Capítulo XVI - Pão de queijo com goiabada
Marieta deixou que o luto se apoderasse dela. Duas semanas se passaram desde que ficara viúva e não haviam nela sinais de superação. Sentia-se profundamente deprimida e desolada, as forças que lhe restavam eram utilizadas para cuidar da filha menor que ainda tinha necessidade de seu seio. Seus vestidos coloridos foram guardados e, aos poucos, o negro invadiu seu guarda-roupa como nunca antes – sempre detestou roupas escuras. Os livros eram sua companhia a maior parte do dia. Recorreu aos romances que lera na adolescência após a morte dos pais, que tanto a confortaram naquele momento de angústia. Tentou reler Jane Eyre, mas acabou apenas lhe provocando uma raiva absurda que a fez arremessar o livro contra a parede ao perceber que seu inglês estava enferrujado ao ponto de sentenças inteiras lhe parecerem inteligíveis. Tinha a versão traduzida em casa, mas a frustração foi tanta que simplesmente se recusou. Lia apenas romances folhetinescos nacionais.
Também não queria ver o irmão. Detestava que ele a visse triste daquela forma. No fim das contas, ele sempre seria um menino que ela estava encarregada de proteger. Pediu gentilmente que ele a deixasse um pouco só para que pudesse refletir em seu luto. Benício a deixou, mas, por outro lado, sentia aquilo como se fosse uma acusação. Parecia que, de alguma forma, a intuição da irmã o condenava. De nada Marieta suspeitava – quem condenava Benício era a sua própria culpa.
– Nêta... – Benício entrou no quarto da irmã, que estava concentrada em seu livro, numa tarde após o almoço.
– Oi, mano. – Disse ela, sem desviar o olhar das páginas.
– Eu sei que não tem recebido visitas, mas...
– Tudo bem, querido, pode entrar.
Benício adentrou o quarto com o chapéu em mãos e um pouco de receio. Era duro ver a irmã adotar modos tão ásperos, tão atípicos dela.
– Só queria informar que não pude mais adiar a leitura do testamento. Será feita essa segunda-feira agora. Tentei explicar que ainda estava num luto muito severo e...
– Eu entendo, Benício. Obrigada por adiar até quando pôde.
– Mana?
– Sim?
– Sabes que pode contar comigo para absolutamente tudo, certo?
Marieta suspirou, desviando o olhar das páginas pela primeira vez desde que Benício adentrara o quarto. Até aquele momento, não havia se dado conta que, na tentativa de proteger o irmão, estava o afastando – e o machucando, consequentemente. Colocou o livro de lado, se levantou e foi em direção a Benício, dando-lhe um abraço apertado.
– Obrigada, maninho, por tudo.
– Não há de quê, Nêta. Estou sempre aqui para ti.
– Sabe, eu sou a mais velha. Eu que deveria cuidar de ti e não o contrário. – riu, seus olhos estavam levemente marejados.
– O que adianta ser mais velha se eu ainda sou mais alto? – riu.
Os dois sentaram-se no sofá do quarto, já sentindo que a atmosfera estava mais leve entre eles. Marieta sentiu-se estranhamente feliz por um momento.
– Como ficarão as coisas na companhia? – Perguntou Marieta.
– Bem, um substituto para o cargo de Lourenço será nomeado a partir de terça-feira.
– Tu?
– Provavelmente. – suspirou.
– Que bom.
– Lembre-se que é apenas o cargo, as ações são suas até que as crianças estejam crescidas.
– Ah, Níço, eu entendo absolutamente nada desse tipo de coisa! Sabes que irei deixar tudo nas tuas mãos, certo?
– Imaginei. – riu.
– Não sei como passaria por tudo isso sem a ti por perto. Nessas horas que dou graças a Deus por não ter se casado ainda.
– Viu só? Preciso ficar solteiro para sempre para cuidar da minha irmã!
– Engraçadinho. Nem pense nisso, ainda quero os meus sobrinhos!
– É, pensarei no teu caso. – riu – De qualquer forma, mana, saiba que, não importa onde ou com quem eu esteja, eu sempre largarei tudo para vir ao teu encontro quando precisar de mim.
Marieta abraçou o irmão. Pela primeira vez em duas semanas, o futuro não parecia tão angustiante.
