Jardim Sonhado Por Causa de Músicas de Bardos Delirantes - Parte I
— Contanto que entenda.
Mão no meio da testa dele, comprimindo a pele e começando a marcar o crânio. Suor e tênues gemidos escapando do moleque.
Um vampiro, Pedro. Catorze anos, íris escarlates, cabelos loiros cortados rentes e marcados por um vácuo em cima e na traseira da nuca. Membro do orfanato ''Casarão no Final da Rua'' desde que fora tirado da sarjeta junto a irmã há cinco semanas.
Os pés pendiam sobre a borda dos dedos, quase removidos do chão pelo agarro da mulher. Pouco mais alta que ele, fedendo a frescor de energia mágica e violetas.
Estavam sobre assoalho marrom polido do corredor no primeiro andar, três passos à esquerda da porta do quarto que Pedro dividia com doze órfãos.
Ela tinha um sorriso longo no rosto.
Trajava blusa de botões lilás abaixo de um quimono curto e negro. Uma das mangas vestida, a outra voando solta ao lado do tronco. O rosto jovem e harmônico e com pequenas sobrancelhas. Os cabelos escuros... e, a partir da testa, subiam dois chifres marcados com rubro na ponta. As íris eram poços sem fim no tom púrpura da malícia.
Era uma oni.
E sabia do que Pedro não poderia ter deixado ninguém saber. Do que ocorrera duas semanas atrás a pequena e despida de pais Danubia. Do que vinha ocorrendo aos abrigados mais jovens do orfanato.
O vampiro engoliu em seco.
Três passos adiante a escada ligando térreo e primeiro andar. Odor de três pessoas chegavam-lhe. E passos e vozes. Próximos, sete degraus escadaria abaixo dali.
Sua irmã entre eles. Que estivera consigo durante as surras da tia Marina, durante as idas a feira para roubar por ordem de primo Xicó e durante a tutela de Adolface.
Então os calcanhares tocaram o chão, foi solto.
Ela suspirou.
O garoto piscou. Encarou a testa livre e novamente a figura. Piscou.
E recuou três passos em um súbito espasmo de urgência. Ruidosos no assoalho marrom. Braços subindo a frente do peito e boca tomando o papel do nariz. Vermelhidão sobre a pele alva e roupa úmida de suor.
Parando ao lado da porta do quarto das crianças.
Mão caiu na maçaneta de madeira. Fitar fixo na criatura.
Cujos lábios tiveram as pontas a subir um pouco mais.
— Na verdade, não tenho certeza se odiaria caso não entendesse - ela, melodiosa e amigável. E virou-se. E andou até sumir na curva para a escadaria.
A ouviu cumprimentar Frederico, Chavier e Ana. Então descer. O pisar lançando arrepios a pele.
Os três órfãos surgiram no corredor à frente de Pedro. Ana pálida, pálpebras erguidas ao limite. Movimentos rígidos.
— Ih, ô lá! - Chavier, apontando o vampiro. - Também tá com cara de tonto!
'' Raaaa raraara'' o bochechudo gargalhou, bateu palmas e indicou um irmão e depois o outro. Dobrou ligeiramente os joelhos, deu um passo ao lado e esteve a meia mão de pisar no primeiro degrau da escadaria. ''Parecem dois bobões'' soltou e então passo a frente, riso e palmas.
Pedro o fitou. A expressão endurecendo e a postura se fazendo ereta.
Frederico avançou mais um pisar e sua íris encontrou a do vampiro. E o som cessou o sair garganta a fora. O dedo subiu e tocou o nariz de Pedro.
— Dois bobinhos...? - o bochechudo tentou, descendo o indicador pela face do vampiro. Parou no canto da boca. - Dois tolinhos...?
Frederico teve o pomo de adão a subir e descer. Medo espalhando-se pela corrente sanguínea e tendo o odor a alcançar o nariz da criatura que se alimenta de sangue.
— Não deu - concluiu.
Pedro cerrou os punhos. Presas dilataram e marcaram a boca.
— Tia La...! - Chavier, mas um tapa na traseira da nuca o parou. Alto e oco. - Da qual fo...?!
Outro.
Laís era o nome da oni de olhos lilases. Da mulher com chifres marcados de vermelho que sabia do que Pedro não deveria ter deixado ninguém saber.
As pálpebras do vampiro e do bochechudo subiram, os olhos foram a cena.
— Quieto - Ana ordenou para Chavier.
Ele abriu a boca. Mais um tapa ruidoso. Lacrimejou, a fitou. Preparou outra frase e Ana acertou-o na face, pondo a cabeça dele a girar para esquerda. Marcando a pele do garoto com carmim e a curvatura de sua mão.
O menino observou o olhar rubro da menina e o lábio tenso cuja borda direita pendia para baixo e o enrugar tenso do nariz. Silêncio, dois, três segundos. A luz delineando o escarlate, o amarelo e branco da vampira. As sardas nela como gotas de ouro. Chavier desviou o encarar para o marrom do assoalho. E pisou.
Rumo às escadas, ''Pipipipi'' solto por entre os lábios.
Ana encarou Frederico.
— Vaza - mandou, austera.
O menino se afastou com passos apressados e olhar baixo.
— Que merda foi essa? - perguntou a Pedro. Não sobre o espetáculo dos dois garotos catarrentos. Não sobre o estado pálido e tocado por rubor e ofegar do vampiro.
Sobre Laís amassando-o a testa.
— Aquela coisa sabe - falou, devagar. As mãos tremeram de leve ao lado das coxas. ''Aquilo, de todos que percorriam o orfanato, era quem menos poderia saber''.
Ana foi a porta e a abriu. A madeira rangeu pesada no assoalho, ambos atravessaram.
— Explique - pediu, fechou o cômodo e dirigiu-se à borda do quarto. Fincou os pés diante da janela no final do corredor de beliches.
Pedro explicou.
Enquanto Ana delineava o dia na rua da frente. Os telhados laranjas e os verdes e os vermelhos. As pessoas cruzando pedras e vestindo roupas xadrezes. Bêbados com braços sobre os ombros uns dos outros cantando ''E nerssa... lorcura... de dizer que num... te quero... ovro nergando as asparencia...? kkkkkk!''. Um gato negro com olhos púrpuras ia de teto em teto acompanhado de dois filhotes.
Até ele terminar. Do outro lado da via, os pequenos felinos escorregaram, caíram entre duas casas, ricochetearam na parede, e atingiram o chão. O odor do sangue atravessou a distância entre os animais e os vampiros.
As mãos de Ana tencionaram no quarto que dividia com doze órfãos. Um punhado de crianças que não batiam-lhe como primo Juventino. Que não gritavam-lhe ofensas como a amiga da mãe, Lucicreide. Que não tocavam-na como Adolface.
Era o fim daquela utopia. Do jardim que as pessoas apenas sonharam por causa de músicas de bardos delirantes.
Gelo, subindo espinha acima. A boca abriu e fechou. Virou o rosto para a cama forrada com lençóis azuis à sua esquerda. Para a porta dezenas de passos dali, fechada. O caminho ladeado por beliches vazios.
Então fitou o vermelho dos olhos de Pedro. Tensão subindo a cada músculo.
— Não tem como ela saber! Só precisamos esperar a poeira baixar e vai ficar tudo bem! - disse. Um sussurro agitado, quase alto. Uma mentira que, talvez se posta sobre o ar, trocasse de pele com a verdade.
Porque havia como Laís saber. Pedro não a dissera letra por letra o meio para tal? Não a própria Ana conhecia os rastros deixados?
Ele desviou o olhar. E ela sentiu. Cair e quebrar como um prato o que aquelas cinco semanas a apresentaram.
Agarrou a camisa de pano felpudo e branco do irmão. Sem mangas, a borda inferior descendo até quase metade das coxas dele.
— Consegue parar? - ele perguntou. Carmim contra carmim. Baixo, mas claro.
Clareza em mais que o tom. Suficiente para saber sobre o que falava.
Os dentes de Ana cerraram. As presas de Ana cresceram.
Como poderia parar?
Fechou os olhos, face pendeu para baixo. O soltou.
— Eu vou pensar em algo, prometo - Pedro, tom firme, quase reconfortante. Mas Ana captava o cheiro fluindo na corrente sanguínea do irmão. Ansiedade, medo.
Pedro deixou o quarto seguido de sua irmã.
Ajudaram a limpar o casarão, estudaram e tiveram tempo livre até a hora do jantar.
As festividades da primeira grande colheita do ano ainda ocorriam. Laís largara o orfanato ao meio dia por elas e o período passado ali tinha sido quase integralmente com cochilos em sofás, camas e cadeiras.
Pedro soltara o ar. E a tensão o fizera a ele, ao presenciar o odor da oni afastar-se no inicio da tarde. Mas ainda...
''O que devia fazer?'' Persistente, com pequenas presas grudadas à consciência do vampiro.
Até na mesa de mogno durante o jantar, noite há duas horas presente. Sentado na cadeira de madeira com a irmã à esquerda e a órfã Fran a direita. Quatorze dos dezesseis assentos eram ocupados. A cabeceira ao lado de Ana utilizada por José, proprietário do edifício, e a outra por Marlene, a governanta da casa.
Um lustre com velas acesas no teto delineava com laranja os pratos e jarros.
O copo do vampiro, Pedro, estava cheio. O de Ana, sua irmã, a dois goles do fim. Os únicos a beber sangue no orfanato. As demais refeições, dos demais presentes na mesa, variando entre metade do término a uma colherada dele.
Encarou a íris rubra da sua parente. Ela fitava a própria taça, lábios em linha tensa. Nariz ligeiramente enrugado.
Sangue de animal tem um gosto asqueroso.
Ana tinha treze anos. Conhecera tanto dos pais de ambos quanto uma criança poderia dos zero aos três. Quanto ele pudera do nascimento aos quatro. Depois um escarcéu de tios e primos e amigos dos progenitores.
Bêbados, criminosos ou ocupados.
Até este orfanato. Cinco semanas com comida e teto, sem surras ou abusos. Tremera quando se deu conta.
Era possível existir um lugar assim? A vida podia ser tão tranquila?
Não, ela estava ali. Laís com longos chifres e cabelos negros. Fitando e vendo e se movendo sobre assoalho do orfanato.
Não era um problema até agarrar sua testa mais cedo e demonstrar ciência das ações de Pedro e Ana.
O odor perturbador sob o perfume de violetas... ''poder''. Inescapável, incomparável, malicioso.
Pior. A mulher era pior do que seus antigos cuidadores jamais poderiam esperar ser. E a oni faria ser final. E Pedro teria todo tempo do mundo de antecedência para se debater sem que isto mudasse algo.
Laís amaria cada segundo do fugir, gritar e lutar dele. Sabia, era claro como a luz laranja caindo nos rostos das demais crianças.
Merda. Suor frio desceu pelas costas do pescoço. Dedos pressionando o tecido da calça. Por que não pôde manter a boca fechada?
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Já era o crepúsculo do anoitecer quando o encontrou. Em um bar, tirando do dedo a aliança e guardando no bolso.
''Que homemzinho levado'' , o estômago da oni formou algumas gotas de excitamento.
Deu um último beijo em Jéssica e pôs-se de pé. A deixando para os velhos com sacos gordos de moedas. A licantropa murmurou reclamações caricatas, esticou o braço a mulherzinha perversa a abandonando. Que ergueu a mão e balançou numa despedida breve.
Laís atravessou um ligeiro mar de pessoas por praça onde mesas pairavam. Onde um palanque era tomado hora por bandas de desafinados sujeitos favorecidos pelo álcool na veia do seu público. Hora por peças com desenrolares fascinantes desfavorecidos por mesma razão.
Até o balcão de um bar. Era atado a uma residência marrom escura, com duas colunas brancas sustentando um curto teto, e tinha os cinco assentos redondos ocupados. Por homens com copos de cerveja em punhos, as bebidas a dois ou três goles do fim.
Pousou uma mão entre o levado elfo negro e o oni que possuia chifres pequenos e pele vermelha, o comum tipo de oni. Laís colocara o corpo ladeado, frente ao de pele escura e orelhas longas.
— Paga uma para mim? - perguntou, dedos enrolando-se no vidro da caneca do sujeito. A íris azul a encontrou, varreu-a do púrpura nos olhos aos peitos sob tecido alvo, deslizou sobre as curvas do quadril e contornou as coxas em shorts escuros ladeadas pelo quimono lilás amarrado na cintura.
