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Confissões

- Pra mim já chega.
Diz Elisa, agarrando a terceira fatia de pizza.
- Você me fez desmarcar meu encontro com o Rogerinho pra vir aqui ouvir você choramingar e não tem álcool? Sério?
Elisa dá de ombros e responde de boca cheia.
- Você sabe que eu não bebo.
Tatiane, mais conhecida como Taty, sua amiga desde os tempos do ginásio, gira os olhos e deixa o corpo desabar sobre a poltrona.
- Me lembre porquê sou sua amiga.
- Por quê se não fosse eu você ainda estaria no terceiro ano?
- Há. Há. Há.
Ela observa enquanto Elisa lambe os dedos e parte pra cima da pizza novamente.
- Bem... pelo menos você não está aos prantos dessa vez.
- É o que estou te falando, dessa vez eu desisto. Já nem sofro mais. É sempre a mesma história. Cansei! Vou morrer virgem, mesmo.
Ela diz essa última frase com a boca recheada novamente e Taty ri. Ao menos até notar a seriedade no rosto da amiga.
- Você tá brincando, né?
Ela questiona com o que restou do sorriso.
- Não. Estou determinada. Adoto meu primeiro gato amanhã.
Taty salta para o sofá a tempo de esbofetear a quinta fatia da mão de Elisa.
- Ai!
- Que papo é esse sobre morrer virgem?!
Elisa suspira, tenta alcançar a pizza novamente e leva outro tapa na mão.
- Quatro namorados e você nunca...?
- O que é?! - Elisa exclama, metade acanhada, metade ofendida. - Não sou obrigada!
- Meu Deus... - Taty sussurra para si mesma, exasperada. - O que eu faço com você...
- Eu não gosto de sexo, tá bom?! - Elisa parte pra defensiva.
- Como sabe disso se nunca experimentou, hein?! - Taty rebate.
Elisa engasga com as palavras, incapaz de formular uma desculpa a tempo.
- Do que você tem medo, amiga?
Elisa parece procurar a resposta dentro de si, tomando alguns minutos antes de murmurar.
- De ser abandonada...
- Uh... não é exatamente isso que tem acontecido até agora?
- É, mas pelo menos não me sinto usada!
- Usada?
- Eles me deixaram mas não levaram nada de mim.
- E o que eles poderiam levar de você, me diz?
- Minha virtude!
Taty abre a boca pra responder mas pensa de novo e bufa seu desespero.
- Nossa, então eu sou A desvirtuada, né?
- Isso não é sobre você...
- Não, não mesmo... é sobre você! Acredita mesmo nessa baboseira de se guardar até o casamento?
- Eu não quero discutir isso com você.
- Ah, mas você vai! - Taty se levanta e encara a amiga, segurando os quadris. - Um dia desses você vai arrumar um cara que vai topar "esperar" - ela desenha as aspas no ar. - Ele vai te jurar amor eterno, te convencer a casar com ele o mais rápido possível e, quando isso acontecer, vai te comer e cair fora!
O horror no rosto de Elisa deixa claro que ela nunca considerou essa possibilidade.
- E aí? O que você vai fazer? Hein? Vai ter valido a pena esperar e se guardar? Você precisa viver, Elisa!
Um silêncio pesado toma conta do pequeno apartamento. Elisa permanece aninhada no sofá, abraçando as pernas e perdida no cenário proposto por Taty.
- Essa conversa de se guardar é o que nossos pais nos contam pra tentar nos impedir de engravidar durante a adolescência! Você já tem 29, porra!
Vendo que a amiga não vai reagir, Taty se senta novamente ao seu lado e afaga os longos fios escuros da moça.
- Você não pode desistir sem nem tentar. - Ela recomeça em tom fraternal. - Sexo faz parte de qualquer relacionamento saudável. É normal os caras esperarem isso em uma relação. Não dá pra culpá-los por irem embora ao ver que você não está disposta. Na verdade... É bem melhor eles te deixarem do que te enganarem.
Como Elisa parece estar refletindo, ela continua.
- Lis, essa coisa toda sobre a primeira vez... É bobagem, tá? Não é especial, não é mágico, geralmente não é nem bom! Sexo é como... Como cozinhar! Quanto mais se faz, melhor fica.
Elisa se mexe desconfortavelmente com as bochechas rubras enquanto considera aquela ideia e Taty acaricia suas costas como quem consola uma criança.
- Pode parecer escandaloso pra você... - Ela suspira, endireitando a postura. - Mas pra quebrar essa tabu, você só precisa dar a primeira vez-
- Taty!
- O quê? É verdade!
- Você é impossível!
- Não, meu bem, eu sou muito bem resolvida, obrigada.
Elisa suspira e estica o braço para pegar mais pizza, recebendo outra eabofeteada na mão, que ignora suas queixas.
- Se entupir de comida só vai piorar seu caso. Chega!
Taty fecha e agarra a caixa e se levanta para buscar um meio de descartá-la.
- Agora levanta essa bunda flácida e faz 100 agachamentos pra diminuir esse estrago auto infligido!



- Eu acho que vou vomitar.
- O quê?
O loiro cujo nome ela nem se lembra pergunta, tentando se fazer ouvir por cima da batida eletrônica. Ela tenta fazer o mesmo.
- Eu disse que acho que vou-
Levando a mão à boca para conter o impulso, ela sai correndo em direção ao banheiro e esvazia os conteúdos do estômago dentro da primeira privada vazia que encontra. Taty não demora a aparecer em seu encalço.
- O quê foi- argh, que nojo!
Ela torce o nariz mas recolhe o cabelo da amiga quando ela ameaça repetir o ato.
- Eu te falei pra não beber demais. Você precisa se acostumar primeiro. Já acabou?
- Acho que sim.
Elisa resmunga, dá descarga e cambaleia em direção à pia.
- Nossa, olha pra você...
Elisa ergue os olhos para seu reflexo. Vestida com as roupas de Taty, que incluem salto 15 e tubinho tomara que caia, ela não se sente nada sexy com a maquiagem derretendo sobre o suor frio e olheiras profundas de desidratação. O olhar de reprovação da amiga faz suas entranhas ferverem de irritação mas ela não encontra forças para gritar de volta e a raiva se dilui em lágrimas e soluços.
- Ué, o que foi?
- Isso é loucura...
Elisa consegue murmurar apesar do nó na garganta e se inclina sobre a pia para lavar a boca e o rosto - o que só piora a condição da make.
- O quê é loucura?
- Isso tudo é loucura!
Ela finalmente explode, fazendo uma moça que ia entrando no banheiro desistir e dar meia volta.
- Olha você pra mim! O que é isso? Eu não sou você! Você não pode me obrigar a ser como você!
- Auto lá! Tudo que eu estou fazendo é pro seu bem!
- Minha mãe dizia a mesma coisa.
Essa frase tem o efeito de um tapa na cara sobre Taty.
- Toda privação que ela impôs sobre mim que você tanto critica - Elisa continua -, era pro meu bem. Já tem uns três meses que eu faço tudo que você manda e adivinha só: me vestir desse jeito não me faz sentir mais confiante... me esfregar nesses caras não me dá vontade de transar com eles... eu realmente odeio álcool e essa barulhada infernal aí fora está me dando uma baita dor de cabeça!
- Lis...
- Já estou farta de todo mundo me dizer o que fazer! Por quê as minhas decisões não podem ser o melhor pra mim? Por quê todo mundo parece ter a resposta, menos eu?!
A morena rompe em pranto novamente e sai às pressas do banheiro. No caminho, colide com alguém, perde o equilíbrio e se esborracha no chão, o que só aumenta seu nível de humilhação. Com o único objetivo de sair daquela multidão, desata as sandálias às pressas, as joga de lado e corre para a saída.

O ar gelado da madrugada a envolve como um manto, fazendo-a arrepiar da cabeça aos pés, mas Elisa não parece notar. As lágrimas rolam incessantes sobre suas bochechas, manchando de rímel tudo em seu caminho e a tentativa de inspirar só faz aumentar o bolo que a engasga, assim a jovem se inclina para frente, abraçando o próprio corpo enquanto este sacode sem pudor com seu choro.
- Você está bem?
O coração de Elisa apertou a ponto de doer. O susto foi tamanho que seu corpo saltou na direção oposta à voz que pareceu materializar-se do nada na noite solitária e, ao fazê-lo, a jovem sentiu o tornozelo e desabou na calçada gélida. Até esperava que Taty fosse atrás dela mas era um homem que se aproximava.
- Deixa eu te ajudar.
As mãos que se fecharam sobre seus braços eram mornas e ásperas. E a levantou como se não pesasse nada.
- Consegue ficar em pé?
O homem usava um terno. Elisa ergueu o rosto para encará-lo pois era ao menos uma cabeça e meia mais baixa. Contudo, como ainda não havia se recuperado do alarme, não  conseguiu dizer nada. Sob a fraca iluminação pública, notou que ele tinha a barba espessa por fazer, sobrancelhas grossas e tão escuras quanto o cabelo. Não conseguia ver seus olhos pois estavam sombreados. Ele suspirou com impaciência e o hálito fresco varreu o rosto da jovem.
- Evandro, estou com uma moça  embriagada aqui que saiu daí de dentro. Algo a reportar?
Ele disse a um rádio dentro do paletó enquanto segurava Elisa de pé com uma das mãos, sem esforço aparente.
- Nada ainda.
O homem suspirou novamente, franzindo o cenho ao olhar para a garota.
- Veio com alguém?
Mas ela parece estar em estado de choque. Ele resmunga algo incoerente enquanto coça a barba, respira fundo e tenta novamente.
- Se eu chamar um táxi, acha que consegue chegar em casa?
Nesse momento, a porta da boate se abre e Taty exclama de alívio.
- Eu cuido dela!
Elisa virou os olhos arregalados para a amiga, a familiaridade trazendo seus sentidos de volta e fazendo-a lançar-se em seus braços aos soluços.
Confortando-a em seu abraço, Taty chamou um Uber.
- Acho que ela torceu o pé.
A loira olha para baixo e exala com espanto.
- Cadê minhas sandálias, cretina?!
Como Elisa não reage, ela continua resmungando sobre como aquilo vai ter volta até o carro encostar em frente ao clube.
O segurança ajuda a colocá-la no banco de trás, fecha a porta e retorna ao seu posto.
Elisa, consumida pelo cansaço, só consegue observar enquanto sua silhueta se oculta novamente nas sombras.

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