3 - Página secreta
Gustavo estaria mentindo se dissesse que havia escutado metade da conversa dos futuros colegas de trabalho com quem dividia a mesa do bar.
Estava agitado, inquieto, de uma forma nunca antes experimentada.
Para sua própria irritação, ele se pegou várias vezes olhando para a entrada do bar, esperando que algo acontecesse.
Que alguém aparecesse.
Ora, nem sabia quem era aquela garota!
Ele a ajudara com um babaca. E ponto final. Assunto encerrado.
Não fazia sentido ficar buscando-a pelos cantos, sentindo a ilusão do perfume dela marcado em suas roupas, em sua pele.
— Tá esperando alguém? — Valentim, um dos donos do estúdio, perguntou entre um gole de cerveja e outro.
Gustavo piscou.
Nem percebeu que estava olhando para a entrada de novo.
— Não, eu... — Para desvencilhar daquela situação que nem ele mesmo conseguia entender, Gustavo checou o visor do celular. — Preciso ir. Tenho que buscar minha irmã na casa dos meus tios.
— Ela está aqui em Blumenau também? Por que não a convidou para vir beber com a gente?
— Gio quis fazer um jantar para os meus tios. E, quando ela inventa de cozinhar, ninguém consegue pará-la.
— Certo, certo. Até amanhã então.
— Até.
Gustavo se despediu de todos, pagou sua parte da conta, foi até o carro e caiu na estrada, seguindo para a região dos vinhedos.
Ali, na quietude do veículo, quase achava que podia ouvir o palpitar do próprio coração, o acelerar da pulsação, o som chiado toda vez que respirava e deixava a mente voltar para os acontecimentos daquela noite.
Não sabia qual era o nome dela, mas era como se cada detalhe seu houvesse se gravado no âmago dele.
Gustavo agitou a cabeça.
Sua pele estava quente, a camisa, apertada e incômoda subitamente.
Estou perdendo a razão. Voltar para Blumenau já está me afetando.
A garota dos olhos de mel e fogo se esvaneceu lentamente de sua cabeça conforme o vislumbre da grande Vinícola Bodini, coberta pelos tons matizados da noite, ganhou forma no horizonte.
Comprimindo os dedos no volante com um pouco mais de força, Gustavo conduziu o carro pela estradinha de terra e atravessou a cancela, com a entrada já autorizada na guarita. Pelo que notara, a segurança do lugar havia aumentado bastante desde a última festa junina dada pela família.
Mesmo foragido, mesmo tendo desaparecido do mapa, seu pai...
Ele inspirou fundo, não querendo pensar nos acontecimentos daquela festa enquanto seguia com o carro pela estrada que o levaria à casa principal da vinícola.
De última hora, sua irmã decidira vir com ele para Blumenau.
E, como era capaz de mover céus e terra por Giovana, dera um jeito de trazê-la com ele.
Gustavo deixou o carro estacionado na frente da casa e seguiu para a entrada. A porta estava entreaberta; dali, conseguia ouvir a mistura de vozes altas e risos que ecoavam pelo ambiente.
Não havia nada mais Bodini do que aquele som.
Quase se pegou sorrindo, mas os lábios permaneceram firmes.
Gustavo entrou na casa, sabendo que ninguém iria ouvi-lo anunciar sua presença. Viu os Bodini espalhados na sala com taças de vinho nas mãos; nonna Carmine, tio Carlos, tia Dora, sua irmã Giovana e sua prima Elisa com os dois filhos que ele não conseguia lembrar o nome naquele momento, por mais que tentasse caçá-los na memória.
— Meu belo bambino! — Nonna Carmine o saudou, chamando a atenção dos demais. — Ah, tão lindo quanto seu nonno!
— Nonna. — Gustavo andou até a avó e a cumprimentou com um beijo no rosto. — Tio, tia, Elisa. Boa noite. Vim buscar a Gio.
Tio Carlos apontou para uma garrafa de vinho com o popular e conhecido rótulo dos Bodini.
— Tome uma taça antes de ir. Ouvi dizer que é de qualidade — ele brincou, dando uma piscada simpática para o sobrinho.
Algo dentro de Gustavo se contraiu.
Ele não conseguia acreditar que Carlos era irmão do seu pai.
Do homem que...
Bloqueou na hora os pensamentos.
A última coisa que queria era Cláudio Bodini irritando-o no silêncio da noite, perdido no vale entre o sono e o sonho.
— Bebi cerveja com o pessoal do estúdio. Prefiro não misturar. — E olhou para a irmã. — Vamos, Gio?
— Passem a noite aqui — tia Dora ofereceu e, pelo semblante que tomou o rosto de Giovana, Gustavo imaginou que aquele convite já tinha sido feito várias vezes para ela durante o jantar.
— Obrigado, tia, mas estamos com quartos reservados na pousada.
— Na pousada "Vovó Maria", da Amanda? — sua tia indagou.
— Sim, acho que é esse o nome.
— Amanda é uma moça muito trabalhadora. — Tio Carlos balançou a cabeça. — Mas a pousada tem sofrido bastante desde o crime que aconteceu no ano passado. Parece que prejudicou bastante a clientela.
— Nem me lembre — sua prima estremeceu. — Não gosto de reviver o que vimos na pousada nem o que aconteceu na última festa junina.
Na mesma hora, as duas crianças seguraram os braços dela, como se quisessem protegê-la.
— Luca, Helena, calma. A mamãe está bem agora.
Foi só naquele momento que ele notou que Elisa não estava mais ruiva, e sim com o cabelo mais puxado para o castanho, com várias mechas claríssimas espalhadas por entre os fios.
E, como sempre, a mudança de cor sempre caía bem para sua prima.
— Já passou. — Dora colocou a mão sobre a da filha. — E nada grave aconteceu com você ou com o Cauã.
Gustavo meneou a cabeça; recordava-se de sua tia ter mencionado algo sobre o crime ou qualquer coisa do tipo que Elisa e o marido tinham testemunhado na pousada.
— Então é bom estarmos hospedados lá, não é? — Giovana comentou com gentileza. — Nossa estadia lá vai ajudá-la.
— Por isso — Gustavo deu um tom de ultimato na voz —, não se preocupem conosco. Ficaremos bem.
— Onde já se viu isso?! Família ficando em pousada! Com tantos quartos aqui na nossa casa! — Nonna Carmine balançou a bengala no ar, fazendo Elisa se mover de um jeito ágil e impressionante, aos olhos de Gustavo, para desviar do golpe.
— Nonna! Cuidado comigo!
— Humpf! Não aceito meus netos em uma pousada, sendo que aqui a casa e as terras são deles também!
Como se fosse um gladiador nas arenas romanas e sua avó, um leão que havia acabado de ser libertado da jaula, Gustavo se aproximou dela, colocando a mão gentilmente em seu ombro.
— Não queremos atrapalhar a rotina da casa, e muito menos tirar a privacidade do tio Carlos e da tia Dora.
— Privacidade? Entre os Bodini? — Elisa pestanejou, agitando as mãos com um sorriso divertido na boca. — O que é isso? É de comer?
Com o canto dos olhos, Gustavo viu sua irmã segurando o riso.
— Mesmo assim, todos aqui já tem uma rotina. E a pousada que o estúdio arranjou para mim fica mais perto do meu serviço. Não estou aqui para ficar um fim de semana, e sim por vários meses.
O olhar astuto e afiado de nonna Carmine o atravessou de um jeito que fez Gustavo sentir um calafrio subindo pela espinha.
— Ainda acho que meus netos deveriam ficar aqui comigo. Com a família. Acho não. Tenho certeza. — Ela não rompeu o olhar em nenhum momento. — Guardem minhas palavras.
Elisa simulou um estremecimento, arrancando risinhos divertidos dos dois filhos.
— Gio e Gu, tomem cuidado... A nonna acabou de jogar uma praga em vocês! É melhor trazerem as malas para cá o quanto antes.
Gustavo baixou os olhos, fitando a avó outra vez.
Esperou ver um sorrisinho nos lábios dela.
