VINTE E SEIS
GUY
— Para onde estamos indo exatamente? — perguntei, enquanto passávamos pela orla da praia.
Já era tarde. O azul-escuro do céu se interpolava com o azul do oceano no horizonte, de modo que não dava para saber bem onde começava um e onde terminava o outro.
Daisy dirigia a caminhonete velha que ela chamava de carro, apesar de eu ter insistido que pegássemos a minha Range Rover. Ela disse que a caminhonete estava em perfeito estado de uso, mas os rangidos do motor a cada lombada que passávamos pareciam dizer o contrário.
— Você verá.
Estacionamos o carro em frente ao calçadão da praia. Andamos mais ou menos meio quilômetro até a roda gigante vermelha do Pacific Park entrar no meu campo de visão, suas luzes se destacando contra o fundo escuro do céu.
— O píer de Santa Monica? É essa sua grande surpresa? — Eu a encarei — Isso é o roteiro básico de todo turista que vem para a Califórnia.
— Mas eles não têm a companhia de Daisy Lynton.
— Isso eu não posso negar.
Entramos no parque, que não estava tão cheio, apenas alguns pais com suas crianças e adolescentes procurando algo para fazer.
— Meu pai trazia eu e meu irmão aqui nas férias antes de Elliot nascer — comentou, enfiando as mãos no casaco preto. Estava frio e a brisa marítima vinha na nossa direção, provocando pequenos estremecimentos no corpo de Daisy — Eu tive meu primeiro encontro aqui também. E às vezes, eu e meus amigos vínhamos apenas para beber.
Sorri. Gostava de ouvir Daisy contar sobre os pequenos fragmentos da sua vida, eu os escutava com atenção e juntava todas essas pequenas peças em minha mente como um quebra-cabeça da sua vida.
Será que um dia eu faria parte de umas dessas peças? Será que, depois que o casamento terminasse, Daisy se lembraria de mim com o mesmo sorriso que se lembra de seus amigos? Eu queria tanto que ela se lembrasse e não fazia ideia do porquê, apenas tinha esse desejo imensurável de fazer parte da sua vida de alguma forma.
— Além disso, vários filmes foram gravados no píer. Por exemplo, Forrest Gump corre pelo píer ali, o Homem de Ferro sobrevoa a roda gigante no primeiro filme... Até o aniversário da Lily em Hannah Montana é aqui — Daisy continuou, apontando enquanto falava.
— Tem certeza que esse é o melhor exemplo? — eu ri.
— É um clássico, ok? — Daisy abriu aquele sorriso que já se tornava o meu predileto — Eu imaginava que um dia teria um filme meu gravado no Pacific Park — ela caminhou até a grade que separava o parque da praia lá embaixo.
Juntei-me a ela.
— Você é talentosa, Daisy, é óbvio que um dia terá seu filme aqui — falei, sem tirar os olhos das ondas que quebravam e atingiam os bancos de areia.
Ao fundo, ouvia conversas soltas, crianças brincando, o barulho alto dos brinquedos e alguma música pop que tocava pelos alto-falantes.
— Talvez. Eu sempre fui insegura sobre... Bem, tudo na minha vida — afirmou, tentando afastar uma mecha do cabelo que batia contra sua bochecha — Estudei a noite inteira para essa prova, mas vai aparecer algo que eu nunca vi e será o fim do meu semestre ou... Eu sei dirigir, mas e se na prova de direção alguma coisa falhar? Ou eu tento ser uma boa namorada, só não é o suficiente...
Avancei minha mão até uma mecha de cabelo solto e prendi atrás da sua orelha, sentindo a sua pele quente contra a minha.
Queria poder fazer mais sobre isso. Queria arrebentar todas aquelas pessoas que já fizeram Daisy se sentir menos do que é. Queria mostrar para ela a garota incrível que ela era. Queria poder fazer algo sobre suas batalhas internas como ela vinha fazendo, sem nem ao menos saber, pelas minhas.
— Você já se sentiu assim? — perguntou, virando o rosto na minha direção.
Estávamos incrivelmente próximos. Nossos ombros e braços se tocavam levemente e eu podia sentir o cheiro de maçã dos seus cabelos.
— Acho que sim. Na infância, sempre pensei que era um peso para meus pais — revelei, sentindo o olhar penetrante de Daisy sob mim — Ser filho de um ator internacionalmente reconhecido não é muito fácil, porque as pessoas espera grandes coisas vindo de você... Principalmente meu pai — disse, cruzando as mãos — O problema é que eu nunca fui como ele. Eu criava problemas na escola, arrumava briga com os vizinhos, devo ter quase matado minha mãe de preocupação mais vezes do que posso contar — ri uma risada seca.
— O que seu pai fez? — perguntou, como se adivinhasse para onde esta conversa estava indo.
— Meu pai é filho de militares, então a resolução educacional dele era... um pouco dura — fechei os olhos, me transportando novamente para o meu eu de quatorze anos de idade, que desejava fugir todos os dias daquele lugar para sempre.
— Seu pai te batia? — a voz de Daisy endureceu.
Não respondi.
— Isso é horrível — Daisy disse em um tom irritado.
— Minha mãe foi a barreira que o impediu por muito tempo. Em compensação, ela sofreu as consequências por mim — abri os olhos novamente — Depois que ela se foi, as coisas pioraram bastante...
— Então você veio para cá?
Assenti.
— E comecei minha carreira. Nós ainda nos vemos periodicamente, mas acho que duas horas de convivência é o limite para não acontecer uma tragédia.
— Por isso você não quer voltar para a Inglaterra — concluiu Daisy.
Eu a encarei. Podia ver todos os detalhes do seu rosto a essa distância, as íris enormes e castanhas, a pequena pintinha ao lado do nariz, o jeito como as pontas dos seus lábios estavam para baixo em uma careta de irritação.
— Ninguém deveria passar por isso.
— Está tudo bem agora. Não sou mais uma criança medrosa.
— Qualquer um tem o direito de ser uma criança medrosa uma vez na vida — Daisy afirmou.
Dei de ombros, tentando aproveitar aqueles minutos o máximo possível para gravar seu rosto em minha memória.
Seus olhos se encontraram com os meus.
— Mas você... Você é talentoso, divertido e...
Eu ergui a sobrancelha, desafiando-a a falar as próximas palavras.
— Gato — disse —, mas não deixe que isso suba a cabeça — falou ela ao perceber um sorriso crescer no meu rosto.
— É um pouco tarde pra isso.
Daisy riu.
Meu olhar desceu dos seus olhos para os seus lábios avermelhados pelo frio. Ela deve ter percebido esse simples gesto, pois fechou o sorriso imediatamente e virou-se para mim.
Levei meu rosto até o dela, ficando a menos de vinte... dez.. cinco... centímetros de distância da sua boca. Mas antes mesmo que nossos narizes pudessem se tocar, Daisy ergueu a mão colocando-a entre nós dois.
— Não se esqueça da regra número um.
— Foi você quem criou essa bobagem, eu não sigo regras — peguei no seu pulso, afastando-o para sussurrar no seu ouvido. Um arrepio subiu pelo seu pescoço e isso me deixou satisfeito.... por enquanto.
Daisy pousou a mão no meu peito e me afastou com um empurrão fraco.
— Não me faça pedir divórcio, seu idiota. Agora, vá comprar algo para comermos — Foi tudo o que me disse antes de virar o rosto novamente na direção do oceano.
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