Contraste de Cinzas
A estrutura do desenho lhe remetia a aspectos da arte asteca, um estilo pouco proporcional e um tanto arcaico ou, simplesmente, as habilidades do Rei com gravuras não seria das melhores. Não julgava o talento de Jack quanto a sua retratação do símbolo que supostamente deveria ser um dragão em um arco semi aberto quase semelhante ao ouroboro, contudo, dava para captar a essência do que ele desejava transmitir e com bastante excelência.
Sua história elaborada quanto a origem da marca – a dimensão de sua importância –, lhe despertava um fascínio sem precedentes e estava mais que disposta a se aprofundar ao máximo na narrativa e destrinchar cada enigma arraigado naquela mitologia. Movida pela curiosidade, atreveu-se a traçar as linhas rubras tão arrogantemente gravadas no braço firme do noivo em um gesto puramente instintivo, ansiando estudar mais de sua composição. Talvez não com igual interpretação, com distinções óbvias com relação a desígnios e uma função bem mais clara, todavia, sentia uma verdadeira e profunda empatia, como se ambos carregassem uma marcação que lhes queria pregar uma mensagem – e Jack sabia a dele.
Em tenra idade, quando já tinha um conhecimento de sua condição de saúde deficiente, descobriu que havia um círculo estranho estampado em suas costas, era categoricamente grande e cobria o centro das omoplatas com uma coloração acinzentada, o que não a permitia certos tipos de vestimenta que expusesse a área – e não correr o risco de ser questionada com horror por macular sua pele com tal figura paradoxal. Não tinha uma real elucidação para seu surgimento além de ser uma fonte de transtorno quanto a sociedade aristocrata, sequer uma resposta contundente para seu propósito e sem uma luz sobre o assunto, acabou por ser postergado.
– Signatários estão destinados a lutar contra os Signatários das Trevas? – indagou, não soltando o braço do duelista, que também não demonstrou desconforto com o ato. – Isso quer dizer que estão em guerra?
– Sim, estamos presos em uma batalha que depende até o futuro do mundo. – percebeu um conflito no brilho púrpura dos olhos dele. – É algo que preciso lutar como um dos escolhidos.
– Você é incrível, Jack – sorriu inspirada com a falta de temor do rapaz com a possibilidade de enfrentar seres que controlam entidades sombrias que planejavam subjugar o mundo ao seu bem prazer. – Como um herói.
Ao ouvir aquilo, arregalou sutilmente os olhos. Estava tão acostumado com pessoas o bajulando pelo seu status e por sua pontuação invicta, que todos os elogios e a veneração que recebia do público eram apenas uma confirmação constante de que ninguém estaria no mesmo patamar e que absolutamente ninguém lhe faria renunciar o trono que ganhou através de suas habilidades invejáveis, estratégias destrutivas e com seu coração – embora tivesse ciência que, no fundo, fora corrompido pelo próprio título que lhe conferiam –, que alguém o ver como um herói soava estranho e irônico. Um indivíduo que jogou sujo com aqueles que um dia chamou de amigos e irmãos não possuía esse caráter limpo e isento de culpa. Uma descarga moral lhe fez, inconscientemente, afastar as mãos de Freya de si.
– Esse Dragão Carmesim é como um tipo de guardião do planeta? – recuou, porém, ainda mantendo o ritmo do diálogo para extrair mais informações.
– Não sei ao certo. E aconselho a não se envolver demais nisso. É perigoso. – alertou, cruzando os braços, fechando qualquer abertura em sua linguagem corporal.
– É perigoso para você também, senhor Atlas – ele a fitou com o comentário audacioso.
– Você não seria capaz de lidar com isso. Então é melhor que permaneça somente como um tópico de conversa que uma investigação, Freya – concluiu, olhando-a com seriedade. – Seu avô me alertou quanto a sua curiosidade.
Freya enrubesceu com o afrontoso e assertivo apontamento à suas aventuras em Satellite. Não desistiu de encontrar dados que sustentem sua teoria relacionada a morte de sua irmã que certamente orquestraram nos bastidores, independente da oposição absoluta de seu avô – sobretudo agora que os preparativos e o sepultamento já ocorreram. Se quisesse obter a liberdade para se dedicar totalmente a sua extensa averiguação, teria que se submeter as ordens do patriarca Reinhard voluntariamente. Feito um bom sinal e uma união com uma dinâmica bem funcional, Jack Atlas tornava o sacrifício de se privar, não exclusivamente aceitável, como suportável. Desta forma, o enxergava como um amigo precioso assim como via Crow com igual importância.
– Creio que meu avô foi um pouco indiscreto lhe contando tais coisas – respirou fundo, meditativa.
– Quanto menos você mexer com essa história, mais segura ficará. Se atente ao ditado de não se meter onde não é chamada.
– Até sinto-me lisonjeada por prezar tanto por minha vida, no entanto, é minha decisão se quero ou não fazer parte disso. – tamborilou tediosamente os dedos na superfície plana da mesa. – Não estamos casados e tenho autonomia para fazer minhas escolhas, Jack.
– Não quero que nada aconteça com você – admitiu em tom condescendente, nobre até. – Não vou te impedir se é o que quer, mas tome cuidado.
Freya sorriu, segurando ternamente a mão dele entre as suas, o gesto tinha sido intencionalmente carinhoso no intuito de compartilhar o sentimento de agradecimento e Jack, que costumava encarar todos com olhar de frente e sem titubear, não evitou desviar com o contato que, pra ela, inconsciente do efeito da ação, não lhe afetou em absoluto. Não seria um eufemismo dizer que nos padrões que via, ela, de longe, era a donzela mais inocente que encontrou. Apesar da pomposa educação ter lhe proporcionado um conhecimento superior, no âmbito das emoções era completamente leiga. Não rejeitou-a, também não fez muita questão de afugentá-la.
– Eu agradeço – exprimiu contente e observou novamente o desenho com curiosidade.
– Agora que sabe sobre mim, tenho direito ao mesmo.
– Oh – o fitou, hesitante. – Não sei como adquiri essas habilidades para ser honesta, um dia simplesmente percebi que as tinha. – havia muito de si que não passava de um terreno desconhecido e inóspito. Desejava compensar a transparência do Rei com sua verdade, contudo, não possuía nada que lhe credibilizava e embasava sua história.
Desenterrar uma área tão instável não lhe soava bem.
– Não é difícil deduzir isso. – concluiu com um tom particularmente compreensivo. Como um profissional com anos de experiência, Jack era um erudito na arte de ler seus adversários em um duelo e montar uma estratégia que fosse de acordo com sua percepção e não era diferente naquele momento, ele estava tentando, com cautela e sutileza, encorajá-la a confidenciar seu segredo. Talvez sua ingenuidade em ver a situação como uma forma de evoluir a relação de ambos realmente a incentivasse a falar, principalmente por carecer de amigos para poder desabafar.
– Eu... Tenho um histórico um pouco estranho, por assim dizer.
– Não vejo um real problema nisso, Freya – bebericou o café com uma sutileza graciosa que lhe rendia admiradoras assíduas que o observava de longe. – Se vamos mesmo oficializar essa relação, temos que ser mais claros.
– Meu passado não é muito interessante. Nunca tive uma infância normal por conta de uma doença. – suspirou, arranhando levemente a superfície da mesa. – Eu nasci sem batimentos cardíacos – despejou após uma longa meditação interna. – Praticamente morta. Meu pai desenvolveu um aparelho que substituiu meu coração por um tempo. Claro que atualmente meu coração é normal com algumas limitações que não posso tratar, infelizmente. Aquilo que aconteceu antes é decorrente dessa enfermidade, emoções muito intensas podem literalmente me matar. Só que ao mesmo tempo que minha saúde se debilita, esses poderes crescem com mais intensidade. Creio que esse dom seja parte da minha herança ou alguma compensação do universo por ter uma vida tão medíocre – riu da própria observação auto depreciativa.
– Você tem uma maneira estranha de ver as coisas – dessa vez Jack resolveu demonstrar apreço e consolo ao encostar a mão na dela. – É uma garota formidável, Freya. Sua doença não fala por você.
– Jack... – um som interrompeu sua linha de raciocínio e imediatamente atendeu o celular que tocava uma melodia ritmada, já imaginando que seu avô tivesse à sua procura. Contudo, por ter avisado de antemão que estaria com seu noivo, ele não “atrapalharia”. Surpresa por ser uma chamada desconhecida, ficou tentada a desligar sem realmente fazê-lo, visto que não são muitas pessoas que possuíam seu número. Com um semblante apologético, atendeu e surpreendeu-se ao escutar em alto e bom som a voz familiar: Isaac, um companheiro de trabalho de Eva.
– Finalmente, Freya – inspirou fortemente. – Estive um bom tempo tentando entrar em contato.
– Eu não tive notícias suas depois do incidente – comentou, incerta. – Aconteceu alguma coisa?
– Não posso contar por telefone, pode me encontrar no cais da cidade? Estou em Nova Dominó e precisamos urgentemente conversar. – esclareceu claramente nervoso.
– Tudo bem. – concordou.
– Tenho um recado importante pra lhe dar, então, por favor, não demore.
×××
O cheiro de maresia impregnava o local e irritava suas narinas, obrigando-a a fungar ocasionalmente, uma reação um tanto deselegante. As feições de Jack denunciavam uma falta de cortesia com o estranho homem que os abordou, mesmo que não existisse um motivo real para tamanha antipatia, ele não cedia e estabeleceu uma postura endurecida e pouco amigável.
Isaac ajustou os óculos com um brilho seguro diante da atmosfera hostil que manava do Rei. Como um integrante do grupo de colaboradores e cientistas de renome, Isaac ostentava distinção, seu rosto compenetrado não esboçava grande inquietava, embora houvesse uma leve, quase imperceptível, ruga de preocupação. Freya o conhecia há um bom tempo devido ao convívio com Eva e notava a maneira que ele, entre estudos e até conversas triviais, a olhava: o amor reprimido e a devoção muito presentes.
– Agradeço a sua presença, senhorita Freya – saudou cordialmente.
– Estou surpresa com o contato repentino depois de tanto tempo – retorquiu com prudente inquisição.
– Eu queria ter te procurado antes do incidente, mas não pude – a brisa salgada dançou ao redor de todos ali. – Eva esteve um longo período focada no trabalho em sua tese. De qualquer forma, preciso repassar o recado.
– Um recado? – a firmeza em sua voz desapareceu, dando lugar a ansiosa expectativa. – De quem?
– De Eva.
Engoliu em seco.
Seu peito se aqueceu com a verdade libertadora que, em seu íntimo, sabia.
– Esse rapaz vai mesmo escutar nossa conversa? – Isaac inquiriu com visível tensão. – É alguém confiável?
– Ele é meu noivo e é alguém confiável – declarou convicta, pesando a confiança que ele depositou nela ao revelar a origem de sua marca de nascença.
– Eu posso responder por mim – Jack contrapôs, alinhando-se com Freya. – O que deseja com minha noiva?
– Oh, noivo? Quem diria, huh? – arqueou a sobrancelhas incrédulo. – Se você diz... De todo modo, Freya, há certos pormenores que devem morrer aqui.
– E o que quer dizer?
Isaac ponderou, alternando entre Freya apreensiva e a figura naturalmente hostil do nomeado Rei. Sem muitas opções, apenas se resignou a falar:
– Eva está viva. Entretanto, não posso revelar sua localização pelo bem dela e o seu. – proferiu com pressa, esquadrinhando os arredores com avidez. – Tivemos que resolver um assunto de extrema importância e ela não queria te envolver nisso. Estou lhe contando isso, porque podemos confiar em sua discrição.
A notícia desencadeou duas grandes emoções opositoras que se chocaram, uma fazia suas pernas enfraquecerem a ponta da gravidade puxá-la mais para baixo e desorientada, enquanto a outra a impelia a chorar desenfreadamente. Não obedeceu nenhuma das duas, sem nem se dar conta, simplesmente seu corpo, para se resguardar do impacto, se desligou momentaneamente, somente o bastante para conciliar as coisas para não se sobrecarregar.
– Cadê a Eva? – foi pra cima do cientista, perdendo a compostura. – Diga-me! Eu quero saber! Isaac, por favor! Eu quero saber!
– Não posso dizer, Freya. E também não tenho muito tempo. Por favor – advertiu, recuando. – Lamento muito mesmo. Cuide-se, senhorita Reinhard.
Em estado de assombro, incapaz de mover um músculo que fosse para ir atrás da único alma viva que supostamente tinha conhecimento do paradeiro de sua irmã, assistiu o homem sair do seu campo de visão com rapidez e aura misteriosa que comportava. Suas pernas não resistiram a pressão gravitacional e caiu sobre seus joelhos.
– Jack – se ouviu dizer sem sobriedade, anestesiada demais para reclamar consigo mesma por perder a chance de obter mais respostas. Em parte, estava feliz por confirmar suas suspeitas quanto o real destino de Eva. No entanto, a exultação não durou muito visto que não a veria por um longo período. – Pode guardar esse segredo?
Jack não respondeu de imediato, apenas tocou seu ombro com feições indefinidamente céticas.
– Temos um acordo, não? – murmurou com a firmeza e amabilidade para fazê-la não se abater com o infeliz encontro, renovando seu espírito.
– Sim – sorriu, temendo que o rapaz visse, pelos grandes olhos brilhantes, as lágrimas que ameaçavam transbordar.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro