103. Xadrez
Se sentiram tão próximas e tão distantes que a angústia tinha sabor na ponta da língua, ácida e indigesta. As irmãs correram lado a lado, desviando de pessoas apavoradas, pulando corpos estirados, deslizando pelos ladrilhos ensopados pela chuva que só caía e caía como se para puni-las de algo.
Nafré e Gaia já não tinham mais rumo. Não tinham visão do par de botas e de sua dona e, se não tivessem visto a mesma coisa, teriam certeza de estar alucinando.
- Nafré - Gaia chamou assim que estagnaram em um cruzamento -, não era ela.
- Claro que era, Gaia! - a mais nova esbravejou com a falta de crença. - Vamos achar ela, anda!
- Nafré - Gaia foi mais incisiva. Segurou no punho da irmã, que tentou se desvencilhar. Nafré tinha os olhos inchados de quem logo derrubaria mais lágrimas para somar com a chuva. Mesmo assim, olhou para Gaia. A mais velha apontou com a cabeça para o lado delas -, olhe. Não era ela. Não era a mamãe.
Nafré olhou. A dona do par de botas era uma mulher de cabelos castanhos e mais nova que Rose. Agora, mais próximas, vendo a mulher procurar por abrigo como os outros, perceberam que pouco aqueles calçados se pareciam com o que fizeram para a mãe há mais de uma década. Estavam se iludindo pela semelhança de meros calçados, procurando salvação onde não tinha.
A loira levou uma das mãos à têmpora, exausta. Sua feição debulhou-se em uma careta chorosa e ali, também, Nafré desistiu.
Gaia puxou a irmã mais nova para longe dali, para a direção da casa onde viveram. Não estavam longe, tampouco perto. Perdiam-se e se encontravam e fugiam de soldados que brutalmente invadiam casas e saqueavam até mesmo os que estavam ao seu lado na guerra. Eram degolados imediatamente os que não tinham a marca de Pouri. Elas fugiam enquanto conseguiam.
Nafré estagnou. Gaia olhou para trás, tentando puxá-la, a irmã mais nova que era tão mais forte que ela. Estavam em uma rua movimentada, uma correria sem igual, onde pessoas se feriam e o caos corria solto.
A mais velha empurrou a irmã para um canto e olhou para todos os lados enquanto tentava acalmá-la.
- Vamos, Nafré - pediu.
A loira balançou a cabeça com força, negando.
- Chega, Gaia! - seu choro escapou junto com suas palavras. - Acabou.
- Não acabou, Nafré, precisamos ir para casa...
- Que casa, Gaia? - a garota encostou o corpo na parede atrás de si. Ambas viram quando a luz vermelha cortou o céu e ali permaneceu, substituindo o lugar das tochas. Diferente dos outros, não se espantaram. Sabiam do que se tratava. Era o Deus das Trevas dando uma luz para o seu lado. Isso só intensificou o que Nafré sentia. - São só paredes vazias se ela não estiver lá.
- Não sabemos se ela está lá!
- Ela não está! Mamãe não é estúpida, Gaia, ela saiu de lá, ela pode estar em qualquer lugar, ela... ela... ela pode estar morta! Mas que merda, ela...
O ar fugiu de seus pulmões.
Se tivera dúvida do poder dos Deuses nos últimos meses, essa foi embora. Não acreditava em coincidências. Nafré não ouvia mais as palavras de Gaia. O tempo congelou. Foi como se todo o distúrbio congelasse também, como se ninguém mais se movesse. Nafré viu os inconfundíveis cabelos loiros esbranquiçados refletirem a luz vermelha no céu. Apesar de estarem todos estáticos, para ela, Rose estava correndo.
- Mãe? - balbuciou tão baixo que nem mesmo Gaia a ouviu. Mesmo assim, olhou para onde a irmã mais nova olhava. A figura já sumira.
- Nafré...
Nafré correu. Gaia gritou, mas ela não lhe deu atenção. Misturaram-se outra vez na balbúrdia, Gaia correndo atrás de Nafré, o coração já partido, prestes a desistir também.
- Mãe! - dessa vez, Nafré berrou. - Mãe!
Ela parou assim que a perdeu de vista. Limpou as lágrimas dos olhos, a água gelada da chuva, e rodou no lugar, procurando pela figura por quem voltara.
Gaia não sabia o que fazer. Tentou segurar a irmã, mas Nafré desvencilhou-se como uma criança emburrada.
- Mãe! - berrou outra vez. Esbarravam nelas tão fortemente que Gaia teve medo de ser derrubada ou, pior, ser afastada da irmã pela correnteza.
- Nafré, ela...
- Gaia? - a voz veio de trás dela. Estava tão próxima que o frio subiu pela espinha da garota, congelando-a dos pés à cabeça. Aquela voz a ninara em noites de sono brando, a repreendera quando quebrou o vaso caro na mesa de centro e a consolara quando precisou chorar.
Gaia olhou para trás. Rose a olhava, imponente, segura de si, mas com os olhos ainda mais cansados do que da última vez que a vira. Parecia tempo demais.
Rose abriu um dos braços. No outro, carregava uma sacola junto ao peito.
Nafré irrompeu por entre a multidão e se jogou ali, no colo que trazia conforto mesmo depois de crescida. Só faltou Gaia, que não acreditou que aquele momento fosse verdadeiro. Apenas quando Rose estendeu-lhe a mão, suas pernas falharam.
Não se importando com o que poderia acontecer, permaneceram ali, abraçadas, chorando, as três juntas. Não era sobre a casa, era sobre a família. Morreriam ali sem empecilhos, se assim o destino preferisse.
Voltaram para casa, as três. As três e Kaha.
Assim que a adentraram, souberam que o tempo era escasso. Da guerra do lado de fora, desistiram. Não tentaram ao menos se esconder. Ganharam tempo puxando os móveis para frente da porta.
Gaia abraçou Kaha, o príncipe pelo qual criara tanto carinho. Dormia um sono tranquilo.
Na cozinha, Rose contou-lhes tudo.
- A rainha é boa moça, não, Gaia? - comentou calmamente enquanto esquentava água na chaleira, como se o sol fosse nascer em minutos pela vidraça da janela e um dia calmo fosse dar início à rotina corriqueira. - Se alguém for dar um jeito nisso, vai ser ela.
Rose contou do plano, de como Odile estava viva e estava lá fora, lutando. Por um instante, sentiram pesar em se esconder. Foi um instante, apenas. A exaustão derrubou-lhes no sofá com uma xícara de chá cada uma.
A mãe mostrou a marca de Pouri e elas entenderam. Aquela noite acabaria, um dia, e elas não estariam mais juntas. Se Pouri vencesse, o Deus das Trevas levaria as meninas. Se perdesse, levaria Rose como promessa pelo pacto que aceitou sem pensar. Era o fim da linha. A última noite juntas.
Rose sentou-se no meio do sofá e afundou-se nas almofadas. Nafré deitou-se em uma de suas coxas e Gaia na outra, abraçada a Kaha. Se não fosse a adrenalina que insistia em estragar aquele momento, poderiam dormir, as três, assim como Kaha. Estavam exaustas, física e mentalmente.
Entretanto, Rose apenas bebericou o chá de camomila. Fechou os olhos e pensou nos momentos bons que viveu ao lado daquelas duas. Chorou baixinho e esperou pelas investidas na porta que prometiam não tardar.
O desespero a inebriava enquanto tentava puxar na memória os tempos distantes em que corria pelas periferias de Crisântemo. O fôlego fugia de seus pulmões tanto quanto ela fugia dos soldados a cavalo que a perseguiam por vielas escuras e sombrias.
Odile correu o quanto as pernas permitiram. Ouviu os soldados gritarem por ela, gritarem uns para os outros, chamarem reforços como um bando animalesco. A rainha tentava pensar em um plano, cogitar as consequências de cada ato. Deixar-se capturar novamente seria o certo? A levariam a Roto? Ela não teria chances de matá-lo, se fosse assim. Roto já sabia que a barganha deles não funcionava mais. A torturaria até a morte da pior maneira que aquela mente doentia conseguisse imaginar. Não, ser levada de volta não era uma opção. Acima de tudo, agora, queria continuar viva.
Se assim fosse, teria que lutar com unhas e dentes.
A rainha mergulhou nas tendas abandonadas do mercado clandestino, sabendo então que estava próxima - os portões, o limite de Crisântemo, estavam logo ali. Logo afundaria-se no pandemônio e de seu destino nem os Deuses sabiam.
Nas sombras labirínticas, ficou calada e imóvel como uma estátua.
Ouviu quando os cavalos passaram por ela. Só então permitiu-se soltar o ar e respirar fundo.
A exaustão mental a fez recostar a têmpora na estrutura de metal de uma das tendas cobertas por lonas ensopadas, mas a adrenalina não permitiu que ao menos fechasse os olhos. Aquilo estava longe de terminar, algo lhe dizia, e não descansaria enquanto não resolvesse tudo aquilo que ajudou a criar. Monstros ainda rondavam por aí.
A rainha olhou em volta. O mercado era um sinistro emaranhado de mercadorias abandonadas e, por muitas vezes, mal-cheirosas. Alimentos pereceram, como Pouri prometeu, rápido demais. A fome era corriqueira por ali, principalmente por aquelas bandas de Crisântemo.
Esperando que a chuva encobrisse qualquer barulho seu, Odile esgueirou-se de corredor em corredor, procurando por seus perseguidores.
Vão embora, repetia mentalmente. Me deixem em paz.
Estava convicta de tê-los despistado. Esqueceu-se, por um segundo, de que sua cabeça valia muito para que a perdessem de vista tão facilmente.
Odile gritou ao sentir os fios de cabelo serem puxados para trás por mãos violentas, arremessando-a no chão molhado de ladrilhos cortantes. Olhou para cima e distinguiu a silhueta do soldado sob a luz vermelha. Não lembrava seu nome, mas seu rosto era familiar. Tinha olhos mais separados com orbes azuis e um cabelo loiro escuro, o nariz torto de quem já o quebrara mais de uma vez na vida. A ironia acometeu a rainha. Ele outrora fora de sua guarda pessoal. De nada a lealdade valia. Lealdade se comprava com dinheiro.
Quando desesperada tentou apoiar-se nos cotovelos, Odile sentiu o ar fugir de seus pulmões com o impacto forte do chute em seu diafragma. As tentativas de puxar o ar somadas aos gemidos agonizantes de dor soavam como súplicas de piedade.
- Achei ela! - bradou o loiro.
O homem a puxou para cima por um dos cotovelos. Odile recuperou-se o suficiente para chutar suas partes íntimas. O soldado, desprevenido, soltou-a e curvou-se para frente, segurando suas intimidades. A rainha aproveitou para roubar a espada do homem e chutá-lo em um dos joelhos. Ele tombou. Ela ganhou tempo.
Conseguiu correr três passos antes de um dos cavalos fechar seu caminho, com um soldado sobre o dorso, empunhando sua espada. Ela recuou, mas o loiro já estava de pé, furioso.
O loiro avançou sobre ela assim que o outro desceu do cavalo.
Odile ergueu a espada.
- Vai se machucar com isso aí, minha rainha - o outro soldado debochou, aproximando-se a passos calculados.
Ela os estudou. Com a espada, derrubaria um ou outro, ela sabia. Conhecia seus truques. Ironicamente, treinou com o próprio inimigo e eles a subestimavam. Com os dois, porém, encontrava-se em uma sinuca de bico.
Precisava se dar uma chance. Eles não a matariam. Ela os mataria. Estava ali a sua vantagem.
Odile avançou sobre o desarmado, que espantou-se e deu dois rápidos e cambaleantes passos para longe dos maneios da espada. O outro avançou sobre ela, mas ela estava pronta. Ergueu a espada em defensiva e passou-lhe uma rasteira nas pernas. Este não caiu.
A mulher sentiu quando mãos envolveram seu pescoço por trás e a arremessaram no chão outra vez. Um terceiro indivíduo. Ela olhou ao redor. Outros dois. Agora, eram quatro. Ela era apenas uma e a desarmaram. A pancada da cabeça contra o chão a desnorteou.
Não, foi tudo o que conseguiu pensar. Não não não. Não vou voltar.
Esperneou, tentou desgarrar as mãos que a pressionavam contra o chão, mas falhou. Arranhou todas as peles que encontrou em seu caminho. A levantaram. Um dos homens, o que conseguiu derrubá-la, imobilizou os braços da mulher atrás do corpo de modo que machucasse todas as vezes em que tentou desvencilhar-se. Seus ombros gritavam, mas não mais que ela.
- Cale a boca! - o loiro esbravejou, furioso. Ameaçou partir para cima dela, mas o outro, o segundo que apareceu na cena a cavalo, impediu-o.
- Acabe logo com ela - o que aparecera por último, um homem baixo, mas forte, girou a espada nas mãos. - Ou faço eu.
- Acabar com ela? Com a rainha? - Odile repugnou como aquela voz soou em seu ouvido, vinda do que a segurava com afinco.
- Ordens do marechal, imbecil. Corte a cabeça dela ou corto eu.
Odile fechou os olhos com força. Não imploraria por misericórdia. Tinha que sair dali. Suas lágrimas de pavor e dor lhe traíam.
- É a rainha. Vale mais que ouro um fio de cabelo dela. - o segundo soldado murmurou, olhando-a de cima a baixo. - Vamos ficar com ela.
Odile resmungou, chorosa. Odiava aquela sensação, a de objeto, de peça em um jogo. Era um xadrez, e ela era a rainha. Os peões a almejavam.
- Ficar com ela? - um riso debochado escapou do loiro. Ele alcançou a arma no chão. - E fazer o que?
- Você não sabe como essa noite vai acabar, Julian - o que a segurava esbravejou, apertando-a mais forte. - Essa mulher com vida é uma moeda de troca. Pode salvar nossas bundas, pode acabar com a guerra inteira, sabe-se lá o que mais. É uma garantia de que amanhã estaremos vivos.
Os quatro estagnaram-se. Sob a luz vermelha do céu, tudo o que ouviam era a chuva e a rainha tentando segurar os soluços.
- Além do mais - o segundo comentou, aproximando-se da mulher. Odile desviou o rosto. Ele riu, passando o indicador com delicadeza da maçã do rosto da mulher ao colo -, tem coragem de matar uma mulher dessa? Sem tirar nenhuma lasca?
Odile enfureceu-se. Seu peito subia e descia com o ódio que encobria o medo.
- Não vão me levar a lugar nenhum - sua voz imponente sentenciou, mas de nada valia na posição em que estava.
Os soldados riram. Os quatro. Pareciam ter entrado em um consenso facilmente.
- Apague ela - o loiro ordenou, acenando com a cabeça. - Vai chamar atenção demais dar o fora com ela daqui consciente.
A rainha chutou o ar e tentou desvencilhar-se com desespero. Em vão. Não acertou nada. O soldado que a segurava arremessou-a ao chão e outro, o quarto, foi rápido ao montar sobre ela. Odile gritou por ajuda, desistindo de sua dignidade, e as lágrimas que saíram de seus olhos escorriam junto com a chuva, chacoalhando seu corpo como o de uma criança inconsolável.
O homem era forte. Com um dos joelhos, pressionou o antebraço da mulher para o chão de ladrilhos. O loiro pisou em sua outra mão e a dor foi lancinante, fazendo com que seus gritos tornassem-se ainda mais agonizantes. Estava imobilizada quando as mãos do quarto envolveram seu pescoço.
Suas cordas vocais não mais respondiam. Ele a pressionava contra o chão e impedia o ar de entrar em seus pulmões. Odile viu de baixo os quatro olhando-a e declarou aquela como uma das piores sensações a que fora submetida. Indefesa, imobilizada, sufocando . Teve medo que a matassem. Que perdessem a mão e a matassem ali.
Queria viver.
Não não não.
Os sorrisos sádicos, as mãos fortes, a dor lancinante, os olhares maliciosos, a falta de ar. Sentiu tudo. Achou que estivesse morta quando finalmente desgarraram dela. Mas, não. Suas preces foram atendidas mais uma vez.
Pareceu durar uma eternidade, aquele intervalo de um segundo entre a dor e o alívio. Instintivamente, a rainha voltou seu corpo de lado e tossiu, levando as mãos à garganta como se para se certificar de que mais nada atentava contra ela.
Odile puxou o ar com força, mas esse parecia não querer vir. Tentou entender a cena que a rodeava e o porquê de não estar mais presa. Nem morta nem prisioneira.
Ela limpou a água da chuva dos olhos e viu que seus salvadores eram quem gostava de chamar de aliados.
Azura tinha fúria na lâmina da adaga, tanto quanto na ponta da flecha que atravessou o pescoço do homem montado sobre a rainha.
De longe a ouviu, ainda distantes da guerrilha próxima aos portões. Soube que ninguém mais percebeu os apuros da rainha quando a seguiram às cegas. Estava certa, afinal. Seus instintos não costumavam falhar, tampouco a intuição.
Eram mais numerosos, mas não acharam covardia alguma. Covardia era o que faziam com Odile. Derrubá-los não foi difícil. Os soldados eram covardes quando encurralados.
Quando findaram a vida do último que não conseguiu ao menos pedir por piedade, Viorica abaixou-se ao lado da rainha, ainda jogada ao chão e tossindo como se fosse expelir os pulmões, puxando o ar como se estivesse engasgada.
- Você está bem? - a pergunta desesperada saiu dos lábios da arandiana, inocente. Era óbvio que não estava. Felizmente, estava viva. Surpreendentemente viva.
Viorica apenas conseguiu tirar os cabelos da frente do rosto da mulher e ampará-la. Os outros observaram.
- Aqui não é seguro - Ginevra murmurou, uma lamúria ainda distante enquanto olhava ao redor pelas ruas banhadas de vermelho cintilante. Não sabiam se ela se referia à exposição das ruas ou a Crisântemo inteira.
Alaric tratou de agir. Tomou a rainha em um dos braços e a levantou com facilidade. O choro de Odile voltou a acometê-la mais que o desespero da falta de ar, que agora retornava aos pulmões sedentos. A petrichoriana pôs-se a ajudá-la do outro lado e juntos guiaram a rainha - e a família - para uma edificação próxima. Kohan abriu a porta com um chute.
Tinham muito a conversar.
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