Capítulo LXXX - Desde aquele pôr-do-sol
Benício estacionou o carro na frente da casa de Vitória. Ao contrário do ano anterior, aquele estava sendo um inverno consideravelmente mais frio. Os dois ficaram sentados no carro respirando o ar gelado da noite e escutando o próprio silêncio por um tempo. Não era um clima ruim ou estranho, era agradável.
- Bem, boa noite. - Disse Benício, rompendo o silêncio.
- Queres entrar? - Perguntou Vitória ao invés de dizer boa noite.
- Certeza?
- Claro. - sorriu.
- Tudo bem, então.
Os dois entraram e a casa estava silenciosa, mas Sofia havia deixado as luzes acesas. Deixaram os casacos e chapéus no cabideiro da entrada e seguiram até a sala. Vitória colocou as fotos que carregava em cima da estante e depositou sobre elas uma pequena pombinha de bronze que tinha como decoração para que não voassem. Da sala, foi para a biblioteca e Benício seguiu-a. Ela ligou o rádio e tentou sintonizar na única estação que tocava música àquelas horas. Tocava uma valsa brasileira que ela não conhecia quando finalmente conseguiu encontrar a estação. Sorriu e começou a tirar a fivela dos sapatos, ficando de meias no assoalho.
- Algo para beber? - Perguntou Vitória.
- Seria bom. - Respondeu ele, um pouco intrigado com as intenções dela.
Vitória foi até a sala e retornou com dois copos do que, pelo cheiro, Benício reconheceu como a cachaça dourada que ela tanto gostava. Um tímido brinde e viraram o primeiro gole. A música que estava tocando acabou e o rádio emitiu apenas ruídos por alguns segundos. Benício encarou Vitória por cima do copo. Ela parecia aérea, com a cabeça processando um milhão de pensamentos. Mas aparentava estar feliz, com um sorriso bobo, mais nos olhos que na boca, colorindo seu rosto enquanto bicava a aguardente e viajava nas próprias ideias.
- Pareces pensativa. - Comentou Benício.
A música seguinte começou; uma outra valsa desconhecida, um pouco mais lenta que a anterior.
- Pensando no que dizer... - Respondeu ela.
- Queres dizer algo?
- Sim. - pôs o copo na mesa - Dança comigo?
- Bem, eu... - riu - Claro.
Benício terminou de beber o que restava em seu copo, colocou-o e lado e tomou Vitória pela mão e pela cintura. Enrolaram-se ao não saberem para que lado começar e riram, logo depois pegando o ritmo da música. A biblioteca não era um salão de baile, mas tinha um bom espaço para dançarem caso prestassem atenção para não derrubar nada das estantes. Ele a rodopiou e ela retornou mais perto do que estava antes. Tão perto que ela simplesmente soltou a mão dele e percorreu o caminho de seu até o ombro. Mais perto ainda ela ficou quando mão livre de Benício uniu-se a outra em suas costas. Seus pés não saíam mais do chão, seus corpos apenas balançavam em um ritmo mais lento que o da própria música. Vitória deitou a cabeça no ombro dele. Quando levantou, Benício sentiu os lábios dela em seu pescoço gentilmente deixarem marcas a cima de seu colarinho. A música acabou. Apenas ruídos.
- Eu não sou boa nisso. - Murmurou Vitória, ainda com a cara enterrada em seu pescoço.
- Em quê? - Perguntou Benício.
- Muitas coisas. - suspirou.
- Que específico.
Outra música começou, lenta como a anterior e um pouco menos melancólica. Os dois ficaram em silêncio, agarrados tranquilamente como se o fizessem de maneira corriqueira todo dia após o jantar.
- Ganhaste-me naquele dia. - Disse Vitória, calmamente, quebrando o silêncio.
- Que dia?
- Na Gávea, quando vimos o sol se pôr. Aquele dia foi tão bonito. - sorriu - Eu estava deitada no teu peito, como agora, olhando o céu... Tínha-me na palma da mão. Eu fechei os olhos e só consegui pensar que nunca mais queria sair dali.
- Não deveríamos ter saído dali.
- Se soubéssemos o que nos aguardava aquela noite... Teríamos saído dali direto para o hangar e voado para bem longe.
- É. - riu - É algo que eu teria feito.
Mais uma vez ficaram em silêncio. Benício encostou a cabeça no topo da cabeça de Vitória, inspirando profundamente o cheiro de seu cabelo.
- Vitória, eu preciso perguntar...
- Sim?
- Arrepende-se?
- De quê?
- Do nosso primeiro encontro. No Copacabana Palace, quando nós...
- Não. - Respondeu ela, séria.
- Mesmo? Mesmo com tudo que...
- Eu faria de novo. Tudo de novo. Sei que sabes disso.
- Entendo.
- Eu perguntaria se arrepende-se de casar comigo, mas acho não seria uma pergunta muito justa.
- Eu faria de novo.
- Mesmo? - ergueu a sobrancelha.
- Não. Não mesmo.
- Tua honestidade é frustante e encantadora. Nunca entendi como alguém com tanta lábia consegue ser tão sincero.
- Talvez eu não tenha tanta lábia assim.
- O charme, o maldito charme. A Noite na Taverna soaria como Baudelaire na tua boca. - Brincou Vitória. Benício riu.
- Mas, como a pergunta foi outra, não, não me arrependo. Eu gostaria que algumas... Muitas coisas tivessem sido diferentes. Mas arrependimento infere em desejar desfazer aquilo que nos trouxe até aqui. E eu não me permito isso.
- Arrependimento machuca. É um sentimento amargo cruel.
- Verdade.
- Mas ele ensina.
Vitória ergueu a cabeça e, ainda com os braços em volta de seu pescoço, afastou o torso para olhar em seus olhos.
- O que foi? - Perguntou ele.
- Eu te amo.
- O quê?
- Não finja que estás surpreso.
- Vitória, eu... - riu.
- A vida tirou muita coisa de mim. A sociedade tirou-me outras. Meu orgulho e meus medos... Não deixarei que eles tirem nada, nunca mais. Se o teu coração ainda me pertence, eu...
Vitória não tinha a intenção de terminar aquela sentença em voz alta para que pudesse terminar nos lábios dele. E, com avidez e impaciência, Benício tomou a boca dela na dele, abraçando-a com tanta força que ela pôde sentir os calcanhares saindo do chão.
- Sim. - Disse Benício ao romperem o beijo. - Ainda é teu.
- Bem... Sorte minha. - sorriu - Havia muita coisa no meu coração na qual eu precisava me desfazer. Muita coisa nele que precisava sarar para que finalmente pudesse ser sincera comigo mesma. Mas ele é teu. Desde aquele pôr-do-sol.
- O dia que eu disse que te amava... Não era certo. Eu sabia, no fundo, que não estava pronto, que não era o momento. Apesar de ter sido sincero, talvez faltou em mim paciência para consertarmos certas coisas.
- Bem, eu acabei precisando consertar você. Literalmente.
Os dois riram um para o outro. A música acabou e a sala foi ocupada pelos chiados do rádio novamente. Encostaram as testas e fecharam os olhos até que a próxima música começasse.
- Eu costumava achar que casamento era uma prisão. - Disse Vitória.
- O que te fez mudar de ideia?
- Eu não disse que mudei. Mas, por alguma razão, eu passei a apreciar a companhia do carcereiro.
- Bem, eu... Sinceramente? Ainda estou processando essa frase. Isso deveria ser romântico ou...?
- Benício, eu não acredito em amor eterno. Ou incondicional. - Disse Vitória, olhando nos olhos dele. - Eu não devo fazer as promessas absurdas que a pequena voz da paixão inconsequente está implorando para que eu faça. - suspirou - Mas, meu amor, te dedico a minha afeição e tudo que prometo é a minha companhia.
- Eu não espero mais. - Respondeu ele. - E não te prometo nada menos.
- Nos bons e maus momentos?
- É claro. - sorriu - Mas chega de maus momentos, já tivemos o suficiente.
Benício a beijou novamente e sentiu o sorriso dela nos lábios. Não pôde evitar sorrir também.
- Quanto tempo até que não nos suportemos mais? - Perguntou Vitória.
- Se ela não tratar nos separar antes... - riu - Uma vida inteira, eu espero.
- Até que a vida nos separe, então?
- Até que a vida nos separe.
▪ ▪ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ▪ ▪
Fim.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro