Casi e o Bloco Negro
Era noite em Jataí, cidade do interior de Goiás que tinha toque de recolher imposto pelas autoridades conservadoras. Meia noite e todos os estabelecimentos que forneciam alguma diversão deviam estar fechados, exceto boates, com isolamento acústico potente.
Casi aspirou o ar da noite úmida, ajeitou a mochila nas costas e correu pelas ruas desertas, rezando para não encontrar uma viatura. A prótese incomodava. Às vezes pensava em viver sem ela, mas ter duas pernas era mais socialmente aceito.
Bem, para um homem negro que já fora chamado de saco de lixo, tição, macaco e piche, Casi estava dando importância demais para uma perna.
Quando sofria discriminação, apesar do ódio que sentia, ele ria, afinal aquilo tudo só mostrava como humanos são idiotas. Os imbecis não tinham dimensão do quanto estavam perdidos.
Casi chegou ao endereço previamente combinado e olhou para ambos os lados antes de destrancar o portão de grades de ferro e entrar.
Um cheiro bom de galinhada com pequi encheu seu nariz. Como ele amava aquela comida bem temperada e de aroma forte. A boca encheu-se de água.
Casi entrou na casa sem pedir licença, nem precisava, já era esperado.
Assim que adentrou a sala, viu a galera sentada o sofá. Matheus improvisava Bella Ciao no violão enquanto Bia e Amanda cantavam, emocionadas, a letra daquela canção. Tomavam coragem, ele sabia.
- Boa noite, povo! - Cumprimentou.
- Boa noite, Casi. - Responderam.
Casi sorriu, gostava dos companheiros de luta e de vida.
- Trouxe a parada, Casi? - Matheus perguntou.
- Claro - Casi depositou a mochila sobre uma cadeira meio manca -, estão aqui.
- Opa, vamos fazer muitos Molotovs. - Bia gargalhou.
- Sem dúvidas. - Casi respondeu.
Depois seguiu para a cozinha, onde a comida chamava.
Pedro, Rodrigo, Vinicius, Ana Maria, Mariana, Josefina, Evelin e Danúbia estavam ali, sentados à mesa enquanto cuidavam das panelas e discutiam o plano que seria executado na madrugada.
O motivo daquela reunião de emergência era um universitário que abusou fisicamente da colega de curso e foi acobertado pela direção da universidade. O idiota em questão fazia parte de um grupo simpatizante da corja de Jairson Bolagato, um político corrupto, misógino, homofóbico e racista que via sua carreira em plena ascensão.
Casi era militante sim, pois em todos os seus anos de vida, percebera que a humanidade estaria perdida se não fosse por aqueles que lutavam desesperadamente contra as correntes anti povo.
- Oi gente! - Cumprimentou.
- Camarada! - Mariana devolveu o cumprimento com entusiasmo antes de dar um beijo em sua namorada Ana Maria.
- Senta aí, logo a bóia fica pronta. - Rodrigo fala antes de se levantar e destampar a panela de arroz.
O aroma da comida ficou ainda mais forte e nocauteou Casi, que se sentou em uma cadeira e sentiu o estômago roncar.
- Onde está o resto do povo? - Perguntou naquele jeito de falar, tipicamente goiano.
- Tá aprumando, logo chegam. - Rodrigo respondeu.
- Tão vindo do oco da taboca. - Pedro comentou arrancando gargalhadas de todos.
- Do pé da serra, de certo. - Danúbia entrou na brincadeira.
Casi olhou para Josefina e Evelin que confabulavam aos sussurros, ambas pareciam preocupadas.
E pudera. A estratégia que arranjaram para chamar atenção da população era um pouco arriscada, mas, deveria a direção da universidade ficar impune pelo que fizera?
Jamais!
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Na entrada da universidade, sob gritos de protesto e faixas que gritavam ao mundo a verdade sobre o acontecido, frente à uma trincheira de pneus em chamas havia a confusão de viaturas, fardados, tiros e pessoas desesperadas correndo para todos os lados.
Os cães serviam às corjas.
Os companheiros resistiam bravamente, mas Casi já estava cansado daquilo. Sabia que podia colocar fim naquele embate, mas não quis fazer isso.
Como estratégia de proteção, correu para a outra rua que fazia esquina com a Avenida Riachuelo, onde aprontaria mais arsenal para dar cobertura à fuga dos companheiros. Uma batalha não era uma guerra toda, saber a hora de recuar muitas vezes é mais importante que o proprio ataque.
O coração de Casi quase parou quando se deparou com a cena seguinte.
O mesmo universitário estuprador, motivo daquela manifestação, que estava do lado de lá da briga travada, tinha seu corpo sobre o de Josefina.
Ela estava inerte e sangrava com o rosto quase desfigurado por uma surra.
- Eu sei que está gostando da minha pica, sua putinha do Bloco Negro. - O homem loiro falava para o cadáver. - Te ensino direitinho qual é o lugar de mulher. Você não merecia nem mesmo ser estuprada, preta safada, porém eu te faço esse favor. É gostosinha demais. É pra isso que preta fedida serve, pra trabalhar e pra dar o cu pro patrão.
O coração de Casi se encheu do mais genuíno ódio diante daquela cena.
Sem pensar mais, largou a mochila no chão e avançou contra o ser desprezível que estava à sua frente. Não precisava medir as consequências de nada, afinal ele era quem ele era.
Socou a cara do homem até quase matá-lo. Fez questão de deixá-lo vivo, mas acabou com as chances de ele continuar fisicamente independente.
Irado, Casi correu até a mochila. Arrancou as roupas ficando apenas com a bermuda vermelha.
Depois de colocar o gorro vermelho na cabeça e o cachimbo na boca, imediatamente expelindo fumaça dele, arrancou os sapatos e a prótese.
Olhou para o céu antes de dizer:
- Essa palhaçada de hoje acaba aqui, ou não me chamo mais Saci Pererê.
Os olhos de Saci se acenderam em brasa. A fumaça do cachimbo aumentou e ele girou tão rápido que se transformou em um redemoinho enfumaçado.
O vento forte e incontível se lançou contra os adversários do Bloco Negro que se recolheu e fugiu assustado diante da fúria da natureza.
Saci ficou feliz porque os amigos foram embora. Se certificou de que haviam câmeras por perto para gravar a carnificina que faria ali.
Quando terminou o trabalho, o chão estava banhado em corpos e sangue.
Saci soltou duas baforadas de seu cachimbo e gargalhou. Nunca fora conhecido por ser piedoso.
Sua missão estava cumprida e por isso resolveu partir por uns tempos.
Jataí não se esqueceu do Saci tão cedo.
Casi nunca mais foi visto.
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1027 palavras
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