— Que chifrão! - o oni comum, seguido de risada. - Para que porra tão grandes, menina? Seu pai fodeu um boi?
Um leve arrepio cruzou a pele de Laís e o sorriso encurtou. A mão pairou um tanto mais firme no vidro, um sopro de parti-lo.
— São para que segure enquanto voluntariamente se coloca dentro de mim - comentou para o sujeito atrás de si. Lilás mantido contra o azul do elfo negro. Então desfilando a baixo, ao pescoço marcado por duas veias e um pomo de adão proeminente. Seguindo a camisa de botões azul escura dele, dois botões abertos, e o peitoral modesto com elos dourados da corrente na garganta caindo sobre. - Mas sua carne não soa apetitosa o bastante. Já meu delicioso amigo aqui...
O canto do sorriso subiu um milímetro e meio mais, o olhar descendo as calças do elfo. Para subir e o encontrar fitando-a na mesma região.
— U-uma bebida, certo? - ele, notando que fora notado. Desviou a face para o barista. Um humano careca com farto bigode que ergueu o indicador. A cabeça do elfo subiu para um aceno positivo.
E a mão de Laís caiu-lhe sobre a mandíbula. Antes que o descer chegasse, pondo-o a engolir em seco e encará-la de esguelha.
Imóvel.
— Acho que não precisamos dessa preliminar, precisamos? - a pequena figura demoníaca, tom melodioso. O tronco inclinou mais para frente pondo os lábios a décimo de mindinho da bochecha dele. As palavras agasalhadas em odor de álcool e lírios. - Mas sei de algumas muuuuiiito necessárias. Gostaria de ouvir sobre ou podemos pular a parte teórica...? Qual o seu nome?
O elfo não piscava. O oni comum murmurava algumas palavras a Laís e depois ao barista. Os demais sujeitos nos bancos próximos observavam com pálpebras que não ousavam descer sobre as íris.
— Romerio... e-e o seu? - ele, seguido de engolir em seco. Mão pairando acima do bolso da calça onde botara a aliança.
''Seria sua primeira vez traindo a esposa?'' Laís engoliu o riso.
— Laís. Certifique-se de gritar esse nome bem alto, certo? - a palma deslizou até a base da garganta dele, polegar moveu-se em círculos. O calor da pele élfica pondo calor a borbulhar prazeroso no corpo demoníaco. - Eu vou ficar tão triste se não usar toda força dessas lindas cordas vocais. Poderia até acabar as pondo pra fora.
Romerio riu com a certeza de quem achava ser piada. E a acompanhou para um quarto de taverna. Para pronunciar o nome dela em elevadíssimo tom várias e longas vezes.
— Sua esposa deve ser uma mulher bem grata - o dissera em algum ponto. Talvez na cama ou de pé. Ou quando era erguida por seus braços ou apoiada contra parede.
Romerio parara subitamente os quadris. Olhos azuis arregalados e tocados pelo brilho tênue e lilás da iluminação. As mãos estavam em Laís. Talvez na hora fossem nos quadris, ou na bunda. Ou eram nos pequenos seios... quem sabe na barriga.
— Ah, era um segredo? - continuara, caricata surpresa na voz. O beijou. - Oh, mas adoraria saber o nome. A aparência e do que ela gosta. Por que não nos divertimos os três em breve?
Ele voltara a se mover de súbito. Mais rápido e forte. Mandando-a calar-se, xingando-a de ''vadia'' e similares.
''Não fora de todo mal'' concluiu no breu de um quarto cujas pedras cintilantes cairam e quebraram. A ação encerrada, definitivamente depois da quinta rodada.
Desceu a mão às costas marcadas de rubro, deslizando pelos traços que suas unhas deram ao sujeito. O líquido tênue. Feridas a pouco de estancarem por completo.
''O agarrei um pouco forte demais'' soltou uma breve risada. Sobre a cama larga e com lençóis perdidos acima do criado mudo.
Ambos nus. Suados, sujos de líquidos expelidos um pelo outro.
Ela pairava sentada, olhando o escuro sobre o elfo. Tocando-o nos cortes e produzindo substâncias gasosas com cheiro de violetas sob o som do ronco do homem.
Mais um momento e começaria a pensar. ''Eu gosto, mas este é o fim, então...'' com um murmurar faminto do estômago. Um delinear perverso dos lábios. Um maligno encarar para a carne fresca.
A cama rangeu.
As pálpebras da oni subiram ao limite. O colchão no centro do quarto, flanqueado por dois pequenos e largos armários, subitamente ''real''. Assim como tudo que não Romerio e ela desde o começo do despimento de trajes.
Tinha o tronco esticado até ele, o ranger do colchão contou. ''Sua saliva também já desce boca a fora''.
Respirou fundo. Limpou a ligeira baba com as costas do punho.
''Quase''.
Parada uma mão da omoplata do elfo negro, o odor vermelho da mordida, que entregara em algum momento da diversão, hipnotizante. Mente fora um branco rabiscado por pequenos traços de forçada consciência durante ela.
''Impressionante não o ter matado sem querer''. Beijou a marca dos seus dentes entre ombro e pescoço do homem. Lambeu o sangue. E se afastou antes que mudasse de ideia.
''Prometi que manteria a boca fechada a Jurandir, não foi?''
Riu.
''Ao menos por uns dias e fingindo que o grupo de vingadores era permitido por terem atentado contra minha vida''.
Partiu ao piso do quarto, a porta do banheiro e rumo ao banho.
O sol ainda não lançava luz através da janela. Era o terceiro dia de festividades. Sobras de som e música ainda subiam. Rasos vestígios de fumaça escapavam da fogueira acesa na praça dos Vagantes.
O incidente envolvendo a morte de dois guardas e uma civil resolvido com dinheiro. E troca de favores com conhecidos influentes.
''Não que isso tenha impedido alguns pobres coitados de tentarem me matar''. A tolice deles foi bem recebida. Comera o bastante para evitar comida falante por um tempo.
Depois do final das festividades a vida seguiria seu ritmo comum. E ela voltaria a apenas decidir sua resposta sobre ''família'' e planejar sua próxima viagem.
O sorriso morreu sob o jogar do balde de água no corpo. ''Tedioso''.
Fechou os olhos. O líquido frio atiçando-lhe os nervos. ''Não... não exatamente isso''.
