Capítulo LVII - Saudades
Vitória folheava com saudosas memórias o álbum de fotografias de sua família. Vinte e dois cartões de natal; em catorze deles, ela estava presente e em quatro desses sua irmã menor estava também. A tuberculose tomou dela a mãe e a irmã no mesmo dia. Quando foram contar à Senhora Eliza que a pequena Isabel havia partido, a mesma entregou-se à morte, alegando ter matado a própria filha ao transmitir a doença para ela. Por muitos anos, Vitória foi consumida pela ideia de que ela não era motivo o suficiente para que a mãe não desistisse de lutar. Mas foi em 1921, quando ela viu uma vacina efetiva contra a tuberculose ser aplicada pela primeira vez em Paris, que ela percebeu que a mãe teria morrido de qualquer forma - o coração partido apenas a levou mais cedo.
- É a primeira vez que decoro minha própria casa para o Natal. - Comentou Vitória. Ela, Sofia e Dona Ivete estavam cercadas de enfeites enquanto decoravam um pinheiro de quase dois metros na sala de estar.
- Está ficando lindo, Dona Vitória. - Disse Dona Ivete.
- Sinto falta da neve. - Disse Sofia, rindo, enquanto mexia em uma caixa de neve falsa.
- Eu também, Sofia. - riu - Tinha esquecido-me de como era passar o Natal aqui... Eu estaria pensando em patinar em algum lago nos arredores de Kent, mas, ao invés disso, estou pensando em mergulhar sem roupa na Praia de Ipanema.
- Ai, ai, ai, Dona Vitória! - Repreendeu Dona Ivete. Sofia e Vitória riram. - O patrão vai ter um infarto lá da terras uruguaias se a senhora continuar assim.
- Die Witwenschaft würde mir passen... - Resmungou Vitória. Sofia lançou-lhe um olhar de desaprovação. Vitória deu de ombros.
- A senhora nem nos contou que ele tinha vencido a corrida lá em Montevideu. - Disse Ivete. - Fiquei sabendo pela Graça que veio contar que a Dona Marieta estava feliz da vida.
- Mesmo? Eu devo ter esquecido. - Respondeu Vitória, cínica.
- Eu imagino que estejas ansiosa para que ele volte, patroa.
- Ansiosíssima. - revirou os olhos.
- Quando o Senhor Benício volta, Vitoria? - Perguntou Sofia.
- Ele disse que chegaria a tempo para o Natal. Provavelmente dia vinte e dois ou três.
- Eu não sei pra que deixar para vir tão em cima. - Comentou Dona Ivete. - Agora que ele já venceu a corrida, o que mais vai ficar fazendo naquele país?
- Los casinos y las chicas. - Respondeu Vitória, sarcástica. Ivete e Sofia olharam-se.
- Ele deve ter suas razões para ficar. - Disse Sofia.
- Sim, sim. - Assentiu Dona Ivete. - E tenho certeza que ele deve estar morrendo de saudades da senhora.
- Ah, sim. - Disse Vitoria, soltando uma risada. - Ele deve.
Uma aglomeração de vestidos brilhantes e smokings estava formada em volta de uma french roulette no Casino Carrasco em Montevideu, aguardando ansiosamente o resultado da aposta de mil pesos que havia sido feita em um corner. A roleta parou e todos ergueram suas taças na mais pura euforia quando a pequena bolinha branca repousou sobre a casa de um dos quatro números apostados. Os mil pesos foram multiplicados por oito e Benício foi para o bar tomar sua dose da vitória antes de retornar para sua mesa.
- Aproveitando tua onda de sorte? - Comentou Alberto quando Benício retornou para a mesa.
- Muito! - Respondeu Benício, rindo, enquanto acendia um cigarro. - E vocês, aproveitando Montevideu?
- Muito! - Responderam Alberto e Fernando em uníssono.
- Ótimo, amanhã iremos para Punta del Este. Alugaremos um iate. - sugeriu.
- No momento, eu estou pensando em colocar-te no próximo navio para Roma e manter-lhe uma temporada inteira lá. - Disse Fernando. - Eu ganharia uma senhora promoção se conseguisse lhe fazer passar quatro meses pregando o nome da Bugatti.
- Eu sou um piloto, não um garoto-propaganda, Fernando. - riu - Indianópolis. É para onde quero ir na próxima temporada.
- Achei que corresses por diversão. - Alfinetou Fernando.
- Eu corro para ganhar, diversão é parte do processo.
- Bem, cavalheiros, eu irei voltar para o hotel. - Anunciou Alberto. - Acho que não tenho mais idade para ver o sol nascer de smoking. - riu - Boa noite.
Alberto saiu e os outros dois permaneceram na mesa bebendo e fumando em meio à agitação do casino. Depois de discutirem sobre corridas e negócios, Fernando pediu ao garçom que deixasse a garrafa na mesa.
- Viveste no Uruguai antes, não foi? - Perguntou Fernando.
- É, morei aqui em mil novecentos e vinte e um. - Respondeu Benício.
- Então sabes bem onde arrumar uma rapariga por aqui, não é?
- Não sei, na verdade. - pigarreou - Eu estava aqui pelo Gran Premio e só.
