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Capítulo LXVII - Fale-me sobre culpa

Benício estava de volta em seu quarto na casa de Vitória. Sem forças ou direito de objetar, ele aceitou que não era mais capaz de interceder por si próprio e tomar qualquer decisão. Aquele quarto era deprimente e ter cinco pessoas em volta dele de uma vez - o médico, que examinava-o, Dona Ivete e Sofia, que terminavam de ajeitar o local, e Vitória e Marieta, que não passavam um segundo se quer sem discutir - era extenuante. As dores que sentia pareciam a parte mais simples do que sentia naquele momento. Desejou mais que qualquer coisa voltar a dormir e acordar longe dali.

- Ele não pode ficar aqui! - Disse Marieta, baixo, enquanto discutia com Vitória tentando não atrapalhar o médico.

- E onde mais ele ficaria, mulher? - Disse Vitória, baixo também, irritadiça. - Na tua casa? Enquanto tens duas crianças para olhar?

- Melhor que aqui, contigo. - Resmungou Marieta entre os dentes.

- Ele ficará bem.

- Dona Vitória? - Chamou o médico.

- Sim?

- A pressão dele está boa, tudo indica que não corre mais risco. Dei a ele um remédio para dormir, logo fará efeito.

- Graças à Deus. - Disse Marieta, aliviada.

- Aqui está a receita. - Disse o médico ao entregar um papel para Vítoria. - Morfina e mais alguns remédios para baixar a febre, caso ele tenha.

- A dose é muito alta. - Comentou Vitória ao ler a receita.

- Perdão?

- A morfina. É muito.

- Senhora, devo informar que ele está a sentir uma enorme quantidade de dor.

- Ele é um rapaz grandinho. Cortarei pela metade.

- Vitória!? - Reclamou Marieta.

- Morfinismo é pior do que sentir um pouco de dor. - Disse Vitória. - Acredite, eu gostaria de ter sentido.

- Bem, creio que meu trabalho aqui acabou por ora. - Concluiu o médico. - Daqui dois dias voltarei para examiná-lo. Dona Vitória, podemos acertar...?

- Claro, Doutor, venha até o meu escritório. Marieta?

- Sim?

- Fique de olho no teu irmão. Garanta que ele durma.

Vitória estava estressada com Marieta e sua admirável capacidade de ser inconveniente, mas queria fazê-la sentir-se útil ante aquela situação tão complicada - em parte para acalmá-la, em parte para que ela não atrapalhasse. O médico, que não via a hora de sair dali pois temia ser colocado no meio de algum conflito das duas, adentrou o escritório de Vitória e deslumbrou-se imediatamente com o local.

- Aqui está, Doutor Emílio. - Disse Vitória ao entregar o dinheiro para o médico.

- Obrigado.

- Obrigada ao senhor. - sorriu.

- Sim, claro. Dona Vitória, eu também gostaria de recomendar-lhe que arrumes uma enfermeira. Limpar feridas, controlar medicação e esse tipo de coisa é um trabalho muito pouco agradável e que toma muito tempo.

- Eu entendo bem de limpar feridas e controlar remédios, Doutor. - Respondeu Vitória.

- Claro. - sorriu - Como quiseres. Aquilo é uma caliandra rosa? - Perguntou Doutor Emílio, ao por os olhos em um vaso de planta repleto de pom-poms cor-de-rosa no fim da sala.

- É sim. - Respondeu Vitória, sorrindo. - Bonita, não? Acho mais bonitas que as vermelhas.

- O Senhor Benício é biólogo?

- Não, ele é engenheiro. - Respondeu Vitória, casualmente, enquanto procurava em suas gavetas um papel para fazer de recibo.

- Ele parece se interessar muito por botânica, então. - riu - E fósseis.

- Doutor, este escritório é meu. - Informou Vitória, seca, erguendo a sobrancelha ao entregar o papel e a caneta para o médico.

- A senhora se interessa por ciência? - Perguntou Doutor Emílio enquanto assinava o recibo.

- Talvez um pouco. - Respondeu Vitória, sarcástica, ponderando se o médico ignorava o diploma dela na parede de propósito ou apenas era desatento. - Mais alguma coisa, Doutor?

- Tudo certo. Qualquer emergência, basta chamar.

- Claro. Sofia? - Gritou Vitória, já impaciente com a presença do médico ali.

Como esperado, a noite foi longa. Benício foi acometido por febres intensas e dores muito fortes. Vitória novamente passou a madrugada em um cadeira ao pé de sua cama tentando controlar sua temperatura. O dia já estava amanhecendo quando ele começou a dar sinais de melhora. Vitória tinha o semblante cansado, mas estava bem desperta - e, surpreendentemente, de bom humor. Os dois não conversavam, Benício apenas queixava-se da dor e Vitória andava de um lado para o outro fazendo o possível para amenizar. Era agoniante para Benício vê-la tão quieta e prestativa; e era quase instintivo para ele querer irritá-la ao ponto de vê-la surtar e largá-lo ali para morrer ou, quem sabe, tentar sufocá-lo com o travesseiro. Mas ela parecia inabalável, uma cuidadora experiente e amável que mal abria a boca. Aquela era uma parte dela que ele desejou jamais ter conhecido.