Mas os olhos de nonna Carmine continuavam aguçados e firmes.
E, inevitavelmente, ele foi assolado mais uma vez por um calafrio.
— Hã, vamos, Gio? — Gustavo se pegou engolindo em seco, ainda preso no olhar da avó. — Tenho que levantar cedo. Os testes que assistirei já vão começar pela manhã.
Sua irmã assentiu, eles se despediram do restante da família — sob os resmungos de sua avó — e seguiram para o carro.
— Você se divertiu? — ele perguntou para Giovana.
— É impossível não se divertir aqui. Nosso pai nem parece que é... — Mas a fala morreu na boca dela.
— Eu sei.
O silêncio surgiu como o velho cúmplice dos últimos anos.
A mente dele já estava quase seguindo pela trilha perigosa que o levaria para olhos de mel e fogo outra vez quando um trovão alto irrompeu pela estrada.
— Acho que vai chover — sua irmã murmurou.
— Mas o céu estava limpo até agora.
Giovana estreitou os olhos, fitando o céu através do para-brisa. Naquele momento, um raio cortou a escuridão, iluminando os campos.
— Será que isso é praga da nonna?
Gustavo balançou a cabeça, um chiado baixo escapando da boca.
— Claro que não. Vai ser só uma chuvinha como qualquer outra.
****************
Era a pior tempestade que Alice tinha visto nos últimos meses.
Ela havia chegado do barzinho há quinze minutos, e já estava correndo pela casa com a mãe e o pai, trancando todas as janelas.
— Que loucura! — sua mãe bradou. — O tempo mudou do nada!
Alice se viu obrigada a concordar.
— Falta uma janela!
— Prontinho, já fechei!
Alice também ajeitou os porta-retratos das sobrinhas, Eloá e Marina, que haviam sido derrubados pelo vento, e subiu para seu quarto, fechando a janela antes que o cômodo fosse alagado.
Assim que trocou de roupa e se jogou na cama, ela soltou o ar em um longo suspiro.
Que noite!
Não havia ingerido álcool e não extrapolara na bebida.
Tinha revisto suas melhores amigas e matado as saudades.
E tinha acabado subitamente encaixada no meio de um par de braços fortes e delineados, cujo calor da pele ainda parecia estar roçando por toda a pele dela.
— Caramba! — ela exclamou baixinho, fitando o teto.
Relâmpagos brilhantes fulguraram do lado de fora, atravessando as frestas da janela.
Quem era ele?
Havia algo familiar em seu aspecto, só que ela tinha certeza de que nunca o vira antes em toda a sua vida.
E a luz bruxuleante da entrada do bar havia sombreado parte dos traços do seu salvador quando ele a puxara em seus braços.
Céus, seu coração disparava só de se lembrar do formigamento que tomara sua pele quando aquilo acontecera; tão rápido e tão palpitante que ela mal tivera tempo de fazer qualquer outra coisa, a não ser entrar no jogo de atuação dele.
Quem é você?
Poderia ter ido atrás dele, poderia ter conversado, mas...
Estava focada demais no trabalho e na carreira.
E não abandonaria suas amigas por causa de um cara que havia acabado de conhecer.
Mas ainda era sonhadora o bastante para deixar algumas coisas nas mãos travessas do destino.
"Não vou nem saber qual é o nome da minha namorada?".
Caramba, estava se sentindo uma adolescente, fantasiando e revivendo tudo aquilo de novo.
Sabia que ele havia feito tudo aquilo apenas para ajudá-la, que provavelmente nunca mais voltasse a vê-lo, mas...
Ora, sonhar era de graça, certo?
E ninguém mais precisava saber.
Seria como nas páginas dos livros de romance que tanto amava ler.
Sua página secreta.
Alice virou na cama, abraçando o travesseiro enquanto escondia um sorrisinho perdido por entre as batidas acelerados do seu coração.
E, quando o sono chegou, ela foi levada para o mundo dos sonhos, onde sonhou com um homem misterioso, de cabelos claros e braços envolventes, carregando um ar tão intenso e elétrico quanto a tempestade que despencava do lado de fora.
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