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Capítulo LXIX - Garrafas e morte

Benício deixou o tribunal ao lado de Vitória. Dois dos homens foram condenados a vinte e três anos de prisão cada. Narciso, quarenta. O julgamento foi curto, pouco havia para a defesa dos três. Quando foi depor, Benício observou Rute, a moça do bar, sentada em meio àquele monte de gente. Ponderou sobre o que seria dela; ele sabia que ela estava sozinha na cidade e, devido à natureza informal do relacionamento que ela tinha com Narciso, o trabalho no bar era tudo o que ela tinha - e, graças a ele, o mesmo encontrava-se fechado. Prometeu a si mesmo procurar por ela quando pudesse. No dia seguinte, recebeu a visita de Miranda.

- Eu realmente acho que escutei Vitória dizer algo sobre nada de bebida. - Comentou Miranda enquanto Benício enchia dois copos de cachaça dourada para os dois em seu escritório.

- Ela não precisa saber. - riu.

- Nossa, mentindo para a tua esposa sobre algo que não causará dano a ninguém além de si próprio. Bem-vindo ao casamento. - riu - E ela onde está?

- No Museu, dando uma palestra.

- Nossa.

- E, bem, se aquela garrafa não me matou, não será essa que irá. - Brincou Benício enquanto tateava sua gaveta buscando um maço de cigarros e um isqueiro. - Aceitas?

- Claro. - Respondeu Miranda, tomando um dos cigarros para si. - Falando em garrafas e morte, como estás?

- As primeiras semanas foram terríveis. Agora estou bem. Pretendo melhorar mais ainda agora que aqueles filhos da puta estão na cadeia e não sairão tão cedo.

- O que fazias naquele bar?

- O que se faz em um bar? - riu.

- É sério. Poderias beber em qualquer lugar possível, por que dirigiste até o outro lado da cidade para arrumar problema em um pé sujo qualquer?

- Eu... - riu - Eu só queria estar em um lugar onde ninguém me conhecesse. Sem conhecidos, sem fofoqueiros. Sem ninguém para testemunhar e espalhar a palavra da minha decadência.

- Uau, a doutora ali fez um estrago e tanto.

- Não diga. - revirou os olhos.

Benício abriu o paleto e tirou uma pequena caixinha prateada. Abrindo-a, retirou dali um par de pílulas brancas.

- Isso não parece analgésico. - Comentou Miranda, irônico.

- São da Vitória. - Disse Benício enquanto pegava um pequeno carimbo, um canudo de ferro, uma navalha e um pequeno espelho de dentro de uma carteira aveludada.

- Roubaste dela?

- Roubar é uma palavra feia. - Disse Benício, prosseguindo a pressionar as pílulas com o carimbo até que elas se desfizessem. - Eu diria tomar de volta.

- Vocês que são brancos, que se entendam. - revirou os olhos - E quando o verei novamente na oficina?

- Em breve, eu espero. - Disse Benício, separando as carreiras com a navalha até que se formassem dois pares. - Minha mão ainda não está boa. Nem a minha perna. Tenho medo de não conseguir dirigir como antes.

- Nem se perdesses uma das mãos, meu caro. Em pouco tempo, estaremos celebrando mais uma corrida ganha. Se não arrumares um jeito de morrer em uma briga de bar antes, é claro.

- Depois de quase morrer pela... Terceira vez? Não sei. Bem, eu diria que não estou ansioso para o desvanecer da minha consciência. - Disse Benício, cheirando a primeira carreira. - Não no momento, pelo menos.

- É, estou vendo...

"[...] Mais do que jargões complicados e sentenças inelegíveis, a pesquisa científica não existe apenas para ser passatempo daqueles com horas e recursos disponíveis. Como um grande colega meu costuma dizer, a ciência não está necessariamente ligada à sua finalidade prática, mas sim ao seu valor de beleza. A beleza de uma libélula preservada no âmbar. A beleza dos animais fascinantes que um dia pararam de habitar o nosso planeta e que, em sua gentileza e sabedoria, a natureza conservou as evidências de suas existências, como se nos desafiasse a desvendá-las. A beleza de inscrições milenares nas paredes de cavernas, que ajudam a entender a vida daqueles que vieram antes de nós. Bem, talvez eu deva parar de puxar o saco do meu trabalho. Mas há uma indescritível beleza em todos os ramos da ciência que existem ou que virão a existir. E a ciência é de todos nós. A ciência pertence aos homens e às mulheres de todas as classes, cores e credos. A Doutores e Mestres pertence apenas o trabalho de aprender e disseminar o que foi aprendido. Ao povo, tudo. Obrigada."

Orgulhosa e altiva, Vitória discursou para mais ou menos cinquenta pessoas no salão de conferências do Museu Nacional. Ela era uma das três mulheres no secretariado do Museu e foi devidamente aplaudida pelo discurso que precisou brigar para conseguir fazer. Tinha na cabeça seus pais; eles estariam orgulhosos. Em sua carreira, ela colecionava feitos até mais extraordinários e quiçá relevantes, mas poder discursar para pessoas que há pouco tempo eram incapazes de conceber a ideia do conhecimento científico chegar às camadas populares ou a possibilidade de uma mulher ser uma cientista era satisfatório de maneiras que ela mal podia explicar.