Vitória descia as escadas em direção à cozinha como fazia todos os dias de manhã. A diferença é que, nos últimos tempos, estava um pouco displicente com sua rotina. Tinha pedido licença da administração da empresa por um tempo para cuidar de "problemas pessoais". Antes, acordava religiosamente às seis e, meia hora depois, já estava vestida e pronta para começar seu dia. Tomava café na cozinha, no mesmo horário que os funcionários, como fazia seu pai. Agora, descia quase às nove, ainda de roupão e cabelos bagunçados, com muitas olheiras e ar de ressaca – isso quando não pedia para que levassem seu café na cama. Dona Ivete, cozinheira da Doutora, viu a patroa entrar na cozinha e sentar-se na mesa de madeira, ainda bagunçada pelo café dos empregados.
– Bom dia, Ivete. – Disse a Doutora, em seu típico roupão de seda oriental e uma cara de cansaço.
– Bom dia, patroa. – Respondeu a senhora de pele escura que mexia algo no fogão. – Acordaste cedo hoje, hein? A senhora me perdoe pela bagunça, achei que só fosse se levantar às nove, que nem ontem.
– Que horas são? – Perguntou Vitória, confusa, ao perceber que não havia olhado as horas e nem notado que a mesa estava bagunçada.
– São sete e pouquinha.
– Achei que fosse mais tarde.
Vitória levantou-se, começou a recolher os pratos e xícaras e colocá-los na pia. Ivete adorava a prestatividade da Doutora, nem estranhava mais quando a via lavando pratos ou lustrando móveis apenas para se ocupar.
– Olha, patroa, eu vi que a senhora anda meio amuadinha. – Comentou Ivete. – Então eu fiz uma coisinha pra te animar. Pãozinho de queijo.
– Ah, não acredito! – riu – Há quantos anos não como isso!?
– Eu preparei a massa bem cedinho pro café do povo, mas já que a senhora acordou cedo, eu vou por os teus pra assar. Tô fazendo até um doce de goiaba aqui, ó, que eu sei que a senhora gostava quando era pequenininha.
– Ivete, tu és um anjo. Eu realmente não te mereço.
Vitória abraçou a mineira baixinha que ainda tinha a barriga virada para o fogão e deu-lhe um beijo no topo da cabeça. Começou a lavar os pratos enquanto jogava conversa fora com a cozinheira. Quando os pães estavam já na mesa, a Doutora largou os pratos e foi se sentar. Ivete sentou-se com ela.
– Agora me fale, patroa. Posso saber por que andas tão jururu assim?
– Ah, Ivete, eu não saberia nem começar a te explicar. – Disse Vitória, passando a goiabada no pão de queijo.
– A senhora não é dessas coisas! Tá todo mundo se perguntando se estás doente já que não aparece mais para o café.
– Ah, perdoe-me. Realmente, não estou me sentindo muito bem nos últimos dias.
– É coração partido, patroa? Fala pra mim, o que te aflige?
- Quem me dera, Dona Ivete. Pelo menos com um coração partido eu saberia como lidar.
As duas continuaram comendo. Vitória ficou em silêncio com a boca cheia a maior parte do tempo, enquanto Dona Ivete falava sobre os outros empregados – trabalhavam cinco na casa de Vitória -, sobre sua vida, sobre as fofocas que escutava de outras empregadas... Vitória geralmente engajaria com mais entusiasmo nessas conversas, mas limitou-se a ser uma boa ouvinte naquele momento.
– Dona Ivete... Posso lhe perguntar uma coisa?
– Claro, patroa, fale.
– O que tu farias se... Bem, imagine que tu tenhas uma amiga. Uma que estime demasiadamente, como uma irmã! Digamos que... um dia, tu descobres que o marido dela a destrata.
– Destrata?
– Sim. Lhe bate e abusa. O que farias?
– Ah, Dona Vitória, mas eu acabava com o filho da p... – abaixou o tom e soltou uma risada – mas eu matava um filho da mãe destes! Eu tenho uma irmã e ai do marido dela se lhe relasse um dedo! Minha filha, Dira, é noiva e eu nem sei o que faria com o desgraçado daquele Pedro se soubesse que ele encostou nelazinha. Onde já se viu homem bater em mulher? Principalmente se for a própria esposa! Eu matava, isso sim! – riu.
– Bom... Muito bom.
▪ ▪ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ▪ ▪
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro