104. Por Todos Eles
Se precisasse nomear, Azura chamaria aquele lugar de um sobrado. Eram pelo menos três casas, uma em cima da outra, ligadas como um labirinto por escadas desreguladas feitas de concreto mal aplicado. Subiram um lance das escadas, os sete, e mergulharam em uma casa com a porta aberta, alarmados caso tivessem que lutar.
Não foi necessário. A casa estava abandonada. Depararam-se com uma sala jeitosa, mas simplória. Um sofá, uma lareira com cinzas e uma mesa de centro sobre piso frio.
Azura e Alaric guiaram a rainha até o sofá, onde ela finalmente despencou e permitiu-se chorar como um bebê, por mais que tentasse segurar as lamúrias com tanto afinco que o peito doía. Não queria que a vissem daquele jeito.
Viorica rapidamente explorou a casa com uma faca na mão. Voltou com um copo de água e estendeu à mulher, abaixando-se em sua frente. Os soluços de Odile cessaram aos poucos.
Dante fechou a porta assim que Ginevra e Kohan passaram pelo batente. A dor ficou para o lado de fora, só um pouco.
- Obrigada - murmurou a rainha, recobrando a postura. Estava exausta.
- Não acredito que está viva - Kohan balançou a cabeça, tentando soar simpático.
- Que bom que está viva - Azura acrescentou, olhando fundo nos olhos inchados e avermelhados de Odile. - Lírio vai ficar muito feliz.
O rosto da mulher contorceu-se novamente em uma carranca emocionada.
- Nikki está bem? - indagou, o timbre falhando.
A petrichoriana concordou com a cabeça, sorrindo com o reverberar de, finalmente, uma boa notícia.
Odile jogou-se no sofá e cobriu o rosto, deixando o alívio anestesiá-la.
- Até onde sabemos - Dante decidiu por ser o estraga-prazeres, com o coração partido. - Estão na linha de frente.
- O que está acontecendo lá? - Ginevra rapidamente questionou, evitando que pensassem em seus amigos mortos no campo de batalha.
- Os soldados são muitos - a rainha respirou fundo, sentindo a dor minorar na altura da garganta. Fechou os olhos, recompondo-se. - Serão uma barreira impenetrável para o centro, que dirá o palacete. É o plano de ação. São treinados para isso.
Silêncio.
- Teria sido útil ter tido você lá quando bolamos um plano - a sentença da bruxa soou quase como uma repressão.
Me desculpa se me arrastaram, a mim e ao meu filho, de onde eu queria estar. A rainha engoliu as palavras rudes e debochadas. Desculpa mesmo se eu não estava lá. Aqui estava muito divertido nas mãos do marechal.
- Está aqui agora - Azura percebeu a tensão gerada. Os olhares caíram sobre a rainha outra vez, estirada no sofá com as mãos delicadamente repousadas no pescoço, segurando-o como se este fosse cair. Depois de tudo, não tinham razão nenhuma para desconfiar dela. - Nos diga, então. Como fazemos para continuar?
Olhos verdes vaguearam pela sala. A rainha repousou o tronco no espaldar do sofá e engoliu em seco. Pensava em Nikki e em como podia estar próxima dele, mas tão distante. Se dependesse apenas de sua vontade, moveria montanhas para cruzar os soldados e encontrá-lo. Entretanto, aprendera há pouco o que realmente significava levar a coroa na cabeça. Antes de suas vontades vinham as necessidades de um vale inteiro.
Tinha um plano pronto na ponta da língua, que bolou rapidamente entre deixar Kaha com Rose e o céu ficar vermelho sangue.
Verbalizou rapidamente para os que a ouviam atentamente. Ter novamente um plano a seguir lhes fez encher o peito outra vez com determinação, tentando fazer com que aquele sentimento roubasse o lugar do luto.
- O que acha, Azura? - Ginevra indagou assim que Odile terminou de falar.
Azura, que tinha o olhar perdido para o lado de fora da janela, voltou a atenção para a sala outra vez ao ouvir seu nome. Suas sobrancelhas se arquearam em dúvida ao perceber que todos a olhavam. Ela acabara de sentenciar centenas à morte no Porto das Rosas e ainda confiavam nela. Ou será que apenas era mais fácil largar as responsabilidades em suas mãos para culpá-la quando tudo desse errado? Não soube dizer. De uma forma ou de outra, esperavam uma resposta.
A petrichoriana abriu a boca para falar, mas rapidamente a fechou. Orbes cinzentas voltaram novamente para o lado de fora, atentas a um som distante que os outros pareceram não ter ouvido.
- O que foi? - Kohan estava ao seu lado em segundos. Assim como ela, entretanto, nada viu.
- Não está ouvindo? - a mulher cochichou, apurando os ouvidos.
- O quê, Azura? - o homem respondeu-lhe no mesmo tom.
Ela debruçou-se sobre o batente da janela.
- Gritos, Kohan - suas unhas cravaram-se na madeira. - Os gritos.
Sentindo-se uma covarde e escondida atrás da pilastra, tudo o que Aurèlia pensava era em como morreria sem dignidade. O medo a petrificou, a água gelada a congelou, o céu vermelho sentenciou: era o fim.
Os soldados aproximavam-se mais e mais e não tinha para onde avançar. Fugir ou morrer. Pelo menos, não fugiria.
Caiden e Gisèle estavam próximos, abraçados como os irmãos que eram, prontos para morrerem juntos. A garganta de Aurèlia embargou. Pensou em como estariam Azura e os outros. Ganharam-lhes tempo, mas só. Não conseguiriam sozinhos.
A Kino arranhou os próprios braços, apreensiva. Fechou os olhos com força.
Vou morrer lutando, decidiu, ouvindo os gritos do próprio povo. Vou morrer lutando por eles. Por meu pai, por Frey, por todos eles.
Mesmo com medo, Aurèlia levantou-se. A espada tremeu nas mãos.
Enquanto deixava a falsa proteção daquela varanda abandonada, pensou na Clareira, em Dante, em Lírio e até na rainha. Chamou-os de uma última esperança antes de jogar-se novamente na batalha que lhe prometia ser o fim da linha.
Sabia que era boa, que era forte, mas alcançava seus limites ali, pisando em terra inimiga banhada por sangue amigo. Aurèlia lutou bravamente até o fim. Até onde pensou ser o fim. A linha de frente inimiga avançava e a Kino estava determinada a não recuar.
É incrível o que alguém com as certas motivações pode alcançar. Quando caiu no chão, ferida e exausta, pronta para ser rendida, preparada para o golpe final, o Vale congelou.
Sob Crisântemo, o chão tremeu. Aurèlia viu os pedregulhos das ruas trepidarem e aquele segundo eterno perdurou. Foi como se tanto sobreviventes quanto soldados temessem.
Os portões ainda estavam próximos, de onde entraram e para onde eram empurrados de volta. Aurèlia ousou olhar para trás e seu queixo caiu quando viu o que vinha por eles.
Era seu povo, ela teve certeza. Montados em cavalos, correndo como o vento, armados, aos brados, um batalhão avançava pelas terras limiares da Pedreira e da coroa.
Queria rir, se pudesse, emocionada. Funcionou, pensou, com lágrimas nos olhos. Os pássaros azuis funcionaram! Arande, D'Ávila, Castilho, estavam todos lá. O Vale se levantou.
E não eram só eles.
O céu escureceu outra vez, mas por uma razão diferente.
Os dragões vieram por eles, gigantescos e alados. Centenas cruzavam os ares e Aurèlia gritou de emoção.
A Kino foi a primeira a levantar-se, a fazer aquele segundo descongelar.
Agora eram a maioria. Crisântemo cairia e ela estaria lá para ver.
Azura quase tombou para trás quando os viu chegar.
A mulher correu para o lado de fora, a boca entreaberta entre um sorriso e uma estupefação. Chamaram por ela antes de entenderem o que cativara seus olhos.
A petrichoriana subiu no telhado com facilidade e destreza, derrubando um vaso ou dois no caminho, olhando para os céus como se fosse a coisa mais bela que já vira.
Não. Ela conhecia os amanheceres de Petrichor, as pinturas em nuvens feitas pelos Deuses mais habilidosos. Aquele não era o céu mais bonito que já vira, mas o horizonte de seu olhar lhe trazia uma visão de acalorar o peito.
Os dragões voavam em sintonia, centenas cruzavam os céus como nas histórias.
Ela riu alto, deixando que passassem por cima dela. Não tinha que temê-los, sabia. Voaram por sobre sua cabeça e mergulharam em Crisântemo. Os gritos de pavor eram dos soldados. Seu lado sanguinário quis ver animais tão deslumbrantes devorando seus inimigos como carne no espeto. Eram inteligentes, os dragões, ela se lembrou da conversa com Lilo. Tinham um acordo de anos, e estavam do lado deles.
Foi quando Tohrak pousou em sua frente, fazendo tudo ao seu redor revoar com o abanar de suas asas.
- Azura - a voz de Odile a chamou. Ela voltou-se para trás. No telhado daquele sobrado, os outros seis estavam dispersos, olhando para o céu tão deslumbrados quanto ela. Ginevra chorava tanto que seu corpo balançava. Dante a abraçou. Sua magia era forte. Sua intuição, cada dia mais. Sabia que os pássaros azuis funcionaram. A esperança entrou pela porta da frente e tudo graças a ela e aos bruxos. Lágrimas de emoção foram bem-vindas.
Odile cruzou o espaço entre elas rapidamente assim que recuperou-se da visão.
- Não há tempo a perder, garota - a rainha vislumbrou Tohrak por sobre os ombros da petrichoriana. - Está comigo?
- Você dá as ordens - Azura sorriu -, minha rainha.
A mulher devolveu-lhe o sorriso brando. Os cabelos de ambas voavam em uma dança com os dragões.
- Não - a rainha balançou a cabeça -, hoje não.
Odile sabia muito bem. Podia ser a rainha, mas não era bem quista. Podia dar ordens que as pessoas seguiam por medo, mas o medo dela era a menor das preocupações daquelas cabeças. Azura, entretanto, transformou-se em um ícone.
- A petrichoriana das tatuagens - a rainha passou as mãos pelos braços desnudos e gélidos da mulher. - Meu povo escuta você, Azura. E você fez por merecer, diferente de mim.
Um arrepio percorreu a espinha da garota. Uma sensação boa.
Não quis nada disso, a petrichoriana quase disse. Estava convicta disso até pouco tempo atrás. Nunca quis, mas talvez quisesse naquele momento. Talvez fosse o destino, talvez os Deuses. Estava ali por algum motivo. Arrancaram-na de Amara e Santi e Gisèle por algum motivo. Arrancaram dela tudo o que ela amou. Por algum motivo. Fizeram-na sofrer. Tomou as decisões mais difíceis de sua vida. Nunca quis nada daquilo, mas, como a rainha, Azura sabia que a guerra não se resumia às suas vontades. Escolheram-na.
- Nos vemos lá dentro? - Azura engoliu o choro de emoção. Deixaria as lágrimas para quando vencessem.
Odile concordou, lembrando-se de seu plano.
A petrichoriana deu dois passos para trás. Sorriu para Kohan, que lhe sorriu de volta. O empurrão que ela precisava. Voltou-se para frente e correu. Correu até alcançar Tohrak aos pés do telhado. O dragão estava pronto, assim como ela. Azura montou em suas costas e, juntos, voaram.
Voar com Tohrak, dessa vez, foi diferente. Azura não sentia a dor do luto, mas uma contrastante esperança. Sonhava com um mundo utópico, idílico, sabia. Entretanto, pensou, quando aquela noite acabasse, sonhos estariam ao alcance de seus dedos.
Odile ganhou uma arma. Ginevra lhe deu uma espada que carregava a tiracolo - sem sentido para ela - em sinal de paz. Queria mostrar que confiava nela, assim como os outros.
Repassou-lhes o plano mais uma vez, a mão direita fechada com força na empunhadura sobre a lâmina.
- Sabemos como isso acaba e de nada essa noite vai prestar se não entrarmos no palacete.
- Vai ser uma fortaleza impenetrável - Alaric verbalizou, cruzando os braços.
- É, mas nós temos uma vantagem que eles não esperam - Viorica apontou com a cabeça para a rainha. - Espero que estivesse bastante envolvida nas decisões militares, rainha.
Odile sorriu, travessa.
- Elas eram mais minhas que de Sohlon ou do próprio marechal - a mulher mordeu o lábio inferior, recordando detalhes. - É só saber manipular quem dá as ordens.
E nisso, lembrou-se, era muito boa. Continuou:
- Em caso de ameaça direta a Crisântemo ou ao palacete, os soldados dividiriam-se entre as frotas A e B. A primeira iria ao foco do problema. Nesse caso, os portões de Crisântemo. A segunda fica disposta no palacete. Metade dentro, metade fora.
- Somos sete pessoas, Odile - Kohan lembrou-a. - Já sobrevivemos a uma missão suicida hoje. Quer nos meter em uma segunda?
- Me escutem - a mulher esbravejou. - Conheço essa terra como a palma da minha mão. Ou acham que eu sobrevivi aqui por tanto tempo na ingenuidade daquelas torres?
- O que quer dizer? - Dante adiantou-se. Apertava o colar de Azriel entre os dedos, exibindo olheiras profundas.
- Quero dizer que - a rainha olhou em volta e encontrou o que procurava. Tirou o vaso com flores mortas de cima da mesa de centro, bem como a toalha de crochê empoeirada, e estendeu a mão para a faca de Viorica, que cedeu-a. Entalhou na mesa, rápida e superficialmente, o mapa de Crisântemo, bem como linhas dispersas que mais confundiu que ajudou os espectadores - se engana quem pensa que só nos locomovemos por terra.
- Está muito enigmática, minha rainha - Ginevra cruzou os braços, debochada.
Odile sorriu no mesmo tom. Olhou para os que a olhavam. Encontrou nos olhos do mais alto, Kohan, certa cumplicidade. Suas orbes arregaladas lhe disseram que ele entendera. Trocou olhares com o homem para que ele respondesse por ela. Assim o fez o arandiano:
- Por baixo.
- Isso - Odile concordou, orgulhosa.
- O quê? - Ginevra fez uma careta de incompreensão.
- É assim que estão em todos os lugares ao mesmo tempo - Kohan concluiu, estupefato, levando as duas mãos à cabeça.
- Do que estão falando? - impaciente, Viorica indagou.
- Há túneis subterrâneos, querida - a rainha contou. - Unem tudo debaixo de nós.
Os outros se entreolharam.
- Túneis? - Alaric curvou-se para frente, inquieto.
- Os esgotos? - Ginevra questionou.
- Não. São túneis que os cruzam. Não são grandes o suficiente para que uma grande frota ultrapasse, mas esporadicamente os soldados os usam para chegar mais rápido ao destino, qualquer que seja. É informação sigilosa.
A animação cresceu na sala.
- E são seguros? - Dante murmurou. - Por que não estava enfiada neles, então, quando te encontramos?
A rainha riu com escárnio, infeliz com a descrença.
- Um cavalo não se locomove aí dentro, Dante - respondeu, impaciente. - E tudo o que eu queria era agilidade que minhas pernas não podiam me dar.
- Foi um péssimo plano, então - o bruxo debateu.
- Talvez - concordou, atribulada. - Não parei para pensar muito enquanto corria por minha vida.
- Chega - Viorica intermediou a discussão. - E aí? Como isso nos ajuda?
- Esses túneis nos levam a qualquer lugar - a rainha apressou-se em dizer. - Daqui até o Porto das Rosas, até os portões...
- E até o palacete - Kohan concluiu, desvendando as linhas dispersas no desenho entalhado na mesa.
Odile concordou com um sorriso determinado.
- Lá dentro? - Alaric cerrou as sobrancelhas.
- Lá dentro.
- E uma vez lá...? - Ginevra questionou.
- O quão forte está, Ginevra? - Odile indagou.
Ginevra respirou fundo. Detestava aquela pressão sobre ela. Se falhasse, estariam mortos. O limiar era tênue demais. Não havia margem de erro.
- O suficiente - respondeu, por fim. - Por quê?
- Porque podemos usar você - a rainha apertou o couro cabeludo, raciocinando os últimos detalhes. - Então, uma vez lá dentro...
- Abrimos os portões - Alaric concluiu.
Dessa vez, todos se entreolharam. Era, outra vez, uma responsabilidade gritante sobre seus ombros. O plano tinha diversas brechas. Fora mal pensado, até mesmo a autora deste sabia, mas Odile estava confiante de que aquela era uma chance que não podiam desperdiçar.
Logo rumariam outra vez para de onde ela fugiu. Os portões abriam de dentro com facilidade. Da entrada de Crisântemo, os rebeldes avançavam. Logo estariam no palacete, esperando pela deixa de Azura, que conhecia o plano mesmo que sem detalhes. Uma vez abertas as portas do palacete, aquela guerra prometia estar vencida, ou pelo menos equiparada.
Era tudo o que precisavam fazer.
- Vamos abrir os portões do palacete. De lá de dentro.
Foi a melhor sensação pela qual Azura já passou. O vento emaranhando os cabelos, beijando a pele com violência, o frio no cerne da barriga toda vez que Tohrak fazia uma curva.
O animal subiu para o céu a toda velocidade e, para a surpresa de Azura, segurar-se em seu dorso era natural. Não sentiu medo algum. Tohrak subiu, subiu, voou contra as centenas de dragões com quem dividia o céu e, então, planou.
A petrichoriana sentiu o peito subir e descer descomunalmente quando estagnaram no ar. Foi a primeira vez que olhou para baixo. Eram formigas abaixo dela e todas elas olhavam para cima. Azura viu os portões, a batalha sendo travada lá. Viu toda Crisântemo e pensou em como gostaria de poder voar nas costas de Tohrak em um mundo que não fosse guerra. Teria de esperar.
Ela tirou das costas o arco e flecha. Viu que, pelo canto do olho, o majestoso animal a olhava. A mulher inclinou-se para frente e acariciou seu torso. Murmurou:
- Sabe o que fazer, garoto - acariciou as escamas afiadas sob sua pele, que aos poucos deixavam de incomodá-la.
Tohrak voltou a olhar para frente. Azura segurou-se. O animal mergulhou em direção a Crisântemo e o frio na barriga transformou-se em adrenalina pura correndo nas veias da mulher. Rumaram para os portões. Armou a flecha e esperou.
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