Capítulo LXIII - Segundo andar
As águas de Março fechavam mais um verão e as manhãs cinzentas transformavam-se em tardes límpidas após toda aquela água derramada. Eram quase quatro da tarde, Vitória andava pela orla de Copacabana com sua sombrinha de um lado e o braço de Cláudia do outro.
- Publicaram um conto na revista recentemente e eu lembrei de ti. - Comentou Cláudia, após as duas rirem de um assunto qualquer enquanto aspiravam a brisa do mar.
- Mesmo?
- Chama-se "A Doutora".
- O título é bem explicativo. - riu - Do que se trata?
- Ah, odiarás o que lhe contarei. - riu - É sobre uma doutora recém chegada em um pequeno vilarejo que precisa lidar com um médico muito machista que não acredita que mulheres possam ser médicas.
- Se me contasses que ela surpreende a todos, supera o Doutor Machista e deixa-o desempregado, fazendo com que ele saia do vilarejo para sempre, eu ficaria muitissimamente satisfeita. Mas eu acredito que eles se apaixonam, não é?
- Obviamente. - riu - Conheces a minha revista.
- Não posso reclamar, uma revista feminina abordar mais que bolos e bordados já é esplêndido. Estão inspirando centenas de donas de casa a lutarem pelo sufrágio universal.
As duas pararam em frente a um banco no calçadão e sentaram-se de frente para o mar.
- Deverias conceder-nos uma entrevista, Vitto. És uma voz influente. Tens uma formação superior, és uma Secretária do Museu Nacional, estás a frente de uma grande empresa e és metade inglesa. Basicamente, sabes tudo sobre a causa feminista. Quem melhor do que tu para falar sobre?
- Muitas mulheres. - riu.
- É sério!
- Cláudia, querida, eu não sou a minha mãe. - suspirou - Não sou o tipo de mulher que querem ver na tua revista. Eu carrego nas costas um escândalo sexual e um quase divórcio. Infelizmente, precisamos colocar na linha de frente mulheres que o povo esteja disposto a ouvir.
- Ainda acho uma pena. - suspirou - Mas eu, mais do que ninguém, entendo exatamente o que queres dizer.
- Dê a Lutz o que é de Lutz e a Castro o que é de Castro. - riu.
- Engraçadinha. - riu - Queria que fosses jantar lá em casa qualquer dia. Eu e José mudamo-nos há quase dois meses e ainda não conheces nossa casa nova.
- Eu iria. Mas seria, no mínimo, estranho. Imagino que Benício não tenha poupado os ouvidos de Miranda quanto a mim.
- Certamente não. - suspirou - Então, divórcio mesmo?
- Tentaremos, eu acho. Não sei se iremos conseguir. Seria bom se Benício falasse comigo, mas ele me ignora. Acho que tem uma razão, não é?
- Ele tem suas razões para estar magoado, creio eu. Mas talvez possam resolver as coisas, divórcio soa um pouco dramático para mim.
- Acredito que as coisas que eu fiz estão além do reparo desta vez.
- Bem, chega de maridos, casamentos e divórcios. - revirou os olhos. - O que faremos esta noite?
Era a primeira vez em alguns meses que Vitória estava se sentindo ela mesma. Ficar afogada em trabalho e beber durante o dia passaram a fazer parte de sua rotina. Sua vida ter, mais uma vez, virado palco de um escândalo estava aos poucos degradando sua sanidade e a situação com o marido e a cunhada não lhe fazia bem ao espírito. Marieta parou completamente de falar com ela, Benício raramente lhe dirigia a palavra e ela não fazia ideia de como se comportar diante daquela situação. A última conversa que tivera com Benício resumiu-se a ela pedindo desculpas por ter contado a Marieta e ele lacrimejando de raiva, gritando que ela não tinha o direito de fazê-lo. Ela diversas vezes tentou falar com a cunhada, mas a mesma não queria lhe ouvir. Helena havia chegado da Argentina há pouco tempo e não sabia da história toda - mas era bem claro que ela havia tomado o lado de Marieta. Rosalinda enviou-lhe uma carta contando que estava morando em Calcutá e mais uma vez Vitória cogitou deixar o país.
A Galeria Charpentier era uma boate muito famosa, frequentada pelas reais faces de uma elite falsa. Em uma ruela bem pouco movimentada de Copacabana, ficava o estabelecimento que seguia o padrão das boates de luxo da época: simples e discreta por fora, belíssima e animada por dentro. Não era qualquer elite que botava os pés ali (assim como em qualquer estabelecimento como aquele); o local jamais seria frequentado pelos homens que gastavam fortunas em clubes de cavalheiros ou por suas esposas que se quer cogitariam sair de casa no horário em que o local começava a funcionar. Autores de sucesso, gringos endinheirados querendo se divertir, filhos jovens de pais ricos, músicos recusando shows e parte da burguesia emergente da cidade eram os que compunham o público animado do local inspirado nas boates nova-iorquinas.
- Um Martini, por favor. - Disse Vitória ao bartender assim que ela e Cláudia entraram na casa.
- Champanhe. - Disse Cláudia. - Rosé, com gelo, por favor.
Do outro lado do bar, dois rapazes sorriram para elas. Cláudia ignorou-os; Vitória acenou e sorriu de volta.
- O que pensas que estás fazendo? - Questionou Cláudia.
- O quê? Não conta como traição se o meu marido me largou!
- Quer parar de dizer isso, Vitória?
- É a verdade, de que servem eufemismos?
O bartender entregou ambas as bebidas. Vitória virou metade da taça quase que de uma vez.
- Eu sinto falta de flertar. - Confessou Vitória enquanto as duas saíam do bar e iam para o salão. - Sinto falta de dançar...
- Podemos dançar! - Afirmou Cláudia. - Sem bochechas coladas, é claro. - riu.
- Deveríamos dançar juntas, então. - riu - Será que assim poderíamos colar as bochechas?
- Vitória! - riu.
- Isto é permitido neste clube! No segundo andar, pelo menos...
Enquanto ria e cruzava o salão ao lado de Cláudia, Vitória congelou no meio do caminho. Cláudia virou-se para ver o que havia retido Vitória quando deu de cara com Benício sentado em uma das mesas, bebendo e fumando com um grupo de amigos. Não demorou para que ele visse as duas.
- Minha conta, por favor. - Solicitou Benício ao garçom que passava, com a cara fechada e apagando o cigarro no cinzeiro da mesa.
- Merda. - Murmurou Cláudia. Vitória permanecia do mesmo jeito.
Benício levantou-se e foi andando apressado até a saída, cruzando rapidamente com Vitória e Cláudia, ignorando-as. Os amigos que estavam na mesa notaram imediatamente o que estava acontecendo e começaram a cochichar entre si. Como que por impulso, Vitória foi atrás dele e Cláudia seguiu os dois.
- Benício... - Chamou Vitória, enquanto os dois andavam apressadamente em direção à saída.
- Vitória. - Disse Benício, de maneira fria e com um sorriso falso, ao parar e virar-se para ela.
- O que fazes aqui? - Perguntou Vitória, sem saber direito o que queria dizer naquele momento.
- Saindo.
- Eu não sabia que estarias aqui...
- Interessante.
- Aqui está, senhor. - Disse um funcionário ao aproximar-se, entregando o casaco e o chapéu de Benício.
- Obrigado. Por favor, avise minha irmã que eu tive um - pigarreou - imprevisto e precisei sair.
- Sim, senhor.
- Marieta está aqui!? - Perguntou Vitória, de olhos arregalados.
- Está. E eu duvido muito que ela queira te ver mais do que eu no momento.
- Benício, por favor...
- Boa noite. Boa noite, Cláudia.
Apressadamente, Benício deixou a Galeria. Vitória ficou parada por um tempo, sem saber que reação ter ou o que fazer. Não esperava topar acidentalmente com ele, mas menos ainda esperava toda aquela aspereza caso isso acontecesse. Sua consciência dizia-lhe que merecia; seus sentimentos não se conformavam com isso.
- Ainda é cedo. - Disse Cláudia, chamando a atenção de Vitória. - Vamos sair daqui, podemos ir ver um filme.
- Sim. Um filme seria bom. - sorriu - Obrigada, querida.
- Vamos lá.
- Só um minuto, querida, eu preciso ir ao toalete antes. Sinto como se tivesse rolado por um desfiladeiro. - Confessou Vitória com um sorriso irônico e os olhos tristes. - Com licença.
Vitória subiu as discretas escadas que levavam ao segundo andar do clube. O local parecia uma grande sala de estar, com outros cômodos adjacentes, mas ainda era menor que o salão principal. Estava tão cheio e tão animado quanto o térreo, mas lá o cenário era um pouco diferente. Mulheres de terno, homens afeminados, amantes do mesmo sexo sentados juntos e trocando carícias tão singelas que poderiam ser vistas em uma tarde no parque. Se olhasse com atenção, era possível observar as mesmas cenas no andar de baixo, mas muito mais sutis - como pernas que alisam por de baixo das mesas, ombros que não descolam e dedos que a todo momento procuram desculpas para se encontrarem.
- Com licença, aonde fica o toalete? - Perguntou Vitória ao garçom que passava por ela.
- Lá no final, na última sala, madame.
Vitória andou até o fim do salão, distraída e com a cabeça cheia, evitando olhar para os casais que ali se encontravam para que não despertasse nela uma amargura que nem mesmo ela entendia. Atravessou o portal que separava aquela pequena sala do resto do salão com a rapidez de quem está atrasada, mas não conseguiu chegar até o banheiro. Pela segunda vez naquela noite, congelou no meio do caminho sem acreditar nos próprios olhos.
- Mas o que... - Balbuciou Vitória.
Marieta estava recostada na parede em um lindo vestido cor-de-rosa e um cigarro na mão - e em seus lábios, os sempre vermelhos lábios de Lili que impressavam sua cabeça contra aquele papel de parede feio e velho. Vitória soltou uma risada e as duas tornaram-se cientes da presença dela ali.
- Vitória!? - Exclamou Marieta, afastando-se de Lili.
- Vitto? - Disse Lili, também nervosa, porém menos que Marieta.
- Isso é... Inesperado. No mínimo. - Comentou Vitória, casualmente, mas parecendo muito confusa.
- Não é o que parece! - Disse Marieta, quase que instintivamente.
- Parece ser... O que é. - Disse Vitória, sem ter certeza sobre estar fazendo sentido. - Eu... É melhor eu ir.
Vitória deu meia volta e saiu dali atordoada. Marieta foi atrás dela.
- Não conte para o meu irmão! - Pediu Marieta, desesperada, colocando-se na frente de Vitória antes que ela alcançasse as escadas.
- Ele não sabe? Como assim? Ele estava aqui...
- Lili é apenas minha amiga.
- É o que ele pensa, certo? Eu não... Ela é o teu amante, não é?
- Ele não pode saber. Ninguém pode saber. Por favor, não conte a ninguém!
- Eu não irei! Eu só estou... Muito surpresa, apesar de sentir que não deveria.
- Eu sei que é errado, mas...
- Marieta, não é isso. Só estou supresa de ser você, quer dizer... Para uma péssima mentirosa, sabes mesmo como guardar um segredo.
- Ultimamente eu não tenho tido muita escolha que não viver guardando segredos terríveis. - Disse Marieta, deixando transparecer seu ressentimento.
- Deverias contar para o teu irmão. De verdade.
- Ele jamais entenderia!
- É claro que ele entenderia! Marieta, nós não... Isso é não uma cena estranha para nós. Frequentamos locais como esse, temos diversos amigos homossexuais...
- Não diga essa palavra! - Disse Marieta, com a voz chorosa. - E, não, eu não posso contar para ele! O que ele pensaria de mim?
- O autor preferido dele é a porra do Marcel Proust! - Exclamou Vitória, respirando fundo e contendo o impulso de revelar o que havia acontecido em sua lua-de-mel. - Se ele não puder entender isso, então ele precisa de algumas lições sobre hipocrisia.
- Encontraste com ele lá em baixo?
- Sim. Ele foi embora no segundo em que me viu. - sorriu.
- Marieta? - Disse Lili ao aproximar-se das duas.
- Eu já estava de saída. - Informou Vitória. - Boa noite, Marieta. Boa noite, Lili.
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