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Capítulo LXII - Primum non nocere

Benício estava sentado no sofá da irmã com a sobrinha no colo enquanto João desenhava na mesa de centro da sala. Começava a estranhar a demora da irmã para o almoço e perguntava-se se estaria tudo bem com ela. A conversa com Vitória poderia ter ido completamente bem, assim como completamente mal. Ele não sabia o que esperar. Quando o sobrinho perguntou pela tia, duas hipóteses formaram-se em sua cabeça; ou ela viria para almoçar em breve, ou ele não teria notícias dela por muito tempo.

Marieta por fim chegou em casa. Ela tinha o semblante péssimo - a pele brilhante de lágrimas secas, a expressão de pura desolação e um desconforto aparente. Ela pareceu ignorar o filho que foi correndo, animado, em sua direção quando ela adentrou a casa. Benício ficou imediatamente preocupado.

- Nêta...? - Disse Benício, aproximando-se da irmã.

- Graça, querida, leve as crianças lá para cima, por favor? - Pediu Marieta à babá dos filhos, ignorando Benício.

- Sim, senhora. - Respondeu Graça, tomando Maví do colo de Benício. - Venha, João.

Graça e as crianças subiram. Marieta foi andando em direção à biblioteca. Benício seguiu-a.

- Marieta, pelo amor De Deus, o que houve?

Marieta foi até a garrafa de uísque na estante e pôs um copo para si, virando imediatamente.

- Fale comigo, por favor! - Insistiu Benício.

- Vocês o mataram. - Disse Marieta, por fim.

- O quê? Como...

- Contaste-me um pedaço da história. Vitória contou-me o outro. Pelo visto eu sempre estive certa, vocês dois se merecem em níveis que eu jamais poderei entender.

- Nêta, eu...

- Como podes!? - soluçou - Como...

- Nêta, eu sinto muito! De verdade, eu... Eu não tive escolha.

- Sim, tiveste! - gritou - Deus, eu sempre temi que isso acontecesse. Depois daquele incidente no meu aniversário eu temi tanto que tu... A pior parte é pensar que isso foi premeditado. Planejaram isso! Conspiraram para matar Lourenço como dois assassinos de aluguel. Vitória contou-me que planejaram isso por semanas. Tiveste tempo para desistir e não o fizeste!

Marieta chorava e Benício sentia as lágrimas quentes escorrerem pelo seu rosto. Sua irmã estava abalada quase que do mesmo jeito no dia que Lourenço falecera. A culpa doía bem fundo no seu coração naquele momento, de um jeito que ele não havia sentido antes.

- Eu hesitei, Marieta. Várias vezes. Eu quis dar para trás, eu juro. E isso sim faz com que me sinta culpado. Porque ele não pararia de lhe agredir e eu não tinha o direito de hesitar antes tais circunstâncias.

- Não tinhas o direito de matar uma pessoa! Não tinhas o direito de deixar-me viúva! Não tinhas o direito de fazer órfãos dos meus filhos! Nem tu, nem Vitória!

- Eu não entendo como consegues lamentar o fato daquele filho da puta estar fora da tua vida e da dos teus filhos! - Disse Benício, parecendo irritado ao mesmo tempo que as lágrimas desciam pelo seu rosto.

- Ele era um ótimo pai! - soluçou.

- Ele era uma única pessoa, Marieta! Ele não tinha direito algum de ser um bom pai enquanto lhe agredia! - gritou.

- Isso não pode estar acontecendo... - Murmurou Marieta, olhando para cima enquanto abraçava o próprio corpo.

- Eu sinto muito, Nêta, de verdade... - Disse Benício, aproximando-se da irmã de maneira cândida. Ela recuou.

- O que será da tua alma? Como esperas que eu viva sabendo que meu próprio irmão conspirou para matar o meu marido a sangue frio?

- Eu teria o desafiado e metido uma bala na cabeça dele em um duelo justo sabendo que ele teria a mesma chance de matar e eu estaria em paz com isso! Eu teria o matado com honra! Mas eu não poderia lhe abandonar, mana.

- Tu não deverias ter feito isso. - soluçou.

- Eu teria morrido. Eu teria ido para a cadeia. Eu teria enfrentado qualquer consequência para tirar aquele infeliz da tua vida. Mas eu não poderia me dar ao luxo de deixa-la. Jamais. E eu posso tolerar que me odeie pelo resto da vida. Eu fico em paz apenas por saber que estás viva para fazê-lo.

- Não és Deus algum, Benício. E, por mais que ela não aceite, Vitória também não é. Deus o tiraria da minha vida no tempo dEle, porque é assim que a vida funciona!

- Talvez esse tivesse sido o tempo dele.

- Não tinha que ser você! Não tinha que ser a mulher com quem casaste, a quem meus filhos chamam de tia! Não tinha que ser assim! - Gritou Marieta, chorando.

- Nós fazemos escolhas difíceis o tempo todo. Mas, talvez a única coisa em que eu e Vitória vamos morrer em concordância, é que jamais nos arrependeremos do que fizemos.

- Mas vocês precisam! Precisam arrepender-se! - Exclamou Marieta, alterada. - Se não, o que isso diz sobre vossas almas? Como poderão ser salvos?

- Não acreditamos em Deus, então... Arrepender-se é como desejar que ele ainda estivesse aqui e o que fizéssemos fosse desfeito. Arrepender-se é deixá-lo machucar-te mais uma vez. Arrepender-se é ter deixado Vitória ter... - Começou Benício, interrompendo a si mesmo.

- O quê? Ter o quê?

- Ela não lhe contou? - Perguntou Benício. Marieta negou. - Lourenço a seguiu até o banheiro após o jantar. Ele estava bêbado. Tentou violenta-la.

- O quê? Não. Não é possível, eu... Ah, Meu Deus...

- Vitória nem sempre estivera certa do que estávamos fazendo, sabia? Menos do que eu, mas... Ela também hesitou. Nada disso foi fácil para nós, de forma alguma e eu não quero que penses que foi.

- Jesus... - murmurou.

- Ela estava com medo, apesar da determinação. Primum non nocere¹ se aplica para ela também. Ela odiava Lourenço talvez tanto quanto eu, mas não queria matar uma pessoa. Mesmo sendo ele.

- Percebes como falas? Escutas a si mesmo? Como consegues coloca-la em um pedestal tão alto depois de tudo? - Questionou Marieta, indignada.

- Como eu falo da minha mulher meramente problemática e insensível é o de menos. Percebes como falas de Lourenço depois de tudo?

- Não se atreva. - Ordenou Marieta, com a voz estrangulada.

- Perdoe-me. - suspirou - Mas Vitória não teve escolha, no fim das contas. E eu meramente ajudei a mover o cadáver.

Marieta tinha a vista desfocada enquanto encarava o nada tentando processar tudo aquilo. Parecia ter algo entalado na garganta e um aperto no peito que doía de formas inexplicáveis. Aquela dor que sentira, a amargura do luto e todos os demônios os quais ela enfrentara até conseguir superar a imagem do corpo de Lourenço estirado no seu corredor voltou. Seu coração estava estilhaçado de tal forma que ela se sentia fisicamente fraca, como se a gravidade lhe puxasse para baixo e ela mal encontrava forças para resistir.

- Saia. - Ordenou ela, por fim, com a voz chorosa.

- Nêta...

- Apenas vá embora.

Benício não discutiu. Enxugou as lágrimas enquanto deixava a biblioteca e saiu.

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¹Primum non nocere ou primum nil nocere é um termo latino da bioética que significa "primeiro, não prejudicar".

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