UM
"Tenho lutado em vão. Não resistirei. Meus sentimentos não serão reprimidos. Você deve permitir que eu lhe diga o quão arduamente eu a admiro e a amo."
Orgulho e Preconceito.
DAISY
As tardes do chá na casa de Lady Harrisone eram exaustivas, contudo Kelcie Everlye sentia que era a única a pensar dessa maneira. Em verdade, a filha do visconde de Essex sentia que era a única a pensar de maneira diferente sobre muitas coisas da sociedade inglesa.
Como, por exemplo: o duque de Lancashire, um libertino, que arrancava de garotas pobres a intacta inocência que ainda lhe restava. Diferente das pomposas convidadas de Lady Harrison, Kelcie não achava que o duque de Lancashire poderia matar uma jovem camponesa.
Não. Ela discordava disso, porque foi a vadia da Lady Everlye que a matou, e eu estava prestes a matá-la ficcionalmente também se Kelcie não colaborasse com o progresso da minha história.
Senti um toque gelado do lado esquerdo da minha bochecha e isso foi o suficiente para meu cérebro lembrar que, não, eu não estava no famoso chá da Lady Harrisone em Londres durante a era vitoriana e, sim, na capital da decadência moral americana em pleno século vinte e um — apesar de algumas pessoas ainda terem ideias do século retrasado.
— Apenas conferindo se você não entrou em estado vegetativo — Cliff ergueu as mãos em defesa.
— Nope — fiz um estalo com os lábios — Estou mais viva do que gostaria — murmurei, ajeitando os óculos no rosto.
Mesmo usando-os, o nome de Kelcie Everlye dançava pela tela. Eu pisquei e comecei a lacrimejar. Isso não podia ser um bom sinal. Há quanto tempo eu estava acordada?
— Que horas são?
— Quatro e meia — Cliff respondeu, abrindo a geladeira e pegando um pote de salada que deveria estar lá desde que mamãe e papai veio nos visitar há duas semanas atrás — da manhã.
Adoraria que Cliff me dissesse que ainda estávamos metade do dia. Porque aí significaria que eu tinha a tarde inteira para organizar o meu roteiro e uma noite para dormir antes de ir trabalhar na manhã seguinte.
Mas a vida não era açucarada desse jeito.
— Droga! Tenho apenas três horas pra descansar antes de ir pro set — tirei os óculos para esfregar os olhos.
— Você não foi pra cama essa noite — comentou, colocando o pote de novo na geladeira. Não tive forças para pedir que ele jogasse aquela porcaria no lixo — Eu percebi porque estava te esperando... muito animado... — ele me encarou — para ficar com você! — Cliff tentou corrigir ao ver meu cenho franzido.
— Obviamente.
— Digo, também me preocupo muitíssimo com seus hábitos noturnos. Você ao menos está tomando banho regularmente? Porque podemos providenciar isso agora mesmo — Cliff bateu a porta da geladeira, apoiando-se nela com um sorrisinho maroto no rosto que sempre fazia eu me sentir uma adolescente flertando pela primeira vez.
Era impossível não se encantar por aquele cabelo loiro e maxilar perfeito quase tão afiado como uma faca de churrasco.
Deus sabia que eu não era uma exceção.
Cliff costumava ser o garoto popular do colégio que magnetizava todos os olhares e comentários. As garotas (e alguns garotos também) se matavam para receber um sorrisinho como aquele ali, principalmente quando Cliff estava atrás do seu violão murmurando algum trecho de "Can't Help Falling in Love" .
Oito anos depois e nada havia mudado. Ele ainda era um cara popular, ou melhor, um cantor em ascensão que, em breve, seria popular em todo os Estados Unidos, mas a diferença é que ele pertencia a mim.
Às vezes, eu me perguntava se aquilo era real, se estar com Cliff não era um devaneio daquela garota esquisitinha com um péssimo boletim em Biologia, que vivia num canto da sala com seus dois únicos amigos. Mesmo depois do nosso primeiro beijo. Mesmo depois da nossa primeira vez (e da minha primeira vez de todas). Mesmo depois dos sete anos juntos, ainda era difícil acreditar que eu merecia tudo aquilo que Cliff White era.
— Obrigada, namorado — eu não resisti e abri um sorriso — Tenho certeza que ninguém mais nesse mundo se preocuparia tanto com a minha rotina sexual de maneira tão intensa — afirmei, fechando o notebook sem antes ter salvo duas cópias do meu roteiro, uma no pendrive e outra no próprio disco rígido do computador.
— Se tiver, por favor, me avise, eu não gostaria disso — afirmou, balançando a cabeça.
Ele abriu a garrafa de Gatorade e bebeu um gole, antes de perguntar:
— Você realmente precisa ficar acordada até tarde trabalhando? Pensei que era apenas ajudante do diretor.
— Ajudante da assistente do diretor — corrigi, tentando não ferir meu orgulho e meu diploma de Cinema e Audiovisual — Esse é meu projeto pessoal, se lembra? Como passo o dia inteiro no set de filmagem, meu único momento para escrever é agora — suspirei, dando dois tapinhas no notebook fechado, em cima de um adesivo do Doctor Who e outro do Blink-182.
—Não estou falando disso — apontou a garrafa para o notebook — E, sim, daquele emprego de merda... Ele está matando sua criatividade, Day, não sei porque ainda não o largou. Você sabe que posso sustentar nós dois sozinho — falou Cliff daquela maneira heroica e meio ingênua, que era extremamente fofa e me arrancou um sorriso.
— É apenas uma fase. Assim que o diretor Stacker me der uma chance, eu posso conseguir algo muito bom — eu me levantei da nossa mesa velha da cozinha e caminhei até ele.
— "Sua fase" dura mais de dois anos.
Ouch.
Era verdade que o plano inicial quando fui contratada para ser "ajudante" de produção era passar apenas 3 meses naquela posição.
Assim que eu conseguisse me adaptar a viver no set e detrás das câmeras de Hollywood, eu iria me destacar e ganhar um emprego de verdade, usaria um crachá colorido de assistente de produção com meu nome digitado, ao invés do atual que era apenas um papel velho onde alguém teve que escrever "Daisy Lynton" com caneta permanente. E ainda trocou o Y do meu sobrenome pelo I.
Mas eu estava em Hollywood, a terra dos sonhos e todos queriam se destacar tanto quanto eu, então... era difícil. Por melhor que eu fosse, eu estava cercada dos melhores entre os melhores.
Cliff não entendia isso, porque ele nunca teve a chance de ser o garoto esquecido. Ele sempre se destacou em tudo que se propôs a fazer.
Se, um dia, ele decidisse que seria o próximo presidente dos Estados Unidos, o Partido Republicano e Democrata se matariam na nossa porta, implorando para que ele se candidatasse pelo seu partido.
Era assim que funcionava as coisas no mundo dele e ele achava que nós compartilhávamos esse mesmo mundo, mas não.
— Bom, é uma série de TV — dei de ombros — Normalmente as gravações são mais longa que um filme e temos diferentes temporadas.
Cliff me encarou. Ele deixou a garrafa de Gatorade no balcão riscado que veio com o apartamento e colocou as mãos nos meus ombros.
Era difícil convencê-lo que meu emprego não era uma perda de tempo e que faria muita diferença no meu currículo um dia. Ele não entendia que o mundo do cinema era complicado. Muitas pessoas trabalhavam em uma mesma produção e nem o diretor era capaz de acompanhar o progresso de todos. Era um esforço constante para conseguir se destacar. naquele meio.
— "Corações em Chamas" é um dos maiores programas de TV atualmente, foi indicado a dois Emmy, e ganhou um de direção. Seria estupidez abandoná-lo agora.
— É o que você sempre diz.
Eu suspirei.
Passei uma madrugada inteira com Lady Everlye e seu gosto pelo sangue, eu não tinha mais energia para discutir com Cliff sobre isso agora.
Então abracei o seu corpo, esperando que isso calasse sua linda boca. E funcionou. Ele apoiou o queixo na minha cabeça e passou seu braço pela minha cintura.
— Por que está acordado a essa hora? — falei contra o tecido da sua blusa, aspirando o cheiro reconfortante do amaciante.
— Inspiração musical — disse, próximo ao meu ouvido — Tenho uma apresentação na sexta naquele bar em Hermosa Beach, se esqueceu? — Não podia ver Cliff no momento, mas sabia que estava franzindo o cenho.
Eu sempre esquecia de suas apresentações, o que não era a atitude de uma boa namorada.
Cliff começou a cantar covers em bares com apenas doze anos, na maioria das vezes de graça. Isso durou até os vinte anos, quando largou a faculdade e resolveu se dedicar exclusivamente à música.
E ele conseguia encontrar alguns trabalhos incríveis que lhe rendiam uma boa grana. Os principais eram casamentos e festas de quinze anos — sua beleza ajudava bastante nesse último. Recentemente, conseguiu esse show em um bar famoso próximo a praia que vivia cheio de olheiros buscando pela próxima grande estrela de Los Angeles.
Cliff estava confiante. Ele falava sobre a apresentação há semanas e vagava pela casa, escrevendo novas composições e dedilhando o violão velho. Era sua grande chance.
E ele receberia uma grana alta por essa apresentação, o que era ótimo porque eu não podia colaborar muito financeiramente.
Morar em Los Angeles não era nada fácil.
Eu trabalhava numa das maiores produções de Hollywood da atualidade, mas o meu salário era uma droga e não dava para muita coisa. Cliff acabava pagando todo o aluguel do apartamento minúsculo no subúrbio de L.A. que nos alugamos quando viemos para cá. O prédio era péssimo, provavelmente era um ponto de venda de drogas.
— Eu nunca esqueço — menti. Virei o rosto de lado, apenas o suficiente para ver os post-it coloridos colados na geladeira com lembretes para comprar frutas ou beber água — Pode deixar uma nota na geladeira?
— Claro. Você acha que deveríamos pôr ao lado da nota para comprar a tal maconha medicinal dos vizinhos? — perguntou, apontando para o post-it amarelo e engordurado que estava ali há um tempo.
— Você deveria arrancar isso. Se meus pais verem, vão perceber a má influência que você é e proibir nosso namoro.
— Tenho quase certeza que você é a má influência aqui — Cliff se afastou para encarar meu rosto e plantar um beijo na minha bochecha.
— Eu preciso dormir — disse para parede, porque Cliff continuava descendo seus beijos até meu pescoço — Tenho que acordar cedo amanhã, Cliff.
— Eu sei, eu sei — ele suspirou e finalmente me largou.
— É realmente difícil carregar a indústria cinematográfica hollywoodiana nas minhas costas.
Cliff sorriu. E eu sorri de volta.
Mesmo com todos os problemas, nada podia destruir o que tínhamos.
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