Capítulo LXXVII - Um poço e um altar
- Perdoe-me. - Disse Vitória.
- Eu já disse que não...
- Não por isso.
- Pelo que, então?
- Nossa lua-de-mel. Eu nunca contei o que havia ido fazer em Tetuão.
- Encontrou-se com ele?
- Sim.
A mera lembrança daquele dia despertava em Benício um sentimento ruim. Para ele, aquele ainda era marcado como o dia que condenou seu casamento, o dia em que tudo passou a desenrolar da forma errada e culminou em alguns dos piores meses de sua vida. Mas saber o que Vitória estava fazendo naquele dia deixou de ser uma de suas maiores curiosidades logo depois dela bater-lhe no rosto - simplesmente não importava mais. E até mesmo quando foi capaz de perceber sua paixão por ela, ainda não fazia questão de saber. Ele sabia que havia perdoado-a por qualquer coisa que havia feito no momento que decidira deixar Montevideu. Finalmente saber as respostas para as duas incógnitas que ele se obrigou a não querer saber por tanto tempo - o envelope e Tetuão - era uma sensação vazia. Nem mesmo os ciúmes eram capazes de suplantar o vácuo inóspito daquela resolução.
- E? - Disse Benício, para que ela continuasse.
- Eu queria olhar de volta. - Respondeu Vitória, calmamente. - Eu confesso que quando sugeriste que fossemos para o Norte da África eu fiquei um pouco nervosa, cheguei a pensar que não seria uma boa ideia. Aquele lugar era uma incerteza para mim... Quanta coisa teria acontecido se eu tivesse ido para lá? Eu concordei porque achei que seria uma boa maneira de fechar esse capítulo da minha vida enquanto, bem, abria outro. E estava funcionando. Até o dia de partirmos, quando recebi um telegrama dele. Eu não o amava mais, eu tinha certeza. Mas eu queria vê-lo. Eu coloquei minha aliança e meu anel de noivado. Queria que ele visse que... Eu não sei, que eu estava bem, eu acho. Bem e bem longe dele. Eu olhei de volta, mais de um ano depois. Já olhaste nos olhos de alguém que não amas mais?
- Creio que não.
- É um abismo transformado em cova rasa. Ele já sabia que era apenas uma questão de tempo até ser pego, eu estava olhando nos olhos de um homem morto. Ele não me chamou porque tinha por mim qualquer paixão remanescente. Mas eu era dele. Na cabeça dele, eu era dele.
- Correste um grande risco indo lá, Vitória. Deus sabe o que aquele homem poderia ter feito contigo.
- Ele não faria nada comigo sabendo que eu estava casada. Tivemos uma conversa muito seca. Discutimos tudo que havia ficado pendente em Madri no dia em que eu fui embora. Então, depois de algumas horas ele tranquilamente olhou no relógio e me disse que meu marido estava me esperando. Meu sangue ferveu. Eu queria retribuir aquele tapa que ele me deu em mil novecentos e vinte e quatro em socos e murros. Mas é claro que não fiz nada. Apenas passei o caminho de volta inteiro pensando que eu não deveria ter ido. É claro que eu não deveria ter ido.
- Não posso discordar. - Murmurou Benício.
- Na minha cabeça, por alguma razão, eu esperava encontrar-te dormindo quando chegasse e poderia fingir que nada aconteceu. Mas não foi exatamente assim que... Eu sinto muito.
- Eu lamento muito por aquele dia.
- Eu também, de verdade. Mas eu fechei completamente um capítulo muito doloroso da minha vida. Bem, mais ou menos.
- Como assim?
- Nicola entrou em contato comigo há uns meses, quando Rafael foi preso. Ele não havia conseguido tirar a esposa e os filhos do Marrocos. Ela queria que eu falasse com a minha tia em Portugal para tentar conseguir uma extradição e um visto para ela e as crianças já que ela não poderia voltar para a Espanha.
- E tu? O que fizeste?
- Escrevi para a minha tia. Rafael foi ou será executado hoje, mas mulher e os filhos dele estão em Faro.
Benício respirou fundo e correu as mãos pelos cabelos. Sua cabeça latejava, mas não era sua exaqueca comum. Era uma sensação pela qual ele não esperava. É claro que, de Vitória, ele esperava algo assim; um passado repleto de casos tórridos, conflitos internacionais e dramas não imaginados pelos melhores novelistas. Mas aquilo estava longe de ser tão sensual e animador como ela costumava dar a entender. Aquilo era duro. Era duro vê-la sofrer. Seus vestidos brilhantes, sua maquiagem bonita e sua vida repleta de excentricidades sempre disfarçaram o fato de que ela era humana - de carne, osso, sentimentos e experiências.
- Eu sinto muito por tudo que passaste, de verdade. Não imagino o quão difícil deve ter sido conviver com tudo isso.
- Eu me sinto horrível. Olhe o que eu fiz com a minha própria vida.
- Parte da vida é viver com nossos erros, traumas e arrependimentos.
- Sinto que os meus irão devorar-me viva.
- Não, não vão. - sorriu.
- Obrigada. Pela paciência, pelo banho e por ouvir. - sorriu.
- Escutando teu próprio conselho?
- Como assim?
- De não pedir desculpas quando não tens culpa.
- Ah, sim. - riu - Bem, eu tenho culpa de ter bebido e vir chorar na tua janela.
- É, mas já perdoei. - riu - Desculpe ter puxado-te para dentro daquele jeito.
- Já perdoei. - sorriu.
- Tens um bom coração e uma mente afiada, Vitória. Não torture a si mesma pensando que seus erros a definem, especialmente aqueles que cometeste quando jovem.
- Isso foi há dois anos, eu não era tão jovem.
- Como disseste uma vez, jovem em anos de homem, então podemos relevar. - riu.
Vitória riu também. Os dois permaneceram em silêncio por um momento, até que Benício continuou.
- Vitória, não precisas agir como se tudo fosse fácil o tempo todo. Sei que às vezes a vida exige isso, especialmente de ti, mas demonstrar medo, tristeza, arrependimento, trauma... Nada disso é capaz de fazer-te menos durona, eu garanto.
Vitória sorriu e por um momento sentiu-se culpada por sentir-se bem após ter chorado tanto. Apesar do pavor que sentia ao pensar que aquele era o dia da execução de um homem que outrora amou tanto, seu coração estava leve como há muito tempo não estivera. Havia nela uma sensação de calma por cima da angústia; era a sensação de não estar sozinha.
- É, talvez seja por isso que eu vim aqui. - Disse ela.
- Por quê?
- Porque não olhas para mim de cima, nem de baixo. Sem soberba ou pena. Sem deslumbramento ou desprezo. Isso é raro.
- Entendo o que queres dizer. É verdade, é bom estar no lugar em que se pertence. A diferença entre um poço e um altar pode ser meramente vetorial.
- Eu não seria capaz de colocar em melhores palavras.
- Estás com sono?
- Sim. - balançou a cabeça.
- Durma. Já está quase amanhecendo, precisas descansar.
Vitória ajeitou-se na cama e ficou sentada de costas para a cabeceira. Ela observou Benício levantar pegar o travesseiro ao lado.
- Se não for pedir demais - Disse ela. -, Eu não gostaria de... - revirou os olhos - Durma aqui comigo.
- Mesmo?
- Está tudo bem para você?
- Claro.
Benício pôs o travesseiro no lugar e deu a volta na cama, indo até o interruptor apagar a luz. O céu já estava ficando acinzentado por conta do amanhecer, o que não deixou o quarto em um breu completo por um momento antes de Benício fechar as cortinas. Vitória sentiu o peso dele atingir o colchão e o calor de seu corpo sob o edredom.
- Boa noite. - Disse Benício.
- Boa noite.
Vitória sentiu nas mãos um ímpeto quase incontrolável de alcançá-lo ao sentir seu cheiro e escutar o barulho de sua respiração. Mas a necessidade que tinha de dormir falou mais alto e, antes que pudesse pensar no que fazer, já estava dormindo.
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