- Estou lisonjeada. - Comentou Vitória, ironicamente, enquanto limpava Benício pela manhã ao perceber que ele se enrijecera.

- Desculpe. - Respondeu ele, sonolento, sem dar muita importância.

- Tudo bem. Já vi muitas vezes.

- Eu quero morrer.

- Não se preocupe, soldado. Estou quase acabando.

Benício riu e arrependeu-se logo em seguida; seu abdômen doeu imediatamente em resposta. Vitória ajudou-o a vestir a calça.

- Os pontos estão bem feitos. Eu teria feito melhor, mas... - Comentou Vitória ao limpar a ferida costurada. Ela aplicou um líquido amarelo que fez Benício dividir-se entre a ardência e a dor nos músculos e grunhir resposta. - Desculpe. O da mão agora.

A mão de Benício que foi usada para defender-se do primeiro golpe de Narciso com a garrafa quebrada tinha um total de oito pontos. Eram dois cortes feios, mas não profundos. Nenhum nervo foi atingido, mas Vitória temia que, caso a cicatrização não fosse boa, os movimentos da mão dele ficassem comprometidos. Um silêncio pesado formou-se entre eles. Benício já estava bem desperto e encarava o nada, reagindo apenas à dor dos remédios que Vitória aplicava em suas feridas.

- Queres conversar sobre isso? - Perguntou Vitória, quebrando o silêncio.

- Isso o quê?

- Sobre o porquê de ter envolvido-se em uma briga de bar.

- Homens brigam.

- Você não. - sussurrou - O que fazias no subúrbio?

- Usarei uma das tuas sentenças favoritas: o que faço ou deixo de fazer não é da tua conta.

- É, talvez eu mereça isso. - revirou os olhos - Fiquei preocupada contigo.

- Pare de fingir que se importa.

- Não estou fingindo, Benício. Deus, achas mesmo que eu, de qualquer forma, gostaria de vê-lo assim?

- Acho.

- O drama lhe cai bem. - Murmurou Vitória, sarcástica.

- Como pensas que a viuvez lhe cairia.

- Deus do céu. - riu - Olhe, eu sei que as coisas ficaram simplesmente péssimas entre nós desde... Bem, desde o Natal. Eu sinto muito, de verdade.

- Sentes? - Perguntou Benício, irônico.

- Eu me excedi. Fui desnecessariamente rude e arrogante. Sinto muito por isso.

- Por que eu sinto que essa desculpa de merda é seguida de um "porém"?

- Benício...

- Desembuche.

- Bem, eu sinto muito por como tudo aconteceu. Mas, não. Eu não acho que estava errada quanto ao fato de que nós não temos mais nada. E aquilo que pensavas ser amor era nada mais que culpa por estar acorrentado em mim pelo resto da vida e desespero por saber que eu tornei-me a tua última chance de viveres um amor que não lhe custasses o respeito por si próprio.

- Alguma hora acreditas mesmo no que dizes?

- O quê?

- Inacreditável. - riu - Culpa? Casar contigo foi uma das piores experiências da minha vida e eu estava tão dopado no dia do nosso casamento que eu pouco me lembro daquele dia. Eu não via a hora de me ver livre de tu, nosso casamento e todo caos que acabou levando a ele. E por um dia eu estava livre de tudo isso. De tudo. Escândalos, fofocas, brigas, segredos... E eu senti tua falta. Não parava de pensar no teu cheiro, no teu sorriso, nas tuas manias e pareceu desesperador pensar que, agora que a tinha para mim, estavas mais longe do que nunca. E eu tentei tê-la de volta. A garota cujo beijo me fez vencer uma corrida, a garota que eu levei para ver a cidade de cima, a garota com quem eu planejei um assassinato e por quem eu matei e morreria sem pensar duas vezes. Eu queria ela de volta. E agora ela está aqui, sentada ao pé da minha cama, dizendo que meus sentimentos não são reais enquanto limpa as minhas feridas que consegui após beber demais perguntando-me se ela existiu mesmo ou foi um delírio meu. Então, fale-me sobre culpa, Doutora, enquanto brincas de enfermeira e pune a si própria às custas do meu sofrimento. Que tipo de senso de obrigação a mantém ao meu lado agora?

Vitória procurou palavras para ao menos reagir ao que acabara de escutar, mas nada era capaz de atravessar sua garganta. Desligou-se do mundo por um momento e encarou o nada, engolindo seco para conter o impacto daquele discurso pelo qual ela não esperava. Benício respirou fundo; parte dele arrependia-se de não ter guardado aquilo tudo para si próprio, outra parte não se importava. Um profundo silêncio com ares de abismo instaurou-se entre os dois.

- Bem, eu já acabei. - Informou Vitória, casualmente, como se nada tivesse acontecido.

- Vitória... - Disse Benício, como se quisesse dar continuidade àquela conversa.

- Caso precises, é só chamar. - Interrompeu Vitória, arrumando seus aparatos médicos. - Estarei em meu escritório.

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