102. Água Salgada e Medo Camuflado
Odile escorregou do palacete aos estábulos, agradecendo a Shirley por ter lhe cedido roupas que lhe permitiam correr. A lateral de seu corpo estava enlameada por onde deslizou até lá, desviando de trilhas asfaltadas e lugares onde pudesse ser vista. A chuva a acometera assim que pisou do lado de fora do palacete. Ainda era uma garoa fina e incômoda, gelada e penetrante.
A mulher adentrou os estábulos e fechou as portas assim que passou. Sentiu o cheiro forte do feno e de alguma forma aquele odor lhe trouxe conforto. Nenhuma tocha ali estava acesa e a mísera luz de fora não era suficiente para lhe fazer enxergar os animais, mas ela os ouviu relincharem à sua chegada. Não soube dizer se eram boas-vindas ou ameaças. Correu, então, para o penúltimo cavalo enfileirado naqueles cubículos, segurando-se para não cair e cambaleando como se ébria. O animal que ela usava quando decidia escapar da vida de rainha a recebeu com um relincho entusiasmado e Odile sorriu. Abriu o portão do cubículo e tateou a escuridão até encontrá-lo. Quando o fez, acariciou sua crina e o animal pareceu mais calmo, apesar da agressividade dos ao seu redor.
Com prática, Odile o montou e fugiu dali, veloz, com mais um aliado. Correu para encontrar os seus nos portões.
Aurèlia percebeu quando sua determinação afogou-se aos poucos na chuva que caía, agora mais espessa e inebriante. Escondeu-se nas costas de uma pilastra de madeira na varanda de uma casa cujos moradores abandonaram há tempos.
Recuperou o fôlego que fugia com o pânico.
Tateou o próprio corpo à procura de ferimentos, trêmula de frio e apreensão. Estavam perdendo. Não encontrou nada que pudesse sentenciar sua morte, até então. Os ferimentos eram superficiais ou hematomas que começariam a doer no dia seguinte, se ela ainda estivesse ali para ter um. Só sairia daquela guerra vitoriosa ou morta. Se vitoriosa, não se importaria com dor alguma.
A Kino viu-se covarde. Deixou a espada cair ao lado do corpo e espiou por detrás da pilastra. Crisântemo era uma zona de guerra onde dois lados engabelavam-se, sabendo que aquela era a única chance que teriam de continuar ali.
Aurèlia não sabia onde terminava o seu povo e começavam os soldados, mas tinha uma certeza pungente que não queria admitir: estavam perdendo.
Os três crisantianos não se separaram. Isaac, Gaia e Nafré tornaram a Crisântemo com muito menos do que quando partiram. Pisar na terra natal lhes despertou um sentimento de nostalgia que sobrepôs-se à vontade de lutar. Quando se deram por si, já tinham deixado a batalha que se espalhava para trás. A guerra que compraram era para chegarem à casa onde cresceram as meninas, ansiosas para morrerem onde nasceram. Isaac comprou a briga e tomou a frente.
- Isaac! - Gaia gritou quando viu que vinham atrás deles.
Os três costuravam a cidade a pé, correndo o quanto as pernas permitiam por ruas conhecidas do subúrbio. Os soldados desdobravam-se para não deixar pontas soltas mergulhando em suas terras, caçando-os como pragas.
Isaac tomou a mão de Gaia e correu, deixando que Nafré fosse na frente dessa vez.
O crisantiano tinha em uma das mãos uma espada que empunhava com firmeza e pouca habilidade. Na outra, os dedos gelados de Gaia, enquanto sentia os cabelos de Nafré voarem até quase encostarem em seu rosto enquanto corriam. Isaac lembrou-se da dura verdade: elas eram tudo o que ele tinha, aquela garota com o qual teimava se dar bem no começo, encontrando-a esporadicamente nos aposentos de Lore e torcendo para que fosse confiável, e sua irmã rabugenta, que mostrou-se forte como um touro quando colocada sob pressão. De resto, todas as pessoas que um dia amou foram arrancadas de suas mãos. Por eles. Pelos mesmos homens que agora ameaçavam tirá-las dele também.
Seus passos tornaram-se mais lentos. A ideia de perdê-las como perdeu os outros lhe atravessou o peito. Gaia o ultrapassou e olhou para trás.
- Vamos, Isaac! - bradou, o olhar espantado para o horizonte vendo que eram seguidos como se tivessem alvos nas costas. Viraram rapidamente em uma esquina antes de uma flecha acertar o local onde estavam.
Isaac cravou os pés no chão.
- O que está fazendo?! - berrou Gaia, puxando-lhe a mão. Nafré parou. Seus olhos heterocromáticos fitaram a cena e ela, apesar do pavor, armou o arco e flecha e lhes deu tempo.
- Prometi pra mim mesmo que cuidaria de vocês - Isaac sussurrou. A voz falhada denunciou seu medo e uma lágrima escorreu por sua face. Ele não soube se ela a viu. Isaac beijou a testa de Gaia com força e carinho, uma despedida dolorosa. - Nafré - chamou -, tire ela daqui.
Petrificaram-se por um segundo, as duas.
- O que vai fazer, Isaac? - interpelou Gaia. Ela segurou em seu braço, mas ele a empurrou na direção de Nafré, parada como uma estátua, o arco e flecha armados, esperando para que logo alguém entrasse em sua mira.
- O que eu vim pra fazer - Isaac tentou sorrir, mas falhou miseravelmente. Ele a empurrou na direção de Nafré outra vez, que voltou para tomar o punho da irmã.
Gaia correu, vendo-se obrigada tanto por Isaac quanto pela irmã caçula.
"O que eu vim pra fazer", a frase ressoou na própria mente ao assisti-las irem embora por detrás da cortina de chuva espessa.
Isaac ficou e lutou. Eram três. Ele, um. Conseguiu derrubar um e ferir outro na jugular antes de a espada do inimigo atravessar-lhe as entranhas.
O tempo congelou para Isaac. Sentiu a vida sair de seu corpo assim como a espada do soldado, tombando de peito para o chão de pedra ensopado da cidade onde cresceu.
É uma sensação aflitiva, ser deixado para morrer. Esperava que tivessem lhe poupado o sofrimento e acabado logo com aquilo, mas pareceram sádicos o suficiente para deixá-lo estirado nas ruas de Crisântemo enquanto assistia-os irem atrás das amigas.
Gaia e Nafré já estavam longe àquela altura.
A dor física não perdurou por muito tempo, Isaac percebeu. Escorreu por debaixo do corpo junto com seu sangue quente. Tudo o que ficou foi um vazio. Fechou os olhos.
Quando tornou a abri-los, não mais chovia. Seu corpo estava seco e nada mais doía.
Isaac sentou-se, tateando o corpo. Viu o sol nascendo no horizonte e sorriu. Uma silhueta entrou em sua frente, entre o sol de Sonca e seus olhos. Ele não precisou olhar duas vezes para saber quem era.
Iara lhe estendeu as mãos.
Isaac jogou-se em seus braços de um salto. Esperou muito para ter aquele lugar outra vez. Beijou os lábios da mulher e pensou em como tudo aquilo era real demais.
Uma luz branca apareceu atrás de Iara, tão bela quanto no dia em que a conheceu. Quanto no dia em que a perdeu. Era como uma porta de onde irradiava uma luminosidade que podia cegá-lo. De dentro dela, um a um, todos puseram-se ali, esperando-o.
Mirza saiu de mãos dadas com uma mulher linda. Tina sorriu para ele. Osi carregava o irmão nos braços e o sorriso de orelha a orelha que lembrava o da mãe.
Isaac sentiu-se presenteado na morte. Não pensou no que o aguardaria se Pouri vencesse aquela guerra. Aquele momento era tudo o que queria. Beijou a testa de Osi e pegou o filho mais novo nos braços, o de seu sangue, que não pôde crescer. Abraçou os amigos e envolveu Iara em um abraço. Juntos, partiram em direção à luz branca do portal. Isaac não olhou para trás. Não teria feito nada diferente.
Escondidas, seguravam a mão uma da outra com palmas trêmulas e geladas, ensopadas da cabeça aos pés. Quando Nafré viu que Gaia não conseguiria continuar, exausta e chorosa, puxou a irmã para um porão onde a vidraça já estava quebrada. A casa parecia ter sido abandonada há não muito tempo. Provavelmente quando a guerra começou.
Estavam em um ambiente escuro, ainda mais do que as ruas. A água da chuva escorria pela rua e adentrava o porão. Móveis desconfortáveis as deixavam apertadas naquele lugar onde eram intrusas.
- Temos que voltar, Nafré - a voz chorosa de Gaia interpelou.
- Shiu - pediu a caçula.
Gaia levou a mão à boca e abafou os soluços que insistiam em vir. Como pôde ter deixado Isaac para trás?
Nafré tinha outras preocupações, apesar de ser grata pelo que o homem fez. Esperava que estivesse bem, mesmo com a verdade amarga na ponta da língua, que não ousaria sugerir a Gaia. Agora, estavam em uma área mais distante, onde o povo de Crisântemo não conseguiu fugir antes da guerra estourar nos portões. Inocentes vagavam de um lado para o outro das ruas, subindo e descendo-as como baratas tontas, aos brados de pavor. Hora e outra, chamas fracas de tochas insistentes ladeavam onde elas estavam. Era nessas horas que Nafré podia ver Gaia, e Gaia podia vê-la. Estavam congeladas com o medo que fazia-se presente.
Tudo o que viam eram os pés das pessoas que passavam em busca de segurança, quando não eram patas dos cavalos dos soldados.
Gaia tirou a mão da boca, espantada.
- Nafré - chamou.
A loira pensou em mandá-la ficar quieta, mas viu os olhos da irmã mais velha brilhando com uma intensidade diferente. Esperança, ela aprendeu a decifrar. Seguiu seu olhar.
Por entre a miscelânea da multidão, uma mísera pessoa estava parada, descendo uma rua como se esperasse para atravessar e correr. Não conseguiam enxergar nada que não fosse os tornozelos e as botas de quem quer que fosse.
As botas.
Eram pretas com detalhes dourados discretos, adornados ao redor da sola em forma de bolinhas, brilhando à luz das tochas que iam e vinham.
A dona das botas correu.
Gaia e Nafré se entreolharam. Só uma pessoa tinha aquele par de botas, personalizado pelas duas com filetes de tinta dourada quando Nafré era ainda um bebê. Rose não a tirava dos pés.
Voaram para fora do porão e seguiram na mesma direção da dona do par de botas.
Gisèle tentou ficar ao lado de Caiden o tempo inteiro, mas sabia que não era possível. Caiden não descolava dela. Salvou sua pele e ele salvou a dela.
- Caiden! - bradou a loira quando o perdeu de vista em meio ao campo de batalha, as ruas de Crisântemo. - Caiden!
A espada que empunhava estava embebida de sangue da ponta ao cabo. A verdade estava exposta por todos os cantos. Aquilo era um banho de sangue e suas chances diminuíam a cada corpo inocente que tombava ao seu lado.
Quis gritar o nome de Caiden de novo, mas chorou, sem deixar que a postura caísse. Mais estavam vindo do palacete e eles seriam massacrados.
Alguém a abraçou pelas costas e Gisèle gritou e esmurrou, logo antes de perceber que era o amigo.
Caiden puxou-a para um canto, para uma casa escondida. Fugiram da guerra, logo eles. Caiden deitou a cabeça da mulher em seu peito e Gisèle soluçou.
- Não vamos sair daqui, Cai... - sua voz quase não saiu. Caiden não respondeu, mas ela sentiu seu corpo estremecer debaixo do seu. - Eu vou voltar pra Tereza.
O daviliano balançou a cabeça.
- Não, Gis, não podemos...
- Eu não ligo, Caiden, eu vou voltar pra Tereza! - esbravejou, mas Caiden segurou-a firme contra o peito.
- Gis - sussurrou. A voz calma do garoto a fez recobrar aos poucos a consciência do que faziam ali -, uma vez me disse que queria fazer algo. Que a pior coisa pra você era ver que ninguém reagia à coroa e... olha onde estamos, Gisèle!
Ela não quis olhar.
- Eu disse que seria seu braço direito se você se jogasse nisso, não disse? - continuou o homem.
Gisèle concordou.
- Precisamos de um plano, Cai.
Mas não tinha plano, Caiden sabia. Era aquilo. Lutar até a morte. O último de pé venceria.
O homem olhou ao redor. Na mesma varanda que eles, Aurèlia se escondia, a própria líder de uma rebelião. Foi quando entendeu que Gisèle estava certa. As chances deles acabaram ali.
Caiden sabia do que Gisèle prometera a Tereza, ouviu da porta da casa que dividiam, culpado pela curiosidade. Se estivessem perdendo, se a guerra não levasse a lugar algum, Gisèle voltaria para morrer com Tereza na Pedreira. Mas ele não deixaria. Permitiu-se ser egoísta mais um pouco. Segurou-a em seus braços e esperou que a morte chegasse, viesse por onde viesse, como viesse, quando viesse. Esperou que a tortura acabasse logo.
- Azura!
Pela voz de Kohan, sabia que era seguida. Não conseguiu olhar para trás, para a família que deixou enlutada, para os que confiaram nela e se arrependeram, ela sabia. Não conseguiu olhar para os que quase abandonou em um ato repentino de covardia, em uma experiência extracorpórea que agora era tentadora outra vez.
Morrer, lembrou-se. Morrer é fácil.
Chegou às areias do Porto das Rosas com a adaga em mãos trêmulas de determinação, tão exasperada para continuar que o frio cortante não lhe congelava mais. A dor no peito tinha ido embora e ela deixou que as últimas lágrimas de luto pelos que se foram se misturassem com as gotas de chuva que dançavam em seu rosto.
- Azura! - Kohan a alcançou, puxando-a para ele. Gritava, assustado como uma criança. Sua voz ainda era chorosa e ela não conseguia mais ouvi-lo daquele jeito. - O que está fazendo?!
- Continuando o que viemos fazer - a mulher não parou. Contornou Kohan, mas o homem a segurou pelo antebraço. - O que você está fazendo, Kohan?
Paralisaram.
O mesmo céu flamejante que os assolou na noite em que Azura perdeu Düran tornou sob suas cabeças, uma façanha de Pouri, e um gosto amargo chegou na ponta da língua de Azura junto com lembranças apertadas.
A luz vermelha cintilava como se o céu fosse ser vermelho para sempre.
Kohan, como ela, olhou para os céus. Voltou o olhar para a petrichoriana quando percebeu que ela também o olhava.
Ela fitou por cima do ombro do homem. Os outros se aproximavam sem pressa, diferente dela.
Sua rispidez foi embora assim que leu os olhos de Kohan. O homem soluçou antes de murmurar.
- Não posso, Azura - balançou a cabeça. Azura nunca o viu tão frágil.
Ela deu um passo para frente, matando o espaço entre eles.
- Não pode o que, Kohan? - murmurou, doce, como se a guerra não rolasse em suas costas.
A água gelada do Mar de Pétalas ainda alcançava os tornozelos de ambos. Foi para lá que Kohan olhou, para a água que o assombrava.
- Perder mais ninguém - sussurrou o homem.
Azura sentiu a dor das palavras como se ele a incriminasse. Azriel não estava ali com eles. Foi a água que o tirou deles. Foi o plano de Azura.
- Temos que fazer isso, Kohan - a mulher murmurou, os lábios colados aos dele. - Uma última vez, temos que lutar.
Ela entrelaçou seus dedos pelos fios de cabelo do homem, agora maiores e mais armados. A pele negra do arandiano refletia a luz vermelha sobre eles e a petrichoriana viu sua própria dor espelhada em olhos onde procurava conforto.
Kohan sabia. Lutar uma última vez, para nunca mais ter que lutar. A guerra para acabar com a guerra. Não sabia que o primeiro passo dependeria tanto de sua mente, da qual não conseguia se desprender. E agora era corpo contra corpo, arma contra arma, sem cartas na manga.
Ele beijou a mulher mais uma vez, um beijo demorado que não queria que tivesse gosto de despedida. O restante de calor que ainda tinham nos corpos, deixaram que o outro sentisse por dentre lágrimas de chuva.
- Prometa tomar cuidado - pediu Kohan, sabendo que não poderia tomar por ela. Assim que entrassem na zona de guerra, o pandemônio os arrancaria um do outro novamente.
Ela não conseguiu sorrir, apesar de tentar.
- Você também.
Assim, seguiram o mesmo caminho, todos os que saíram da água, como se acabassem de reviver. Reviver tinha gosto de água salgada e medo camuflado.
A garoa fina transformou-se em uma cortina espessa de água que cortava a pele da rainha como se fosse arrancá-la dos ossos.
Odile cavalgava determinada rumo aos portões, circundando ruelas e fugindo de multidões agitadas e assustadas como estavam. Rumava para a guerra, pensou. Desarmada. Descia os ladrilhos de Crisântemo para onde seu coração a mandava, ainda com um fio amarrado à Kaha. Se fossem outros tempos, teria apenas pensado em fugir dali com o filho e, quem sabe, Rose. Mas já não era mais a mesma. Quando se deu conta da majestade que era o Vale de Awa e a realidade fora de seus portões e de seu mundo de preciosidades vãs, a coroa pareceu uma peça pobre e insignificante. Estava desesperada para que aquilo acabasse logo.
Uma luz vermelha cortou o céu e Odile olhou para cima, assustada, deixando escapar um arfar de pavor encoberto pelo pandemônio. Nunca em toda a sua vida presenciara algo assim, como uma aurora boreal prava e desumana. Soube imediatamente que aquilo tinha os dedos de Pouri.
Antes de encontrar a guerra, a guerra a encontrou. Dois cavalos cruzaram seu caminho, guiados pelos soldados de seu marido, e o animal que montava assustou-se, empinando para trás sobre as patas traseiras.
Odile, pega de supetão, não conseguiu segurar-se. Seus olhos foram do céu ao chão, para onde seguiu de costas. Seu cavalo a deixou, infiel. A dor do tombo não a incomodou no momento. Os soldados pararam assim que a viram espernear para longe. A reconheceram. Naquela noite, não importava o que fizesse, Odile era inegavelmente a rainha. Tudo o que pôde fazer foi correr.
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