Sob um Céu Desafortunado
Naquela noite cheia de emoções conturbadas, sonhou que afundava. Seu corpo imóvel caindo pesadamente na precipitação. Sentia que não existia fundo e continuaria a submergir profundamente, sem parar. O fluxo da água que a envolvia escorria junto para um caminho desconhecido, vagarosamente engolindo-a com a escuridão insondável que a cercava. Seus olhos estavam fechados, não tinha necessidade de tomar atenção em um ambiente já tomado pelas sombras, só conformara-se em ficar à deriva até chegar no destino final. Piscou ao perceber uma diferença na atmosfera, as turvas e engolfantes águas substituídas por uma fluente dirigente de luzes.
Não.
O que imaginou que fosse um lago, na verdade, não passava do estado mais puro de energia que a saudou com um cálido abraço sensorial. No centro, onde encontrava-se o núcleo, viu um vulto gigantesco de uma criatura aparentemente não hostil. Ele estava totalmente consciente da presença dela, entretanto, não manifestou-se ou esboçou irritação pela invasão em seu território.
Aquele ser possuía uma presença estranha, quase como se preenchesse o espaço ao redor, uma influência onipresente.
Acordou com um peso em seu peito. Olhou ligeiramente grogue para o local, vendo uma garotinha aconchegada em seus braços. A princípio surpreendeu-se com o contato, mas o aceitou emocionada e ligeiramente confusa. Viver praticamente isolada do mundo exterior atrás dos imponentes muros da mansão converteu-lhe em um indivíduo ignorante às relações humanas, inexperiente com o básico da socialização que não fosse para vínculos de negócio por conta das pessoas que rodeavam seu avô. Sua única peça de desenvolvimento social e afetiva – sua querida irmã mais velha – não convivia com ela, tudo que sabia era ministrado pelos professores de etiqueta e devido a leituras e estudos, poderia afirmar com convicção sua ingenuidade em certos níveis, embora não fosse facilmente ludibriada quanto a questões mais pertinentes ao campo econômico – e as demais áreas correlatas.
Acarinhou ternamente a cabeça da menina como recordava-se de como sua irmã fazia sempre que o medo ou a tristeza lhe abatesse. Teve um vislumbre de Crow saindo do barraco, não muito certa se confiaria em sua visão nebulosa do pós sono. Com extremo cuidado, arrastou-se para fora do colchão surrado que serviu como uma cama, indo direto para o rapaz que ajustava o capacete para sair com seu D-Wheel.
– Bom dia, Freya. – meneou a cabeça para cumprimentá-la.
– Bom dia, Crow. Onde vai? – havia urgência em sua voz, algo que o ruivo notou.
– Eu vou buscar comida e ver o que mais posso arranjar. – informou, checando o motor do D-Wheel.
– Eu posso ir junto?
Crow franziu a testa. Em sua percepção, Freya não parecia muito habituada a sair com frequência, pois sua ansiosa vontade em acompanhá-lo soava genuinamente infantil. Seu jeito imperito ainda lhe traria problemas no futuro, mas não negou – mantê-la perto assegurava que lidaria melhor com imprevistos semelhantes ao de ontem.
– Claro. Eu só acho... – engasgou surpreso assim que as mãos delicadas enlaçaram sua cintura subindo na garupa da moto, frisando o quão perto estavam.
Desconcertado, engoliu em seco, afugentando o rubor fumegante que ameaçava tingir suas bochechas.
– Segure firme. – alertou, retomando a compostura. Black Bird zuniu e com rapidez deslocou-se pelas ruas vazias e quietas.
– Aqui é sempre assim? – perguntou através dos ruídos projetados pelo D-Wheel.
– Sim, na maior parte do tempo. Essa é uma parte menos habitada. Tem lugares mais tumultuados, é claro. – explicou, diminuindo a velocidade. – As pessoas que moram aqui estão mais espalhadas, escondidas nas estações, em centros comerciais abandonados.
– Oh. – olhou curiosamente os arredores, comiserada. – É uma verdadeira discrepância. Alguns vivendo tão bem e outros sobrevivendo na miséria.
– Infelizmente. Mas fazemos o melhor possível para melhorar de vida.
Freya fitou o olhar desbravador do rapaz com um sorriso, contagiada com a esperança que enxergava neles. A diferença gritante que distinguia-o das pessoas fúteis e sem conteúdo do grupo elitistas que conhecera durante toda sua vida.
– Eu acredito. Vocês são o completo oposto de como os Tops os descrevem. Chega a ser irônico.
– As pessoas da Nova Domino não conhecem a verdadeira face da pobreza, então nunca entenderam o que é não ter o que comer. – Crow estacionou o D-Wheel estrategicamente escondido em um beco. Freya deu alguns passos experimentais para fora dali, seguida pelo ruivo. – Você é engraçada. Nunca andou por aí? – zombou, recebendo um olhar inocentemente perplexo e embaraçado.
– Não. Eu nunca fui muito longe do planejado pelos meus tutores. – respirou fundo, absorvendo a brisa leve lhe trazendo a real sensação de liberdade.
Freya era como um pássaro cujas asas foram cortadas para que não saísse de seu confinamento, admirando o céu de longe, impaciente para ter a oportunidade de alcançá-lo também.
– Além disso, tenho que cumprir um objetivo
– Bem, eu lamento a brincadeira. – esfregou a nuca, constrangido. – Eu não tinha ideia que vivia assim.
– Está tudo bem. Eu não sei nada fora da minha bolha. Esse mundo... Tudo é tão cheio de vida. É estranho e assustador. – o brilho nos olhos claros dela acendeu um sentimento doce no rapaz.
– Enquanto estiver por aqui, prometo apresentar a qualquer coisa que desejar conhecer.
– Muito obrigada – segurou a mão dele entre as suas em um gesto de agradecimento.
Crow corou, pigarreando.
– Não precisa. Vamos.
Freya assentiu.
O rapaz adentrou uma das lojas em ruínas como se tivesse estado ali antes, sem qualquer intimidação. Ele vasculhou as prateleiras, jogando tudo em bom estado em sua bolsa; coletando peças de roupas em bom estado, brinquedos e alguns utensílios úteis. Freya assistiu-o agir sem ter certeza de como auxiliá-lo em sua tarefa.
– E o que estava procurando por aqui? – a voz dele ecoou de um canto que não identificou. – Uma dama do seu porte não escolheria esse lugar como destino de férias.
– Eu queria um lugar longe de tanta gente me sufocando. – acomodou-se sobre caixas velhas. – Recebi uma carta informando sobre o falecimento da minha irmã mais velha...
O silêncio instalou-se ao proferir a última sentença.
– Eu lamento pela perda.
– Não. Minha irmã não morreu e vou provar. – alterou-se por um instante, voltando a razão logo em seguida. – Eva não cometeria o erro que eles disseram. Não confio nessas pessoas!
Crow reapareceu uma fina camada de poeira sobre si, limpando-se com leves batidas.
– Se tem tanta certeza disso, então é bom investigar mesmo. – balançou a cabeça para livrar-se do pó que o cobria.
Um som alto de sirene irrompeu a quietude. Crow agarrou com cuidado o pulso de Freya e correu para buscar Black Bird para evadirem sem levantar suspeitas. Às claras, a Security tornava-se mais persistente em suas perseguições e arriscar encontrá-los, naquele momento, não seria uma boa ideia.
– Droga. Vamos. Ficar aqui não é seguro.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro