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Capítulo XXII - Francês

O almoço na casa de Helena estava sendo, de fato, constrangedor. O clima estava silencioso e engraçado. Os dois amantes soltavam risadas discretas da situação a todo momento; a dona da casa e sua hóspede os olhavam com reprovação e teciam comentários um pouco ácidos; Sebastian, coitado, nem se quer entendia o que estava acontecendo.

– Helena, o almoço está maravilhoso. – Elogiou Vitória. – Há muito tempo não como Confit de pato.

– Um prato francês para prestar uma homenagem aos teus hábitos franceses. - Respondeu Helena, murmurando.

– Ah, Meu Deus do céu. – Vitoria revirou os olhos e riu. Benício também.

– O que isso quer dizer? – Perguntou Sebastian, com seu sotaque pesado e jeitinho simpático.

– É melhor não saber, Sebastian. – Respondeu Vitória.

E, baseado nesse clima de indiretas e descontração, o almoço prosseguiu calmamente. Helena e Marieta não estavam verdadeiramente furiosas, mas sentiam-se no direito de descontar a própria irritação nos dois; elas tiveram a ideia de juntá-los justamente por acreditarem na semelhança de seus jeitos e complexos e, no fim das contas, eles sucumbiram ao mais típico traço de suas personalidades.

Acabado o almoço, estavam na sala conversando enquanto bebiam o champanhe de domingo obrigatório de Helena.

– Então, como foi o voo ontem? – Perguntou Marieta.

– Incrível. Estou com vontade de abandonar as pistas e me tornar aviador. – Respondeu Benício, animado, em tom de brincadeira.

– Benício, não me mate do coração, pelo amor De Deus. – Suspirou Marieta, colocando a mão no peito.

– O que acharam do chalé de caça? – Questionou Helena, maliciosamente.

Benício e Vitória viraram a cara e arregalaram os olhos.

– Sebastian, meu caro, soube que compraste um carro novo. – Comentou Benício. – Gostarias de me mostrar?

– Claro! – Respondeu Sebastian, animado. Não estava entendendo mais nada daquela conversa na sala mesmo.

Benício e Sebastian levantaram-se para sair. Vitória olhou, fulminante, para Benício.

– Lachê¹. – Resmungou Vitória, em francês.

– Je te dois des excuses plus tard, Docteur². – Respondeu Benício, baixo, enquanto saia para a garagem com Sebastian. Vitória curvou os beiços e franziu o cenho em surpresa ao escutá-lo falar francês.

Marieta e Helena encaravam Vitória como duas esfinges.

– Querem parar com isto, as duas? – Reclamou Vitória.

– Querem parar, os dois safados, com esta safadeza? – Rebateu Helena, sorrindo sarcasticamente, como sempre.

– Lá vem... – Vitória revirou os olhos e suspirou.

– Agora ficam se comunicando em francês. Olha, francamente, arrumem um quarto.

– Podemos arrumar. O teu serve? – Ironizou Vitória.

– Meninas, parem. – Interviu Marieta. – Vitto, querida, não queremos brigar, apenas ficamos um pouco surpresas com... Bem, com isso tudo.

– Eu sei, querida, é que Helena gosta de me punir pelo grande pecado do sexo pré-marital. – sorriu sarcasticamente.

– Fale baixo, as crianças! – Repreendeu Marieta, vendo as crianças brincarem do outro lado da sala.

– Eu não estou punindo-lhe. Quem irá punir é a vida quando olhar para trás e ver todos os homens que desperdiçou por não aguentar manter as saias abaixadas!

– Para tua informação, eu estava de calças!

Marieta olhava confusa as primas discutirem. Elas pareciam sérias e falavam de maneira áspera, mas era difícil dizer se estavam mesmo brigando ou apenas trocando farpas de brincadeira.

– Não creio que não deste uma chance para ele, coitado.

– Ah, mas eu dei... Dei bem mais que uma chance. – gargalhou.

Marieta corou de nervoso ao ver as duas gargalharem daquela piada obscena. Virou sua taça de champanhe inteira e, prontamente, a reabasteceu.

– Estou falando de uma chance de verdade, Vitto!

– Não quero casamento, Lena!

– Por que não queres casar, Vitória? – Perguntou Marieta.

– Tenho muito o que fazer ainda, querida. Acabei de assumir uma empresa, quero ingressar na Academia Brasileira de Ciências e provavelmente passarei a lecionar.

– O quê? – Helena e Marieta olharam para Vitória, boquiabertas.

– Coisas que saberiam se não estivessem fissuradas em me arrumarem homem.

– Lecionar? O que lecionará, Vitto? – Perguntou Marieta, intrigada.

– Fui convidada pela Associação Brasileira de Educação para dar aulas de História Natural, Biologia e Antropologia em cursos populares, assim como minha mãe fazia. – Respondeu Vitória. – Quero, daqui a uns anos, poder lecionar na Universidade.

– Não sabia que mulheres podiam lecionar na Universidade. – Confessou Marieta.

– É como o voto, querida, tecnicamente, não há o que nos proíba. A única coisa que nos impedem se chama homens.

– Fico muito feliz por ti, Vitto. – Disse Helena, de maneira doce, contrastando com o seu tom de deboche anterior. – Nós apenas queremos lhe ver feliz.

– Ah, meninas. – sorriu – Eu estou feliz. Estou vivendo em uma cidade que amo, onde nasci, perto da minha família e construindo um futuro promissor para mim mesma. Não há nada que eu deseje mais que isso.

– Sabes que nada disso é desculpa para ficares encalhada, certo? – Disse Helena.

– Encalhada? Meu amante está no teu quintal neste exato momento, Helena.

– Amante... – Murmurou Marieta enquanto se afundava em mais uma taça.

– Exato! Um amante que deveria ser um pretendente!

– Ele não pode ser um pretendente se não pretende nada! Benício é ótimo e eu o adoro justamente por não me encher a paciência com planos e expectativas. Podem, pelo amor De Deus, parar de esperar muito de nós?

– Pois bem, prima. – suspirou – Estarei lhe aguardando com um belo "Eu te avisei" quando aparecer bêbada e aos prantos pelo piloto porque preferiu atropelar tudo ao invés de seguir a ordem correta das coisas e fisgá-lo de uma vez.

– Obrigada, prima. – sorriu sarcasticamente – Conto contigo para consolar meu coração após nosso último rendez-vous³. Pelo menos agora poderá alentar-me pessoalmente e não por cartas. – riu.

– Claro. – revirou os olhos – Mas, por falar em rendez-vous... Benício, hein, ele é... Bom? – sorriu maliciosamente.

– Trés bien. – Respondeu Vitória, rindo.

– As duas, parem de falar assim! Pelo amor De Deus, é meu irmão! – Exclamou Marieta, soando alterada pela bebida. Helena e Vitória caíram na gargalhada, já sem vontade de trocarem farpas desnecessárias que resultariam em coisa alguma.

A tarde seguiu mais tranquila após algumas garrafas de champanhe e uma conversa sincera entre as três. Benício e Vitória estavam na sala, brincando com os três filhos de Helena, enquanto as outras duas conversavam na cozinha aguardando a empregada servir o café.

– Conseguiste entender-se com Helena? – Perguntou Benício, sentado no chão, enquanto formava palavras com cubos de letrinhas com a filha mais velha de Helena enquanto o do meio pintava um desenho.

– Sempre nos entendemos. – Respondeu Vitória, no sofá, com o caçula no colo, que brincava com um boneco de madeira.

– Apenas para esclarecer... Não há nenhum tipo de pretensão de algo, bem, de algo mais entre...

– Não, Benício, eu contava com um pedido de casamento nas próximas duas semanas. – Ironizou Vitória.

– Apenas esclarecendo. – riu.

– Eu sei. – sorriu – Aprecio tua preocupação em elucidar a situação.

– Bem, sem mais casamentos hipotéticos, falemos de um verdadeiro. Miranda irá se casar daqui a três semanas.

– Sim, eu soube. – sorriu – Ele e a...

– Cláudia. – sorriu – Bem, eu serei padrinho. Gostarias de acompanhar-me à cerimônia?

– Bem, por que não? – riu – Não é como se o resto do mundo não pensasse que estamos namorando mesmo.

– E não estamos?

– Eu não sei... Segundo minha prima, não estamos.

– Por que não?

– Porque em um namoro não se deve fazer... – olhou para as crianças – Coisas de adultos.

– Ah, claro. Mas eu gostaria de chamar-te de namorada. – riu – E adoraria que me acompanhasses ao casamento. 

– Tudo bem, aceito o título e o convite. – riu – Mas muita ousadia tua pensar que ainda não terei sumido de tua vida em três semanas.

– É? – Desdenhou Benício. – Estou bem seguro que ainda hei de ver-te por muito tempo ainda, Doutora.

– E o que está lhe garantindo isto?

Benício tirou os olhos dos brinquedos e encarou Vitória, com a sobrancelha levantada, e mandou-lhe um beijo, seguido de uma piscada. Os dois riram e as crianças, mesmo sem entender, também. Marieta e Helena voltavam da cozinha quando os encontraram rindo na sala.

– Dá para acreditar nisso, Nêta? Olhe só esses dois. – Comentou Helena, baixinho, com Marieta, enquanto ainda estavam na entrada da sala.

– Estão rindo do quê?

– Não faço ideia. Mas olhe como ficam uma graça juntos. Benício é tão bom com crianças... Como Vitória não sente o ventre coçar de vê-lo assim? – riu.

– Lena, por acaso... Bem, já que tocaste no assunto... Vitória não tem chance de embuchar, não é?

– O quê? - Perguntou Helena, abismada.

– Eles estão... – revirou os olhos – Bem, sabes do que falo. Vitória, por acaso, não...

– Vitória tens uma vida amorosa muito... Enfim, não importa. Até onde sei, ela utiliza contracepção há muitos anos. Não creio que será um problema.

– Ah, sim. Que bom, então. – riu – Imagino que ela, por ser doutora, deva saber muito sobre isso. Eu não entendo como isso funciona.

– Espere, nunca usastes nenhum tipo de contracepção, Marieta? – Perguntou Helena, surpresa, com a sobrancelha erguida.

– Eu nem saberia onde arrumar nada disso. – riu – Enfim, chega desse assunto. Venha, vamos antes que o café esfrie.

▪ ▪ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ▪ ▪

¹ "Covarde"

² "Lhe devo desculpas mais tarde, Doutor(a)"

³ Palavra em francês que significa "encontro", "ponto de encontro", "encontrar alguém", muito usada pelos antigos para se referir a encontros amorosos considerados imorais ou desonrosos.

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