Os pirralhos do orfanato falavam bastante. Sobre os desenhos horríveis que fizeram, sobre o gato que viram, sobre como acharam o melhor esconderijo para vencer no ''esconde esconde''. E infinitas banalidades mais.
Também a pediam por histórias do ́'Paraíso Gelado'' no norte do continente. Ouviam, com grandes olhos esbugalhados e bocas pendendo abertas. Repetidas fossem ou não.
''E admito que adoro falar e me gabar''. Largou o balde e pegou um sabão. Retangular e rosa.
Esfregou a pele até poucos centímetros sobrarem nus. Então encheu o balde. Podia recriar substâncias líquidas e gasosas com qual já teve contato. De água a vinho. De remédios a venenos.
''Os sacos de piolho falantes e suas vozes delineando as mais estúpidas frases... participar de bobos jogos e toda essa merda''.
''Eu gosto, então por que não ter os meus?''.
Saiu do piso dois dedos mais baixo que do restante do banheiro. Pegou a toalha no cabide dourado. Esfregou o negro dos cabelos. Apenas parte da umidade saiu.
Virou de frente ao reflexo no vidro atado à parede. Naquele cômodo com perímetro de dez passadas, um desnível de três dedos para área de banhar-se. Uma estante de pedra larga abaixo do espelho, incrustada com duas pedras de mana brilhando azuis. A muda de roupas que a oni deixara ali de antemão intocada pela diversão ocorrida no quarto.
Encarou o lilás das íris. Faíscas de água descendo rosto abaixo. Toalha parada entre os chifres e sob mão esquerda.
''Então por que...?''. Não respondera ainda.
''Formar uma família?'', essa questão. Aprendera nos últimos vinte e dois dias o bastante, certo?
A imagem no espelho, com seus longos chifres marcados de carmim, a fitou. Acusadora. Conhecedora das respostas.
Porque ela mesma as sabia.
Os lábios tiveram a ponta esquerda a descer levemente. Antes de seguir.
Terminou de secar o corpo, pôs as roupas.
E saiu rumo a presenciar o fim das festividades naquela área.
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A manhã foi anunciada por Jeremaiah abrindo a porta. A madeira arrastada no assoalho em um ranger agudo.
Gritando um ''bom dia'' o anão atravessou o batente. Pisando pesado e acertando tapas sonoros na madeira das camas. Um ziguezague do beliche à esquerda ao da direita.
Pedro abriu os olhos. Devagar. As pálpebras tomadas por remela, apenas uma pequena brecha surgiu para o vermelho das íris. Para fitar as silhuetas sob ligeira luz matinal e borradas até coçar os olhos.
Os orfãos levantando, os xingando, os respondendo ao ''bom dia'' com outro.
O tapa de Jeremaiah acertou o beliche de Pedro. O terceiro e último da parede direita. E sua irmã, na cama de baixo, prontamente mandou o anão enfiar a manhã no rabo.
As cortinas foram abertas e o dia entrou por inteiro no largo cômodo.
A resposta a questão do dia anterior...
''Indeterminada''. Como uma moeda com vida e morte em suas faces. Atirada para cima. Observada em seu girar lento e agonizante.
Precisava fazê-la cair em vida, da resposta que permitiria fazê-lo.
Se pôs de pé no assoalho. E andou. A fila já tinha cinco integrantes a três passos da porta no final do corredor de sete beliches. Ana o seguiu. Passando por seis crianças divididas entre bocejar, esfregar os olhos, estar sentadas nas camas.
Magrelinho irrompeu pela porta. Pelos caramelo curtos, uma orelha faltando a ponta. A breve cauda a balançar e os passos acertando suavemente o piso.
Arrepios ergueram as pálpebras de Pedro. Ar entrou lentamente. Expandindo-lhe o peitoral, dedos de tensão a cair sobre seus punhos e antebraços.
''O cachorro do demônio''.
Chegara três semanas atrás junto a Laís. Entrando no casarão e vagando pelos cômodos. A dona para trás, conversando com José, cercada por sete das treze crianças. Seis iam atrás do animal.
Ela se voluntariou para trabalhar no orfanato. Em troca Magrelinho dormiria ali e ali seria alimentado.
O cão latia até ser seguido a cozinha e servido. Latia até ser seguido a porta da frente e levado a rua.
E mordia, levemente, as mãos até ser acariciado.
Pedro, agora, o encarou. ''Quão importante?''
''Coloco-o em um lugar distante. E ameaço dá-lo um fim''.
O pomo de adão subiu e desceu. Laís iria embora se mandasse, estando nessa situação? Pelo cachorro que corre em sua direção após cruzar a porta. Pula em cima dela, ganindo de emoção. Que a segue acima e abaixo no orfanato.
Magrelinho latiu. Parado, olhando Pedro, a duas passadas quadrúpedes dele.
''É minha vida e da minha irmã em jogo, cão estúpido''. Fitou as íris do animal. Frio vagando por seu estômago. Suor gélido nas costas do pescoço. ''Eu até mesmo mataria você se preciso''.
Fechou os punhos. Os olhos. E respirou fundo.
''Estava tudo bem. Vai tudo ficar bem''.
— O que foi, Magrelinho? - Maria Francisca, a frente do vampiro, vestindo apagada camisola rubra. Se agachou e girou na direção do animal caramelo. Pisou a frente e encarou as íris caninas. - Sei que a cara dele é feia, ainda mais com aqueles buracos no cabelo, mas também não é para tanto, né?
''É o quê?!''. Uma veia marcou a pele da garganta do rapaz. Cruzada por ímpeto violento. Erguendo-lhe as pálpebras.
Punhos abriram e tornaram a fechar. O pé descalço pressionou mais firmemente o solo. A larga camisa cinza balançou. Partículas de energia mágica deixaram a pele do vampiro.
O puxar de ar cessado.
Até a nuca ser acertada por um tapa ruidoso. O tronco pendeu para frente e os braços balançaram em busca de equilíbrio. Curta, breve e rapidamente.
— Você é idiota? - Ana, firme. As fagulhas vermelhas quase totalmente cobertas pelas pálpebras. Fedendo a irritação.
As outras crianças riram. Jeremaiah riu. O cachorro correu até a ponta do quarto e voltou.
Pedro respirou fundo. Rosto virado de lado. Olho encarando de esguelha o olho da irmã.
''Não faça besteira'' quase podia ler no semblante sonolento.
Então outro tapão. De outro ângulo, de outra pessoa. Gritou um ''Ei!'', virou-se para o riso de Frederico.
Já se afastando de Pedro. Bochechas balançando. Os saltinhos ressoando no assoalho amarelo até a porta. ''Rararara'' escapando, indicador rumo ao vampiro.
Que o fitou. Íris rubras do reflexo prévio do vermelho nas veias de Frederico. Pondo a coluna a subir. Pairar próxima de estar ereta.
Genésio, Neuza, Vanderleia, pisaram para o canto direito. Em seus pijamas feitos de camisas e camisolas grandes demais. Genésio de pés descalços. As meninas usando pantufas rosas e felpudas.
O sono caindo face a fora. Sob o erguer máximo de pálpebras, o pender aberto de bocas.
Aroma de medo subindo e impregnando o quarto. O nariz de um vampiro era perfeitamente capaz de farejar. Tão naturalmente quanto um humano sente o odor de perfumes, comida e lixo.
Pedro entregou um passo adiante. Presas dilatadas escapando por entre os lábios. O ar puxado mais amplamente.
Jeremaiah correndo com pisadas de pernas curtas e sonoras. Odor de ansiedade vindo em fio do anão.
Frederico prendeu a respiração. E começou a girar rumo a saída.
A mão de Ana subiu rumo ao ombro do irmão. Alcançou vento. Ele movera-se. Dando aos olhos e boca dela torções gélidas de tensão. Pôs passos atrás dos passos de Pedro. Calçada com acolchoadas e rosadas sandálias felpudas.
Até os vampiros captarem o cheiro de violetas. Sobre vestígios de álcool e sangue amargo de demônios. E poder, fresco, pondo menta a soar seca em comparação.
Então congelarem. Ana e Pedro. Jeremaiah alcançou-o e segurou-lhe o pulso. Frederico sumiu para o corredor.
O cachorro disparou para fora do quarto.
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— Oh, está bem enérgico, não está? - falou, parada enquanto Magrelinho a circulava. Cauda do cão balançando e latidos e saltos pontuando a movimentação. - Tão esperto!
Laís se agachou. O cachorro parou a sua frente, sentado.
A oni abriu os braços e Magrelinho avançou. Chocando levemente a cabeça contra o ombro dela, então pousando o maxilar sobre.
A mulher riu.
— Que garoto esperto! - e o envolveu num abraço. Esfregou a bochecha na dele. Magrelinho raspou-lhe a orelha com a língua. Ela afastou o rosto. ''Ugh'' seguido de risada e afagar da cabeça do animal.
Pôs-se de pé. Estava dois passos casarão a dentro, diante um vácuo de sete a larga escadaria que leva ao andar de cima. Um aglomerado de degraus ladeado por dois corredores e duas entradas. Esquerda reto levando a cozinha, direita reto levando a porta dos fundos. A entrada virando a direita conduzia ao escritório do proprietário e a esquerda aos banheiros.
O cão encarou ela por dois segundos. Virou a face rumo ao corredor do lado esquerdo das escadarias. Depois de volta ao lilás da oni, latiu duas vezes.
E disparou para a cozinha.
— Ei, começo a achar que me vê como um saco de ração falante! - comentou. Fitou o caminho sobre placas de madeira pintadas de laranja. Entre parede marrom e base de escadaria. As palavras repetiram-se em sua mente.
Desceu a palma no espaço entre os olhos.
Gargalhou. Breve e alto. Deslizou a mão até a boca, então a baixou.
''Que hipócrita da minha parte reclamar disto''.
O pisar fez-se ouvir no andar de cima. Pequenos pés acompanhados de ruidosas vozes. Um ou dois causando barulho.
A primeira face surgiu na escadaria. Na... na? Não realmente se recuperara da ressaca o suficiente para lembrar. Acenou e a garota começou a descer as escadas. Descalça, sob camisa amarela que descia até a altura dos joelhos.
A criança chegava na metade do percurso e Magrelinho voltava a oni com as patas curtas quase deslizando no piso.
O cachorro parou na frente dela, observou a mão de Laís descer sobre si. Latiu, pulou para direita, ''Ei'' ouviu da dona da mão pairando no ar, latiu. Avançou aos dedos de Laís e mordeu por um momento. Depois partiu a cozinha velozmente.
Indiferente aos chamados do demônio.
— Maldito interesseiro! - a oni, caricata. Punho erguido fechado ao ar. - Farei uma cruzada santa por seus lanches, maldito!
Então riu e tornou o lilás das íris a menina.
A licantropa terminara de descer. Tinha traços de raposa, a cauda balançava enquanto avançava sobre o piso. Fitando o demônio com castanhos olhos incapazes de ver a trilha de corpos. Independente de fisicamente estarem ali, alguns indivíduos eram capazes de dizer. ''Essa pessoa matou ninguém, esse matou pouco, aquela consideravelmente e esta... é o próprio avatar da morte!''.
Laís baixou as pálpebras e ergueu as mãos as laterais.
A garota pulou. Os braços enrolaram-se no tronco da oni. Que afagou-lhe as orelhas alaranjadas. Perguntou se estava comendo bem para não virar uma adulta baixinha que nem ela.
— Um montão! - a criança respondeu. Erguendo a face para fitar o lilás do olhar da oni. Queixo apoiado acima do umbigo de Laís. Sentindo o tecido da camisa branca, do quimono lilás. Do short amarelo.
— Haha, muito bem! A meta é ter dois metros de altura e peitões!
Outros pirralhos chegaram nove segundos depois. Os cumprimentos levaram sete minutos, treze idas e vindas de Magrelinho.
O dia progrediu em um escarcéu de banalidade. Como todos os dias até ali. Como todos os dias fariam após ali. Nem mesmo a morte poria algo diferente na mesa.
Era irrelevante. Tudo aquilo, tudo que não era aquilo. Existe algo relevante?
Talvez o fim roubasse o valor das coisas. Quanto a eternidade...?
Uma bebida formidável é tomada devagar. É posta em superfícies planas e longe de quedas. É segurada com dedos firmes e dedilhada pela língua.
Se eterna, seria derramada litros para cada gota bebida. Esquecida em armazéns depois de algum tempo.
Seria indiferente, perpétua ou não, ao que quer que cerque.
Terminada, abandonada, desdenhada. O quanto dura não interessa. Está presa à irrelevância.
''E então, qual a resposta?''
Insignificante, portanto aproveite. Aproveite o passageiro, aproveite o eterno. Sinta o paraíso em qualquer banalidade que preceda o ponto final.
— O que você sabe? - a vampira perguntou. Sentada a um esticar de distância. No canteiro circular de uma árvore com treze metros.
Central no jardim de perímetro redondo. Amplo, com jarros de flores e árvores pequenas próximas às paredes.
Fedendo a flores. Ao suor das crianças correndo de um lado ao outro. A Magrelinho acompanhando-as e latindo.
O lilás moveu-se na direção da pirralha.
Loira, olhos escarlates voltados para baixo. Ao piso branco com estampa de flores negras. Enquanto dedos afundavam-se na saia. O peito subia e descia lentamente. O assobio da respiração escapando do abafamento feito do som das demais crianças.
Lais teve a boca a pender em um ''o'' por um instante. ''Ela lia minha mente?'' passando pela cabeça momentaneamente. ''Se sim, ela sabe coisas sobre sexo e homicídios das quais uma criança deveria se manter ignorante''. A mente da oni passeava por corredores obscuros em momentos de tédio com as crianças.
Como aquele. Enquanto brincavam de pega pega.
— Olha... - engoliu em seco. Ergueu um dedo. Íris tornadas a frente, onde o cachorro corria atrás de Frederico. Uma gota de suor descendo pela têmpora. - Certas coisas são só para quando for adulta, entendeu? E outras... só se for uma adulta bem forte como eu, certo? Então... só pense sobre quando tiver uns... dezesseis? Vinte e dois?
A pirralha a fitou. Olhos semicerrados, boca ligeiramente aberta.
Laís a encarou de volta. Quieta.
A frente Maria Francisca agarrara Magrelinho. Ele se contorceu e girou. A menina acompanhou o movimento. Mãos no quadril do animal. Chavier disse que era uma tonta. Nana, nome correto Namaria, avançou e agarrou Maria Francisca pela bunda, berrando para que soltasse o cachorro.
Os demais pirralhos formaram um círculo ao redor. Pedidos de pare, risadas e olhos atentos.
— Só por curiosidade... - a oni começou, fitar no vermelho acima das sardas e ponta do nariz da vampira. Tom quase murmurante. - Você pode ler mentes?
— Quê? - a resposta da criança. Ana, o demônio lembrou, irmã do outro vampiro... qual era o nome mesmo? Pe... Peter? O menino levando um punhado de palavras duras do diretor mais cedo. Por comportamento violento... mostrar as presas rumo a outra criança. Ao bochechudo.
O som do escarcéu adiante ecoou só. A luz da tarde descia pelo teto aberto do jardim. Brisas frescas punham os dedos na matéria. Derrubando folhas, balançando roupas e cabelos.
A oni voltou o olhar a bagunça. Ana desviou o olhar para os jarros de girassol na parede esquerda.
O dia seguiu seu curso para o lanche do final de tarde. Oni e vampira passaram sem trocar mais palavras.
Ponha isto em uma escala menor. Esqueça que existe um universo, que a vida nesta rocha existir ou não é vazia de significado. Você sabe agora só sobre ser um pedaço de carne e nervos. Que se importa em comer, copular e prolongar a própria vida.
Desse jeito, é possível. Desse modo um monte de coisas tornam-se relevantes. Até, com algum esforço, dignas de estresse e dor.
''Mas é difícil. Há um ponto final e um silêncio sobre ele, um desdém vindo de tudo ao redor dele''.
Levou o sanduíche à boca. Mastigou, saboreou o tomate e o queijo e o pão.
''E isso tem gosto de merda''.
Deixou o lanche cair para o chão. Magrelinho o abocanhou a centímetros de acertar o assoalho.
''O que eu faria quando me entediasse dessas crianças? E a perversa ideia batesse na porta?''
Se nada tem valor, se aproveitar é o caminho. Só há uma resposta.
''E é ela que me diz: por isso não deve formar uma família''.
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O paraíso fora mostrado pelo demônio. Outro que não Laís, um sem chifres ou presas. E ao tocá-lo os pés afundaram, os joelhos afundaram e, Pedro percebia hoje, todo resto estava prestes a afundar.
Também notou, agora, outra coisa. Não era o paraíso entre seus dedos, era um dourado diferente. Doentio, viciante.
Vermelho.
— Eu não sei... - Ana, pesado. Pondo a moeda a pender a face da morte.
''Como você não sabe?!''. Um pedaço do vampiro gritou com fogo a escapar pela boca.
''Você não perguntou a ela?!'' Estrangulando a irmã em um devaneio. Um sonho acordado.
No desperto e físico...
Suspiro. Virar para a mangueira no canteiro central do jardim. Pondo as costas rumo a Ana. Mãos na cintura. O olhar subindo a fruta verde no ramo mais baixo.
A planta tinha treze metros. Com dezenas de galhos formando um topo irregular e triangular. O perímetro da sombra, com luz caindo reto sobre, era de dois metros.
— O que vamos fazer...? - ela continuou.
O peito de Pedro subiu e desceu. E repetiu. Respirando ruidosamente. A carne da cintura queimando sob a tensão dos dedos.
— Ela gosta do cachorro dela, certo? - começou, o tom tocado por leve tremor. - Amanhã... iremos trabalhar nas barracas das feiras? Todo o orfanato e funcionários... faremos amanhã.
Silêncio sob o crepúsculo do anoitecer. Levar o cachorro para longe enquanto o outro faz a ameaça. Laís iria embora e o lar seguiria sem problemas. Primo Xicó não afugentara a vizinha, que ameaçava o denunciar, daquele modo? Prendendo o gato dela até a velha se mudar?
Forçou um sorriso. E fitou Ana por sobre o ombro.
— Vai dar tudo certo! Depois de Adolface não há nada que possa dar errado! - forçou uma risada.
A expressão no rosto da vampira era tensa. Os cabelos loiros e curtos tocavam os ombros. Vestia azul, longo tecido azul sem mangas. Simples e reto.
Lembrava a mãe. Costumavam dizer a eles. Pedro tinha vagamente os traços da progenitora na cabeça. Uma Ana mais alta e com mais olheiras e linhas de expressão.
''Quanto disso é uma lembrança mesmo?''. A imagem não tinha voz, não movia-se... e quando o fazia tornava-se Ana por completo.
— Não é melhor deixar quieto? - Ana. ''Esperar?'' Pedro ouviu, arrepios erguendo-lhe os pelos. Pondo o corte que Lucicreide o dera no centro e traseira da nuca a arder. - Se ela não souber de nada...?
As mãos da menina apertando o vestido sobre as coxas. O cheiro do medo sob o das flores.
— Vamos só...!
''Esperar?!'' o vampiro teve as presas a dilatar. A fazer sangrar o lábio inferior.
''O que Adolface nos ensinou sobre esperar, sua pirralha burra?!''. Girou para encarar a face tomada por sardas de Ana. Punhos cerrados. Pés com dedos pressionando as placas de pedra do jardim.
''Fica mais assustador a cada vez que deixamos para a próxima vez!''. ''E aqui e agora, quando o problema vier, será único! Um único ponto final colocado em nós!''
Andou até ela. Rápido. As sobrancelhas da vampira mal terminaram de erguer-se em surpresa. E a mão de Pedro abriu, subiu. A palma delineada por sutil iluminação alaranjada. E desceu.
O som seco de carne contra carne subiu entre fileiras de flores. A frente da mangueira no canteiro central. Na área aberta ao fundo do orfanato.
A cabeça de Ana pendeu a direita. Olhos rubros esbugalhados. Boquiaberta.
Vermelhidão surgiu nos locais de impacto. Mão dele, rosto dela.
— Ela viu a marca em Namaria e...! Essas crianças são burras! Tem sete, oito! Podem ter dito algo...! - Pedro vociferou.
Ana girou o rosto devagar de volta ao centro. Um fiapo de sangue deixando os lábios. Punho cerrado. Presas dilatando.
— Que merda foi essa...? - perguntou, baixo. Apenas um ligeiro toque de hostilidade no tom. Enquanto fitava o carmesim nas órbitas do irmão. Na expressão marcada por linhas tensas e sardas.
— Tia Marina tinha razão... - Pedro murmurou, olhar fixo. Músculos faciais quase imóveis. A sombra da noite caída sobre o pátio. Ventos sussurrando com um grau a menos. - É difícil segurar a raiva quando a coisa está feia.
O odor veio primeiro. Sob as rosas, margaridas e lírios.
Raiva.
Ana socou ele. Acertando o osso do maxilar. Fazendo seu irmão fitar o lado esquerdo do jardim onde margaridas pairavam.
Pedro bambeou para trás. A dor espalhando-se pela região do queixo. A batata das pernas encontrou o canteiro. E então a bunda atingiu o concreto frio.
— Que se foda você e a tia Marina - Ana falou.
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— Você o quê?! - Jéssica falou em um quase riso. - Que malvada! E ele?
— ''Calada, vadia'' e então continuou a meter como quem queria me partir no meio - contou e gargalharam. - Se soubesse teria o provocado com aquilo mais cedo!
— Pobre elfo! Pretende encontrá-lo de novo?
— O Rome...valdo? Bom, não importa... ele adormeceu em um torpor meio bêbado, chorando, dizendo que era um merda e que Luci, a esposa provavelmente, não merecia aquilo. Não acho que o verei sem aliança tão cedo...
''Deveria ter o comido'' a ideia assaltou-lhe. No breu manchando por velas queimando, calor tocando-a sobre o calor da mulher bagunçando seus cabelos.
Estavam em um quarto de bordel. Cocobambu que fora fundado por um membro da tríade do ano oitenta, a cidade nascida por mãos licantropas possuía sempre três governantes.
Atualmente Enzo, Cirilo e Danúbia... como a pirralha que morrera no orfanato. Embora Jurandir e Maria houvessem começado a estagiar para substituir os dois últimos.
Os homens lobos eram escravos até Semiramis, pessoa, romper seus grilhões. Livres construíram a maior metrópole do continente, reunindo desajustados e mestiços de todas as raças e lugares trezentos e treze anos atrás.
''Que tipo de louco doentio imaginaria isso dando certo?''. Manter a paz e o desenvolvimento de um emaranhado etnico das sobras de tantos povos? Sob tutela de ex-escravos com feridas da servidão ainda frescas?
''A realidade em Semiramis seria motivo de troça se contada em qualquer lugar antes de se tornar o que é. Seria chamado de utopia e passada por bardos bêbados a sujeitos embriagados''.
— Vez ou outra vejo alguém assim. Um homem ou uma moça que se arrepende depois que termina de ejacular. Uns voltam, outros não. Os dois tipos saem igualmente perturbados. Igualmente a vociferar seus pesares, suas promessas. O quanto o cônjuge é maravilhoso e indigno da traição - Jéssica comentou, traços de dureza tocando o timbre. As coxas ligeiramente mais tensas.
— E? - Laís, fitando a barriga enxuta da mulher. O castanho da cor quase feito bronze pela luz.
— E eu detesto cada maldito adultero que contrata meus serviços.
— Inclusive Al Calvone?
Jéssica fez silêncio por um instante.
— Sim... sei que foi por sua influência... mas... - suspiro. - Mudemos de assunto, sim?
''Deveria?''. Enveredar nos pisos frágeis da psique da licantropa, conhecer seus medos e saber que tipo de terror abala-a.
A sugestão disto quase fez Laís pôr a licantropa entre suas pernas de novo. Para lamber até o findar da umidade. Até manhã e noite trocarem de lugar, monstros e deuses caírem em esquecimento e músicas sobre o infinito mar e a mulher incumbida de bebê-lo cruzassem o continente.
Mas deixaria Jéssica em paz por mais três dias.
''Depois, então, minha adorada carne falante terá menos consideração pesando a seu favor''.
Em seus cabelos longos e castanhos. Levemente ondulados, amarrados numa trança longa a cair até meio dedo da base da coluna. Curvas explícitas, bunda redonda. Barriga com marcas de músculos suaves. Tatuada com joias de diferentes cores e formatos. Que desciam das costelas esquerdas a beirada do sexo.
''E um rosto de traços austeros que destoa de seu humor leve. Uma obra de arte, não é? O mais belo prato gastronômico já feito''.
— E quanto aos piá?
— Piá? - repetiu. Qual era o assunto da conversa mesmo? Não era carne, era? A oni estava com cabeça sobre as coxas da licantropa.
— Piá - Jéssica.
Fechou os olhos. Grudou os lábios na barriga dela que gemeu de leve. A força da mão no cabelo da oni aumentou.
Laís parou e voltou a encarar a carne de Jéssica. A mulher comentou algo sobre ter sido tão súbita.
Até a oni falar, devagar.
— Os catarrentos... - começara, a licantropa fez silêncio de súbito. - Continuam tão estúpidos, barulhentos e sujos como sempre foram.
Jéssica sorriu.
— Ah, é? O que foi dessa vez.
— Não me deixaram dormir. Fui de cômodo em cômodo, mas bastava fechar os olhos para um saco de piolho falante me dizer que achou um besouro enorme. Ou perguntar se quando alguém segura a bola que acertou um deles, o acertado não foi queimado. Se é ''biscotchu'' ou ''biscoito'' .
Jéssica riu.
— Sempre me surpreende o quanto os piá gostam de você.
Laís fez uma caricata expressão de desdém.
— Como algo vivo poderia resistir aos meus encantos? Às vezes até pedras assobiam sob minha passagem.
— Vai mesmo embora em três dias? - a licantropa perguntou a pergunta.
Aquela que já respondera. A Jéssica, a si, ao cachorro com orelha ruída e pelo caramelo.
Para evitar o futuro provável de por um moleque ou outro no menu. Não diria não se o desejo batesse junto a perda do interesse neles.
Prometera nunca dizer não. ''Se arrependa de ter feito, não do contrário''.
Se afastar era melhor. Checar as novidades na metrópole dos anões. Olhar as embarcações mais modernas. Os livros recém escritos.
— Para mim parece que tem o bastante de autocontrole - Jéssica comentou, quebrando o silêncio de treze segundos.
Laís abriu a boca por um instante. Estava deitada de barriga para cima, nuca sobre as coxas da mulher. Lateralizada em relação a ela. A cama larga era iluminada por dois candelabros. Um no criado mudo da esquerda e outro no da direita.
O lilás da oni fitava os largos peitos desnudos de Jéssica. Voltou o fitar para o lado. Seguiu para o ligeiro espaço entre as mamas. Depois acima e a baixo.
O rosto da licantropa estava fora de alcance.
Laís suspirou.
— Essa não é a questão.
Breve riso escapou da mulher. A pele coberta por curta pelagem marrom. Coxas servindo de travesseiro a oni, os dedos indo e vindo no cabelo negro. E os da outra mão deitados sobre a barriga branca do demônio.
— Está com medo de machucar os piá. Mas acho que não vai. Não é exatamente essa a questão? - Jéssica.
— Ceeerto, oook - Laís respondeu com tom caricato de sonolência. Bocejou e pressionou o mamilo dela por um momento. - Mas não é medo.
O quarto fedia a maracujá. Álcool. As duas ali.
Permanecia escuro nas extremidades. Chamas iluminando a cama e um pequeno pedaço do piso ao redor.
— Hihi, não precisa ficar envergonhada. Tudo bem ter um coração nesse corpinho perverso. E ter medo de machucar alguém.
Lábios tensionaram. Agarrou a cauda lupina de Jéssica. Era a sétima vez que ficavam. Em troca de remédios e bebidas caras a licantropa cedia sua noite a oni.
Um velho acompanhado de dez homens reclamara na terceira ocasião. Em nome do sobrinho. A resposta entregue por Laís foi matar oito dos sujeitos que trazia e privá-lo do olho esquerdo.
Então o convidar para se unir a elas.
Quarenta e sete anos, casado, pai de três meninas. Chefe de uma organização criminosa em ascensão desde que os Chei de Sal foram eliminados. Tinha cabelos ralos grisalhos e um bigode curto. Voz fina, barriga proeminente.
Al Calvone, líder da Chique Traje.
Ele tremia no chão, gritava a agonia nos nervos. Acabara de perder um olho e oito homens. A oni fizera o convite naquele momento. ''Quer brincar em três?''. O homem cerrou os lábios. A íris azul encontrou as lilases do demônio.
''Não''. Quase firme, quase alto. Em poça de sangue. Sozinho com conhecidos cadáveres e inconscientes.
Laís sorriu, agachou. Pôs o rosto a sete centímetros do dele.
''Ah, havia algo ali. Algo que poderia ser mais saboroso mais tarde''. Quando o sujeito traísse a esposa. Quando deixasse de dar atenção às filhas. Quando, em portas da morte, não tivesse forças para não implorar pela vida.
O curou. O seduziu. E deixou que os passos encaminhassem-se ao fim devaneado.
Viera a buscando para comprar afrodisíacos há sete dias. Todos desde o ocorrido. E as prostitutas e prostitutos em pouco tempo já o reconheciam à distância.
Al Calvone estava quase pronto para ser devorado.
— Não é medo... - fechou os olhos. O quê então? Respirou, lenta e devagar. O polegar fazendo pequenos círculos na cauda de Jéssica. Nuca afundando nas coxas macias e felpudas. - Eu não sinto vontade de machucar os sacos de piolho agora e não quero sentir essa vontade depois. É... hmmm... - ergueu o indicador. Forçou sorriso. -''Não medo'', no mínimo.
Gargalhada subiu. Da licantropa.
Laís fitou os peitos dela pairando sobre sua cabeça. Balançavam, pendiam para baixo e cima. Encostavam ligeiramente em seu nariz e chifres.
Quieta. Envolta no calor do corpo da licantropa. No pelo curto, no som do rir. As pálpebras pesavam. Os músculos jogados e imóveis no colchão.
— Você tem um coração, é só isso - Jéssica, tom tranquilo. A mão descida a testa da oni. Movendo os dedos firmemente.
Laís lembrou de rostos contorcidos por dor, de gritos, de lágrimas. De sorrir, de sentir prazeroso calor sob eles.
As pálpebras do demônio ergueram-se ao limite. Os músculos enrijeceram. Partículas de energia mágica deixaram o centro do corpo.
Pelos da licantropa arrepiaram. As pernas remexeram-se tenuemente, gota de suor frio desceu pela têmpora.
As chamas dos candelabros dançaram, reduziram e apagaram.
— Não - Laís respondeu, fria. No ambiente tomado por breu soube com certeza. - Não é o caso.
E, para um teste, findou Jéssica. Pondo para dentro toda gota de sangue, carne e ossos dela.
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