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Capítulo XXIV: Vazremun

Uma intensa nevasca castiga a região, tanto no plano material quanto no espiritual. Aos pés da colossal cordilheira, um grupo de vigilantes se reúne. Eles parecem bem impacientes, dois deles andam de um lado para o outro.

— O que ele está fazendo lá em cima? — um sujeito branco, cabelos loiros e armadura quebrada perguntou.

— Acalme-se, Anane — Akbeel interpela.

— Eu estou calmo, Akbeel, mas parece que nosso rei tem seus próprios planos, planos estes que não deseja compartilhar conosco — Ele cruza os braços.

Os anjos encaram uns aos outros confusos. E a teoria de que Shemihazah possui outros objetivos vai ganhando força.

— Ele está certo — Armers concorda — Um de vós, suba e confronte-o. Precisamos de respostas. A ophanim ainda está viva, e ela estava nas mãos dele. Por que não a matou? Preferiu perder um olho a isso.

— Armers, não vam...— ia dizendo Turel.

— Não, Turel — o interrompe — Enquanto você e Akbeel se divertem, Shemihazah nos ignora e os arcontes de Miguel ameaçam voltar. Ele está muito estranho desde que abateu a vermelha.

— Nahemah e Mordred fugiram — Anane escreve símbolos na pedra com as mãos — Tem algo de errado acontecendo, e precisamos saber o que é. Até onde sei, isso não fazia parte do pacto. É isso que acontece quando se confia em um verme de barro e na filha inexperiente do Rei dos Demônios.

— Eu e Akbeel subiremos então — Turel dá sua palavra.

Os dois olham um ao outro e invocam suas asas, abrindo voo sobre o Hermon. A viagem dura poucos instantes e logo eles estão diante do topo. Ao fundo, Akbeel nota Shemihazah em pé observando alguns portais retangulares. Os dois caminham juntos até ele.

— Mestre, aconteceu algo? — perguntam ao mesmo tempo.

Shemihazah não responde nada e continua no mesmo lugar. Eles se aproximam mais e observam. Há 3 portais abertos diante deles. Na esquerda, um imenso portão é visto com símbolos de serpentes gravados nele, é possível ouvir sons de mordidas e corpos escamosos se movendo; no centro, um vasto oceano azul com o sol acima das águas e canções em uma língua desconhecida podem ser ouvidas; na esquerda, uma ponte de arco-íris em meio ao espaço que leva para uma cidadela dourada.

— O que querem? — Shemihazah diz, mas sem olha-los diretamente.

— Os vigias estão impacientes com sua demora, eles precisam de uma resposta — Akbeel respondeu.

— Terão a resposta no tempo certo — os 3 portais se fecham e Shemihazah chega próximo deles.

— Por que a poupou? — Turel é quem fala agora.

— Sabe, Turel, nem sempre quem sobrevive em uma batalha vence a guerra — Shemihazah ergue a mão para o Céu — Às vezes, uma guerra não é ganha no campo de batalha, mas sim no campo moral. E no campo das leis — ele toca a neve que cai sobre seus dedos — É neste campo que devemos focar.

Os dois soldados se entreolham confusos.

— O que isso quer dizer?

— Você verá em poucos instantes.

— Não temos tempo para isso, diga logo seu plano — Akbeel se irrita — Já é madrugada e faltam poucas horas para o nascer do Sol. Além disso, deixou que Auriel vivesse o suficiente para cega-lo de um olho ao invés de se regenerar.

— Isso? — Shemihazah aponta o dedo para o olho direito, onde repousa um tapa-olho — Isso não é nada. É apenas uma lembrança.

— Mas será algo em breve — Akbeel se coloca na frente dele — Nos diga seu objetivo, agora!

— Eu já disse, mas você é tolo demais para entender — Shemihazah retruca.

— Fale claramente — insistiu.

— Mais importante que vencer um inimigo em um campo de batalha, é quebrar a moral desse inimigo fora dele — Shemihazah diz novamente — Nós devemos força-los a quebrar suas próprias regras, e isso inclui o artigo primeiro do capítulo quatro do Código de Conduta dos Sete Céus.

— A especificação e punição para Crime de Guerra — Akbeel relembra — É um plano ousado, meu senhor, e pode custar nossas vidas.

Shemihazah sorri para ele. Os três andam próximos do penhasco e observam o horizonte escuro, que lentamente se torna amarelo.

— Perdemos alguém? — O Rei Vigilante coça a barba.

— Ninguém, meu senhor — Turel bateu no peito.

— Eu posso senti-los falando sobre nós, mantenham-se alerta — Shemihazah pediu — Turel, peça que os vigias se espalhem pela região e fiquem em guarda.

— E quanto a ti? — Akbeel perguntou.

— Ficarei aqui, esperando ela — o líder se afasta dois passos — Vocês cuidam dos outros, mas ela é minha. Ou melhor, o Príncipe dos Anjos é meu.

— Então não pretende matar Auriel? — Turel o encara descrente — Já que seu plano envolve sacrifício se necessário, poderia ao menos...

— Não interessa, apenas espere — Shemihazah é duro na resposta — Cuide da guarda no entorno e eu cuido de liberar o caos entre velhos aliados.

**

Enquanto os vigilantes se reuniam ao redor dos saqueadores, na mesma caverna escura e distante de antes, Periel, Zaniel e Leonardo se escondiam com Auriel, que está um pouco mais afastada.

— Miguel ainda não voltou, e pelo visto, Auriel não foi capaz de vencer Shemihazah — Léo se aquece em uma fogueira feita com magia.

— Não me diga — Periel revira os olhos deitado e com a cabeça encostada no colo de Zaniel.

— Precisamos fazer alguma coisa, e rápido — ele se sentou no chão.

— Não diga de novo.

Agora é Leonardo quem revira os olhos pela resposta de Periel. Zaniel observa a conversa.

— Não podemos depender daquele sujeito de cabelo loiro — Periel se levanta — Precisamos montar uma nova estratégia e, talvez, pedir reforços.

— Para quem? — pergunta Zaniel — Os anjos não vão interferir e você sabe disso, eles nunca interferem. Só aparecerão se já estivermos mortos, numa visão otimista.

— Às vezes, eu me irrito com ele — Periel confessa — O miserável tem poder suficiente para conter essa bagunça, mas o que ele faz? Ele some e fica brincando enquanto damos o sangue. O que custa exterminar todo mundo? Lúcifer pelo menos é me...

Zan e Léo o fitam com um olhar de advertência. Periel percebe e não completa a frase.

— Não precisamos de reforços! — a voz firme de Auriel é ouvida em meio ao breu.

Os três homens a observam se levantar, apoiando-se numa rocha. Os ferimentos dela ainda não haviam se curado totalmente, mas ela já se sentia muito melhor.

— E se tentarmos lutar contra Shemihazah com nossos poderes combinados? — Periel encosta na parede — Pode dar certo, são três contra um. Por que não pensamos nisso antes?

— É, mas ele tem o poder das rochas do caos dentro de si — Zaniel coça o queixo — Calculo que nem mesmo nós três juntos possam dar conta dele. Pelo menos, não nas nossas formas convencionais.

— Não custa tentar, não temos opções melhores, ou temos? — o potência insiste na ideia.

Silêncio toma conta do lugar por alguns segundos, até ser quebrado:

— Não vai dar certo, nada do que pensem vai dar certo — Auriel observa a fogueira — Mesmo se usarmos a forma padrão, não adiantará. Ele é muito poderoso.

— Então o que você sugere? Estamos em menor número — Periel abre os braços — Ainda há vigilantes e saqueadores lá fora, não que os últimos sejam um problema.

— Achei que eles tivessem ido embora com Mordred — Léo volta a participar.

— Não, e isso só reforça minha teoria de que Mordred roubou alguns saqueadores, assim como roubou os golens — Zaniel respondeu — Ele é o mágico mortal mais poderoso que já vi. Achei que era impossível quebrar o selo que envolve seres artificiais.

— Confirmo — Periel aponta — É a primeira vez que vejo um mágico roubar e controlar tão bem as criaturas de outro místico, principalmente se tratando de seres restritos.

— Só há uma alternativa que realmente pode dar certo, mas vocês não vão gostar — Auriel muda o assunto — É aquela coisa. Somente ela.

Periel e Zaniel arregalam os olhos. Eles já sabiam do que se tratava pelo tom de voz dela. Leonardo fica sem entender a reação deles.

— Espera aí — Periel aponta pra ela — Não me diga que...

— Sim, eu vou tentar fazer aquilo.

Um silêncio constrangedor se instaura novamente. Leonardo olha para os dois homens incrédulo, enquanto Auriel apenas ajeita o cabelo totalmente despreocupada.

— Com todo respeito, você enlouqueceu? — Periel dispara — Bateu a cabeça em algum lugar quando caiu? Ele te deu uma pancada muito forte? Não é possível que esteja sã ao falar isso.

— Isso tem muitas chances de dar errado, eu diria que em torno de 96,4% — o dominação leva as mãos à cabeça.

— Eu sei — Auriel concorda.

— Tem que haver outro jeito, você tem certeza disso? — Zaniel chega junto e toca nos ombros dela.

— Eu tenho, Zan.

— Podem me explicar o que diabos tá acontecendo? — Léo interrompe — Não sei vocês, mas eu não sei ler mentes.

Periel toma a frente e vai até ele. Léo fica de pé em frente a ele assim que o potência chega perto.

— Tá, ela não contou isso para você, então é o seguinte, garoto — ele inicia — Nós, primevos, possuimos três formas: Esta que você vê — aponta para o próprio corpo —, nossa forma celestial com asas e mais poder, mas nem tanto, e uma forma que chamamos de Vazremun, ou, A Fúria, onde um anjo libera todo o seu poder e adquire uma nova aparência — prosseguiu, sob os olhares de todos — Na forma Vazremun, um anjo perde toda sua racionalidade. Ele libera seus instintos mais sanguinários, agindo unicamente para atacar o inimigo com todo seu poder. Sua nova aparência conta com asas maiores, olhos brilhantes, mais altura e voz mais grossa e carregada. Em algumas classes, há também a presença de vários olhos pelo corpo ou pela energia que o cerca, além de rodas que o atravessam. É essa a forma que Auriel quer tentar.

— Ok, eu entendi que você perde a racionalidade, mas pode vencer o inimigo, não? — Leonardo insiste — Ou com inimigo, você quer dizer...

— Sim — Auriel complementa — Não importa se na frente dele é um aliado ou inimigo, o anjo não reconhecerá isso sem treinamento, ele apenas atacará até matar. Por isso é tão perigoso. É uma forma difícil de dominar, muitos já foram mortos nessa forma porque foram consumidos e representavam um perigo aos outros. Lembra quando te falei da luta contra Azazel em Jerusalém? — Leonardo consente para ela — Uma pequena parte de Vazremun se manifestou ali, mas não o suficiente para desperta-la, agora pode ser diferente

— É como um Deus Ex Machina — Zaniel conjura uma esfera de energia — A diferença é que o Deus Ex Machina é um recurso apelativo com 100% de eficácia na ficção, Vazremun não tem isso. É uma aposta. Pode dar muito certo, mas pode dar muito errado. E no caso de alguém que nunca treinou para dominar ela e seus instintos, a chance de dar errado é muito maior — ele joga a esfera para cima e para baixo — É suicídio.

— Como seu amor platônico disse, você nunca treinou para receber Vazremun, é loucura tentar ela em um momento como esse — Periel tenta convence-la — Auri, seu corpo não tem condições de aguentar. Você vai morrer.

— Acha que eu não sei disso? A minha vida inteira fui impedida de treinar essa técnica pelos mestres, e não por vontade própria — Auriel retruca — Estamos sem opções, Periel. Nós três irmos contra ele é suicídio.

— E você acha que isso não é? E se a senhora enlouquecer e nos atacar ao invés de Shemihazah? A chance é alta.

— Isso não vai acontecer — ela fala com uma calma irritante.

— Por quê?

— Porque vocês vão levar os vigilantes para longe de Shemihazah e me deixarão sozinha em um raio enorme com ele — Auriel respondeu — Daqui a pouco o Sol vai nascer, é agora ou nunca.

Zaniel chegou até ela e a abraçou. Auriel retribui. Eles ficam assim por alguns segundos, e ele cochichou no ouvido dela:

— Eu não posso perder você.

— Não perderá, isso eu garanto! — ela diz com muita determinação e se volta para os outros — Vazremun é alcançada através do ódio máximo, e no momento, não há nada que eu odeie mais do que Shemihazah. Ele deve me deixar com mais ódio nos próximos minutos, é o gatilho que preciso, fazê-lo me provocar, nem que menos de 50% apareçam por tempo limitado.

— E se der errado? — Leonardo perguntou — E se você perder? Ele vai matá-la diante de nós.

— Se der errado, então foi uma honra lutar ao lado de vocês.

— E lá vamos nós aderindo a essa insanidade — Periel desabafa.

Leonardo apaga a fogueira que havia feito e os quatro se juntam. Aos poucos, a ideia arriscada vai tomando forma. Por uma brecha no fundo, a ophanim nota o movimento da Lua cada vez mais baixo.

— Periel e Zaniel, atraiam para longe e ataquem os vigilantes com tudo o que tiverem, eles são poucos, vocês dão conta; Leonardo, tente criar seus próprios saqueadores e enfrente os que ainda hão no solo, lembre-se de atraí-los para longe também, preciso de pelo menos 2 quilômetros — disse Auriel — Eu fico com Shemihazah. Não vou descansar até que aquele desgraçado esteja selado novamente, ou que deixe de existir, em último caso.

— E se os vigilantes forem mais fortes que nós? — perguntou Periel – Aliás, a pergunta exata não é essa, eu creio mesmo em possíveis truques que possam fazer. Eles são traiçoeiros.

– Então tirem poder do rabo e não parem até acabar com a raça deles! — responde a ophanim, curta e grossa — Se vamos cair, cairemos lutando. Ponto final. Sem questionamentos.

Ela dispara rajadas e quebra pedras na frente, gerando uma entrada na caverna, de onde eles conseguem contemplar toda a área próxima do Hermon.

— Tenham em mente que, se falharmos, tudo o que existe e conhecemos pode ser destruído — disse Auriel — Shemihazah tem poder suficiente para isso.

— Podemos ser feridos, mas vale a pena — disse Leonardo — Mordred foi o responsável por matar minha mãe, mas se Shemihazah está por trás dele, será uma vingança.

— Tenho dúvidas se é só Shemihazah que está por trás dele, e algo me diz que não — ela o olha.

Auriel parece imaginar alguma coisa. Eles conversam mais um pouco e em seguida deixam a caverna.

— Pergunta: O que mais vocês não me contaram? — Leonardo fita Auriel ao lado direito.

— Muita coisa — Periel responde do lado esquerdo — E se eu fosse você, se sentiria abençoado por não saber tudo.

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