- Ah, não se faça de bobo. Quase um ano por aqui e não apreciaste a beleza das uruguaias - riu - Bem, já que é assim. De qualquer forma, eu sugiro sairmos daqui para aproveitar o resto da noite em outro lugar. Jogue um níquel para qualquer um desses garçons ele lhe dará um passeio completo pelos melhores clubes da cidade.
- É, melhor não.
- O que foi? - riu - Pensando na patroa?
- Não exatamente.
- Então vamos. Termine teu copo, mandarei chamar nosso carro.
Por sugestão do bartender, os dois seguiram para um clube noturno clandestino em Carrasco Norte chamado La Paloma. O local possuía uma fachada pequena e escondida em um beco pouco iluminado, mas seu interior era o contraste perfeito disso. Homens brancos muito bem vestidos cercados de dançarinas de todas as cores possíveis cobertas de plumas e purpurinas que dançavam algo parecido com jazz misturado com batuques de candombe. Benício e Fernando pegaram uma mesa enquanto assistiam o show e pediam mais uma dose de uísque.
- Estás quieto. - Comentou Fernando.
- Estou? - Respondeu Benício sem tirar os olhos da dançarina que estava no palco.
- Eu entendo. Culpa, não é?
- Culpa?
- Deixe-me adivinhar, tua mulher ligou hoje mais cedo dizendo que está com saudades e mal pode esperar para que vejas a árvore de Natal que ela montou com as crianças que também estão morrendo de saudades.
- Eu não tenho filhos e não, minha mulher não me ligou, então assumo que estejas falando de si mesmo.
- Entendes o que quero dizer. - riu - Aquela pequena hesitação...
- Não estou hesitando...
Benício perdeu brevemente a linha de raciocínio ao se dar conta que uma garota nova havia subido no palco em um espartilho cor-de-rosa repleto de laçarotes vermelhos. A luz atingiu-lhe o rosto e expôs o tom esverdeado deles, emoldurados pelos cachos negros e pela forte maquiagem. Havia qualquer coisa familiar e fascinante nela, como mexia os leques de plumas e encenava uma dança desajeitada que a deixava boba e repleta de charme.
- És recém-casado, Benício. Logo, logo esse senso de compromisso some. Quero dizer, estás fora do país, o casamento não é válido aqui. Leis internacionais ou algo assim. - riu.
- É, não funciona assim. - Resmungou Benício, sentindo-se levemente embriagado e ainda compenetrado na dançarina.
- Eu entendo perfeitamente. Casaste com a garota dos seus sonhos, não?
- Não.
- Ela é inteligente, ela é bonita, ela é diferente de todas as outras. E a amas de todo o coração.
- Também não.
- Mas és jovem. Na flor da idade, eu diria. Tens o que, vinte e nove? Trinta?
- Trinte e um.
- Viu? Praticamente um garoto. Casamento é ótimo, entenderás perfeitamente quando tiveres um filho. Mas somos homens. Como podemos esperar que nossas casas estejam bem edificadas se nós não pudermos ceder à nossa natureza?
- Discurso bem grande para justificar adultério ou algo assim.
- Eu sei. - riu.
- Bem, eu não entendo absolutamente nada de casamento. Não me casei por amor ou seja lá o que isso sejas.
- Casaste por que, então? Não me digas que casaste por conveniência? - riu - Não é muito a tua cara.
- Longa história...
Fernando reparou que a garota do palco tinha a toda a atenção do amigo. Fez sinal para o garçom para que o mesmo trouxesse mais duas doses e prontamente os copos chegaram.
- Gostas dela? - Perguntou Fernando.
- O quê?
- A garota no palco. Bonita, não é?
- É.
Fernando chamou o homem franzino de fraque que andava de um lado para o outro do salão e sussurrou em seu ouvido enquanto apontava para uma moça de cabelos loiros do outro lado do salão. O homem assentiu e saiu prontamente em direção à garota. Fernando levantou-se.
- Aonde vai? - Perguntou Benício.
- Estou fazendo-lhe um favor. - riu - Não espere até o show acabar para assegurar tua princesa. Ela parece bem requisitada.
- Certo...
- Quer um conselho?
- Não. - riu.
- Pense na última vez que ela lhe tirou do sério. Acredite em mim, acaba com qualquer remorso.
Benício demorou um tempo para entender o que Fernando queria dizer com aquilo. Chamou o gerente, o mesmo homem pequeno que vestia um fraque antiquado, e pediu que lhe arranjasse um quarto e garota morena que havia acabado de finalizar a sua apresentação. Finalizara sua bebida e levantou-se, percebendo estar mais bêbado do que achava. Os quartos ficavam no andar de baixo, subterrâneo, e ele caminhou por um corredor estreito e escuro, repleto de portas cujas paredes finas deixavam escapar os sons típicos daquele lugar. Atrito de peles, molas rangendo, grunhidos, gemidos, gritos... Não se lembrava da última vez que havia estado em um lugar como aquele. Estava de frente para a porta entreaberta do quarto que lhe havia sido designado. Vislumbrou a garota de rosa sentada de frente para um espelho em uma penteadeira, retocando o coração vermelho em seus lábios. Jogou-se na parede do corredor, bem ao lado da fresta que o separava da dançarina dos olhos verdes, sem coragem de adentrar o quarto. E começou a rir.
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