Não sabia se era possível, mas podia jurar que o chão tremia com a marcha dos seus.
Tohrak graniu e voou em volta da torre.
Ela viu quando tornou-se o principal alvo dos arqueiros do rei. Abaixou-se atrás do peitoril e escondeu-se das flechadas. Trocou o arco pela adaga e a sensação de ter aquela arma em mãos fez com que ela se sentisse mais poderosa. Azura esquivou-se até a portinhola e chutou-a, ainda abaixada, até que o trinco quebrasse. Foi como adentrou o palacete e sentiu-se, pela primeira vez, tão próxima ao rei. Lembrou-se da promessa que fez a si mesma no dia seguinte ao mandato daquele homem sobre Petrichor, sobre Marin, Vera e Arin. Ela iria olhá-lo nos olhos. Iria olhar bem no fundo de suas orbes antes de matar Sohlon. Nunca se sentiu tão capaz quanto naquele momento, na casa do próprio homem que arrancou-lhe tudo. Nenhum lugar era grande o suficiente para escondê-lo agora. Ela chegara por ele.
Dante e Viorica ficaram com o corpo vazio de Ginevra estirado no piso frio da catedral. Viorica não gostou da sensação de vê-la deitada ali, sem vida, e sentou-se ao seu lado, puxando a cabeça da bruxa para seu colo. Não conseguia entender como um espírito deixava sua casa e ainda conseguia retornar. Quanto tempo o coração de Ginevra podia ficar sem bater? Quanto tempo o ar podia deixar de circular pelos pulmões? Viorica não entendia. Mesmo assim, a arandiana acariciava o rosto da amiga como se procurasse algum indício de que ela voltaria.
Dante, diferente de Viorica, não se importou que sua missão fosse ficar ali, cuidando do corpo da bruxa enquanto os outros arriscavam a pele. Não em um primeiro momento. Quando tudo pareceu tranquilo e a catedral esquecida, aquela falsa segurança trouxe-lhe o luto outra vez.
O semi bruxo repousou ao lado de Viorica e suas costas encontraram um dos degraus do altar como espaldar. Ele olhou para baixo, para o peito encharcado, tão vagarosamente que parecia temer o que veria. Estava certo. O colar que Azriel lhe deixou estava lá, pendurado como se pesasse quilos que o puxavam para baixo. Por um momento quis deitar no chão ao lado de Ginevra. Talvez até aceitasse o colo de Viorica, mas viu a dor e pena nos olhos da mulher ao perceber que compreendera o que ele pensava.
- Sinto muito, Dante - assim que murmurou as palavras, quase inaudíveis pelo som que esmurrava as portas e paredes da catedral, Viorica se arrependeu. Era melhor não ter dito nada.
Dante debulhou-se em lágrimas silenciosas e uma feição torturante. Azriel lhe prometera muito. Prometera que o levaria a tantos lugares depois que aquilo acabasse. Como pôde deixar que o mar o engolisse? Pensou nele lá, em seu corpo sozinho e flutuando no Mar de Pétalas, que logo seria devorado pelos peixes esfomeados depois de ser jogado de um lado para o outro daquela infinidade negra. Azriel era lindo. Tinha lindos olhos verdes, uma pele invejável, um corpo maravilhoso, cabelos em que Dante adorava permear os dedos. Ele não merecia aquele fim. Sentiu uma vontade inconcebível de voltar ao mar e enfrentar suas ondas ínfimas em busca do corpo do homem. Azriel o salvara e ele queria salvá-lo. Mas não foi capaz. Cada membro de seu corpo ardia em chamas dolorosas ao pensar no arandiano.
Viorica acreditou que o que sentiu era o insigne instinto maternal. Ela descansou a cabeça de Ginevra outra vez no piso frio e puxou-se para o lado de Dante, abraçando-o. Dante instintivamente tentou recuar, mas cedeu quando ela o segurou firmemente. A arandiana abraçou o maxilar do homem e o puxou para seu colo. Dante chorou como um bebê esfomeado e Viorica cedeu às suas lágrimas em silêncio. Não conseguia entender o porquê. Por mais que elas rolassem por seu rosto, parecia frieza demais não sentir a mesma dor por Azriel. Ela lembraria-se sempre dele com carinho. O cunhado que primeiro a aceitou, cujos cabelos cortou, que emocionou-se em seu casamento, que ficou para trás com ela, que a abraçou quando o medo tornou-se insuportável, que segurou sua mão entre as suas, quentes e confortáveis, quando acharam que era o fim da linha na Pedreira. Azriel já esteve pronto para morrer ao seu lado. Mas ele se foi e ela ficou. Por que não sentia a mesma dor de Dante?
Entendeu, então, que ela, a dor, ainda estava por vir. Mas se aquele pequeno ser em seu ventre tinha lhe ensinado algo em tão pouco tempo era a ser mãe. Não a mãe que ela teve, mãe de verdade, a que coloca a dor do outro em cima da dela. Se isso era bom ou não, não sabia dizer, mas para Dante parecia ser. Ele chorou tudo em seu colo, somando as lágrimas salgadas com o salgado do mar, enquanto ela apenas fechou os olhos e orou por Azriel. Por Azriel, pelo marido e pelos outros que tentavam acabar com aquilo. Azriel não morreria em vão.
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