- Doutora Vitória? - Chamou um funcionário do Museu após a palestra, enquanto Vitória conversava com alguns colegas.

- Pois não?

- Há uma moça procurando por ti. - Disse o rapaz, apontando para trás.

Vitória pôs os olhos em Marieta do outro lado do salão. Pediu licença às pessoas com quem conversava e foi até ela, curiosa e sem saber o que esperar.

- Marieta?

- Olá, Vitória. - sorriu.

- Está tudo bem? Teu irmão não está aqui, pedi para que ele ficasse em casa e descan...

- Não estou aqui pelo meu irmão. - Explicou Marieta, gentilmente. - Podemos conversar?

Vitória levou Marieta para uma ala mais vazia do Museu. As duas sentaram em um banco de frente para uma exposição do Império Romano.

- Eu acho que é hora de fazermos as pazes. - Começou Marieta.

- Mesmo? Eu também acho. - riu.

- Eu estava com muita raiva. Muita. Não foi fácil lidar com a fato de que... Bem, de que meu marido não morreu de causas naturais. E muito mais difícil ainda foi lidar com o fato de que meu irmão e minha amiga estavam envolvidos com a morte dele.

- E o que te levou a perdoar-me agora?

- Ontem no julgamento eu fiquei um pouco inquieta. Eu estava preparada para ver meu irmão brigar para provar que aqueles homens haviam atentado contra a sua vida e... Não houve briga. Ele apenas depôs. A defesa apresentou um argumento intercedendo por uma redução de pena para os outros dois envolvidos, que ele aceitou, e acabou. Foi rápido.

- Sim, mas era esperado ser rápido assim. A polícia demorou menos de uma semana para capturar aqueles homens, Benício havia reconhecido os três. Não seria um processo longo.

- Isso me fez perceber que a justiça não trabalha para nós. E ela não teria feito nada por mim. Eu nunca desejei que Lourenço morresse, mas tantas vezes o desejei longe de mim. Eu sei que não és uma pessoa ruim, Vitória, simplesmente não acreditavas na justiça dos homens. E eu não posso culpar a ti ou ao meu irmão por isso, por quererem preservar a minha vida. Com o tempo, venho aprendendo que a minha vida vale mais do que fui levada a acreditar. - sorriu.

- Não tens ideia do quão maravilhoso é escutar isso, Marieta. - sorriu - Eu te amo como uma irmã. E eu sinto tanto por todo o sofrimento que lhe causei. Mas quando eu e Benício falamos que faríamos o que fizemos de novo, saiba que significa apenas que não nos arrependemos. Jamais.

- Eu gosto de acreditar de Deus age de maneiras estranhas. Talvez fossem necessárias duas pessoas que não temem a justiça divina para fazer justiça com as próprias mãos.

- Eis um Deus em que eu gostaria de acreditar. - sorriu.

- E seria tanta desfeita da minha parte ignorar todas as coisas maravilhosas que me aconteceram desde então.

- Lili... - riu.

- É. - riu - A mais maravilhosa de todas.

- Estou tão feliz que estejas feliz.

- Ah, Vitto, encontramos felicidade nos lugares mais improváveis. Estou orgulhosa de ter sido corajosa o suficiente para ser feliz.

- Tua coragem jamais cessará de me impressionar, querida.

Marieta e Vitória abraçaram-se calorosamente. Sem lágrimas ou desespero, apenas sorrisos e aquela sensação de calma e conforto que só o abraço de uma amiga pode trazer. As duas desfizeram o abraço e Marieta deitou a cabeça no ombro da cunhada.

- Ainda não sei como vou contar à Helena sobre tudo. - Disse Marieta. - Tenho medo de contar por telefone.

- Tens falado com ela?

- Sim, às vezes. Ela voltará antes de o bebê nascer. - sorriu.

- Mal posso esperar para vê-la.

- Ela disse estar preocupada contigo, mas não me disse o porquê. Aconteceu algo? Digo, além de tudo que... Bem, além de tudo.

- Não é nada demais. - Disse Vitória. - Helena deve estar exagerando. Eu estou apenas com muito trabalho para fazer. Teu irmão incluso.

- Falando nele, como ele está? Vê-lo ontem no tribunal de pé daquela forma foi um alívio gigantesco.

- Ele está muito bem. - riu - Melhor até do que eu previa.

- Ele é resistente. É de família. - riu - Mas e vocês?

- Nós?

- Bem, deixaste o tribunal ao lado dele e ainda tivera peito para lidar com a imprensa. Vocês estão... Bem?

- Ele rouba minha cocaína e eu finjo que não vejo. Mas, não, não voltamos, se é isso o que perguntas.

- Estão casados, pelo amor De Deus, não podem simplesmente terminar quando se estressam!

- Eu acho que é um pouco mais complicado que isso, Marieta. - riu.

- Besteira. Vocês precisam ser trancafiados em um cômodo minúsculo e só saírem quando tiverem se resolvido.

- Eu tenho sério embasamento científico para afirmar que sairíamos de lá sem roupa e possivelmente mortos.

- Vitória! - Repreendeu Marieta. Vitória riu. - Senti tua falta.

- É, eu também, querida.

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