Capítulo 2
Papai,
Não vou pedir que não chore, sei que não tenho o direito de fazer um pedido tão torturante. Mas gostaria de te pedir que resista. Não só por mim, você me conhece a ponto de saber que eu odiaria ser a âncora na vida das pessoas que eu amo, mas eu também não quero ser o único motivo. Resista pela mamãe, sei que nesse momento ela provavelmente está tentando ser firme – você conhece a mamãe – no entanto, a dor a está afetando na mesma intensidade. Mesmo que ela tente esconder isso com algumas atividades excêntricas.
Sabe, preciso te assumir que já perdi incontáveis horas dos meus dias tentando adivinhar o que mamãe inventaria depois que eu partisse. Sei que isso é um tanto mórbido, mas essas adivinhações se tornaram inevitáveis. Será que ela vai tentar construir o gazebo que sempre quis nos fundos do jardim? Ou, quem sabe, irá se afundar na cozinha testando receitas novas? Ou descobrirá uma paixão pela jardinagem?
O que quer que seja, papai, sua missão é que a apoie e ajude. Mesmo nos dias que ela estiver impossível – e você sabe como são frequentes – continue sendo paciente. Estou deixando esse cargo para você! E, claro... resista também pela Mabel. Ah... você sabe como é a Mabel. Ela vai tentar tanto se manter firme por vocês, que acabará se transformando em uma montanha. E eu odiaria que isso acontecesse. Por favor, papai, não deixe que ela se afunde na tristeza...
Maria Isabel não tinha o hábito de abraçar muitas pessoas, na verdade, se sentia desconfortável com demonstrações públicas de afeto. Mas aquele parecia diferente. Talvez pelo fato de ter sido em um momento tão necessitado, ou quem sabe pelo silêncio reconfortante que se estabeleceu entre ambos sem que houvesse alguma regra implícita para preenchê-lo com palavras vazias. Qualquer que fosse o motivo, era diferente.
Gustavo envolveu a menina com os dois braços abertos. O esquerdo estava parado firme no meio das costas dela e o direito acariciava com suavidade os caracóis de seus cabelos. O tremelique de seus ombros já havia cessado, assim como as lágrimas também já não escorriam com tanta frequência. Ainda sim, eles permaneceram abraçados, numa necessidade mútua de buscar consolo.
– Park! – A voz soou como um feitiço de quebra de encanto e foi capaz de afastar os dois em poucos segundos. Mabel ainda chorava, mas ao identificar a interlocutora da voz, correu para limpar as últimas lágrimas com a parte de trás da mão, enquanto Gustavo limpava a garganta meio sem graça.
– Boa tarde, Dona Helena. Vim trazer a matéria da Mabel. – Ele tentou se explicar de forma ligeira, ainda envergonhado por ter sido pego em momento tão íntimo com a filha de Dona Helena. Não que estivessem fazendo alguma coisa de errado, mas ainda sim estavam em um momento íntimo de exposição.
– Que amigo mais atencioso, entre, fique para jantar com a gente.
E sem que se desse conta, Gustavo foi atirado para o centro do núcleo familiar de Maria Isabel. Não conseguiu recusar o convite, nunca se perdoaria por isso, mas mesmo assim era inevitável não se sentir desconfortável ao pisar com os dois pés para dentro da casa da família Ferreira.
Nunca tinha entrado lá antes. Aquele era seu irmão mais novo, Gabriel. Ele que tinha o costume de ir pra casa da melhor amiga depois da aula e passar horas até que a mãe fosse buscá-lo de carro. Ele que cansava de elogiar a comida de Dona Helena em casa, numa brincadeira de deixar a mãe com ciúmes. Não o Gustavo. Mas dessa vez era ele quem estava lá.
A sala de estar era bastante diferente da que ele estava acostumado, parecia realmente habitável, não a da casa dele que tinha todos os móveis intactos e plastificados, onde ninguém usava há mais de anos. Aquela era uma sala que realmente parecia ter histórias, no centro havia um tapete felpudo que outrora poderia ter sido marrom escuro, mas que agora exibia um tom bem apagado de quem já foi lavado incontáveis vezes. Os sofás eram caramelos, um pequeno de dois lugares e o outro um pouco maior, com seis almofadas coloridas que lutavam por um espaço em cima dele. Gustavo achou engraçado o fato de que aquele tanto de almofada, provavelmente impediria que qualquer ser humano pudesse ocupar algum espaço no lugar sem que tivesse que removê-las, mas ainda assim gostou delas. Eram amarelas, laranjas, azuis, todas bastante vívidas. Deixava o ambiente mais alegre.
Havia também a mesa do centro, cheia de livros de romance jogados e um rack encostado na parede oposta aos sofás, com uma televisão plana, alguns aparelhos da antena e inúmeros porta-retratos. Com fotos. Heloísa e Mabel abraçadas em alguma praia, a família toda reunida com uma paisagem paradisíaca de fundo, o casamento de Dona Helena e Seu Camargo – que exibiam grandes sorrisos apaixonados, numa foto posada –, seu irmão Gabriel ainda na infância abraçado com uma Heloísa banguela, Mabel com um sorriso enorme e um vestido de gala... conhecia aquele cenário, foi no dia da formatura do ensino médio deles dois. Como Gustavo não podia se lembrar de um sorriso tão radiante como aqueles? Cheio de metais entre os dentes, mas ainda assim lindo. É engraçado como as pessoas só aprendem a apreciar um sorriso quando ele deixa de ser frequente.
– Mãe, tá cedo pro jantar. – Maria Isabel tentou argumentar, mas parecia estar falando com o vento. Nada tiraria o sorriso inabalável de Dona Helena, que conduzia os dois até uma mesinha na sala ao lado. Seu Camargo já estava ali também, apático, com os olhos vermelhos de quem havia chorado por horas. E Mabel apenas se aproximou do pai e depositou um beijo doce na testa dele, antes de sentar numa das cadeiras livres.
Não demorou muito para que Gustavo encontrasse o rumo da cadeira vazia ao lado de Mabel, nem também para que a mãe dela voltasse da cozinha com uma enorme travessa quente recém retirada do forno.
– Testei uma receita nova que a vó mandou. – Era uma espécie de lasanha, mas a massa parecia mais molenga que o tradicional e tinha uma coloração esquisita com tons de verde e preto. Helena deve ter notado a expressão confusa que Gustavo tentou camuflar, pois logo explicou os ingredientes daquela iguaria. – É de berinjela. Me disseram que fica divino.
E, sem que qualquer um tivesse mais alguma coisa a acrescentar, todos comeram em um completo silêncio. Não que desse pra falar enquanto mastigavam a comida, mas mesmo assim aquele silêncio todo não parecia natural. Era um silêncio triste, como se houvesse um pedaço faltando naquele ritual diário da família Ferreira. E isso estava deixando Gustavo irremediavelmente desconfortável.
Como se tivesse ouvido as preces do garoto, Seu Camargo quebrou o silêncio.
– Heloísa teria amado essa lasanha.
Mas as palavras só conseguiram afundar o clima na mesa. As lágrimas do pai desceram antes mesmo que ele se desse conta e a mãe, que até então estava com um sorriso forçado tentando se concentrar no prato, também desabou.
No entanto, nenhum deles ousaram sair da mesa. Os dois choraram em silêncio, forçando garfadas de comida uma atrás da outra pra dentro da boca. Mas ainda assim permaneceram. E Mabel, que não se permitia chorar na frente deles, cerrou os punhos embaixo da mesa numa tentativa de manter o controle. Gustavo viu essa tentativa de escape de energia e, de forma instintiva, entrelaçou seus próprios dedos nos da garota como se quisesse confortá-la com aquilo.
E funcionou.
Lá estava Mabel mais uma vez, sentindo-se acolhida por um garoto que até então nunca tivera trocado meia dúzia de palavras antes. Ela até cogitou puxar a mão de volta, mas relaxou quando o polegar dele fez movimentos circulares e suaves em cima da sua mão.
Talvez ela já estivesse pronta pra voltar pra sua rotina na faculdade. Se a presença de Gustavo Park, que ela jamais tivera muito contato já tinha a capacidade de reconfortar ela, teoricamente, a companhia de seus amigos seria bem melhor... não?
Maria Isabel estava contando com isso.
Numa coragem momentânea que as carícias de Park a proporcionaram, Mabel coçou a garganta chamando a atenção de todos na mesa e falou com a voz bastante moderada.
– Acho que amanhã vou pra aula.
Seu Camargo apenas assentiu, ainda mergulhado em sua própria tristeza para que pudesse responder qualquer coisa à filha mais velha. Mas Dona Helena fez mais que isso. Era típico da mãe dela tentar ser firme em momentos de crise, Maria Isabel sabia que havia puxado bastante dessa característica dela, mas a questão é que Helena precisava ser assim. Precisava ser o lado racional da família, já que Camargo ocupava o lado emotivo com bastante propriedade. Se não fosse ela, quem recolheria os cacos do marido toda vez que ele se quebrasse?
Mesmo que às vezes ela também quisesse apenas se permitir desabar.
– Acho uma excelente ideia, minha filha. – Ela falou, com a voz ainda um pouco vacilante por causa das lágrimas que haviam escorrido minutos antes, mas logo se recuperou e limpou o rosto. – Tenho certeza que Park vai te ajudar com o conteúdo que você perdeu...
Ela lançou um sorriso terno e carinhoso para o rapaz que correu para assentir em concordância, numa desesperada atitude de demonstrar que estaria ali pro que a garota precisasse.
Era um garoto legal, não tinha motivos para fazer aquelas coisas por ela, mas ainda assim fazia.
– E também, vai ser bom pra você rever Marina e Pedro, estou com saudades dos dois.
Aquele era o diálogo mais comum que aquela família havia tido em dias e Mabel se deu conta do quanto sentia falta da normalidade. Queria voltar naquele tempo, onde todas as conversas eram mais suaves e onde ninguém precisava pisar em ovos. Mas não tinha como voltar naquela época. Ao menos estavam prontos para encontrar uma nova definição de normal?
– Estou com saudade deles também. – Maria apenas concordou, um pouco mais confiante com a decisão e, definitivamente, mais calma naquela mesa. Afastou sua mão lentamente da de Gustavo, sem que quisesse parecer rude, e abriu um sorriso de canto para ele com o agradecimento gritando em seu olhar.
Gustavo achava curioso o fato de que, em uma turma de não mais que cinquenta alunos, não fazia ideia de quem eram os amigos de Mabel. Marina e Pedro... Eles deveriam também ser do curso de Veterinária, não? Ou Maria era mais próxima de pessoas de outros cursos? Mas se fossem de outras áreas, com quem a garota costumava fazer os trabalhos em grupo que todos os professores passavam? Como se sentia mal por não ter conhecido mais sobre a menina antes de tudo.
Talvez até mesmo os dois tivessem sido amigos, se ao menos tivesse se permitido enxergá-la um pouquinho. Será que ainda era tarde demais para isso?
Eles não falaram mais nada na mesa e assim que o jantar antecipado terminou, Gustavo pediu licença para ir embora até sua casa. Dona Helena não deixou que ele fosse, sem antes levar uma vasilha de lasanha para toda a família e, no fim, o garoto partiu decidido a se aproximar mais de Maria Isabel. Determinado a facilitar o máximo que podia a readaptação dela nas aulas e na nova rotina. Ele precisava fazer isso não somente por si, mas também pelo seu irmão mais novo e por Heloísa.
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