Capítulo 2: Michael
Já eram duas da manhã quando Roberto buscou seu segundo cliente da noite, um homem estranho vestindo um sobretudo preto, com óculos escuros enormes e um grande chapéu, também da cor preta.
A última vez que Roberto viu alguém vestido assim foi quando se deparou com um pervertido hermafrodita num posto de gasolina em Goiás, mas não achava que esse era o caso nessa situação.
O homem cantarolava baixinho uma canção que Roberto conhecia, mas não lembrava qual era e ele também não ia incomodar o passageiro perguntando.
O destino do homem era fora da cidade, numa chácara chamada "Nuncaterra", o que Roberto achou estranho, mas que não era mais estranho que uma cidade chamada "Cuspe do papa no vinho do bispo", na fronteira do Uruguai, onde ele afirma ter passado algumas semanas trabalhando.
- Com licença - falou o passageiro, com uma voz delicada e levemente meiga - Você poderia deixar o ar-condicionado um pouco mais fraco?
- Posso sim.
Roberto ajeitou o ar-condicionado.
- Mais alguma coisa?
- Não, obrigado.
- De nada... - Roberto começou a olhar o homem pelo retrovisor, ele parecia muito familiar.
- Algum problema? - perguntou o passageiro, percebendo que Roberto estava o encarando.
- Me desculpa, é que você é muito familiar.
- Ah sim, é que eu já apareci na televisão algumas vezes.
- Sério? Apareceu em que programa?
- Em todos - o homem deu uma risadinha e estendeu a mão - Eu sou o Michael Jackson.
- Prazer, sou o Roberto, não dou a mão porque estou dirigindo.
- Geralmente as pessoas riem quando eu falo isso.
- Eu não sou como as outras pessoas, e sendo sincero, você não é o cliente mais estranho que tive essa noite. Mas é um prazer, senhor Michael, eu sou seu fã.
- O prazer é todo meu - respondeu Michael - Você não vai perguntar porquê eu me revelei pra você?
- Eu sei porquê, dei carona para o Elvis em 92 e para os Mamonas Assassinas em 2001, sei que celebridades falecidas adoram se revelar para os outros.
- Ai ai, Elvis, eu peguei o mau costume dele - Michael se sentiu nostálgico - Um dia irei visitá-lo no Pará.
- Diga a ele que o Roberto caminhoneiro mandou lembranças, ele vai saber que sou eu.
- Mandarei.
- Mas enfim, senhor Michael, o que tem feito da vida?
- Nada muito emocionante, tenho pescado, passo um tempo maior com meus filhos, brinco com as crianças...
- Crianças?
- Sim, eu adoro crianças, elas são tão puras e inocentes, existem várias crianças perto da minha chácara, eu as chamo para brincar na minha piscina e jogar videogame comigo.
- Perdão, senhor Michael, mas essa conversa é meio estranha.
- Eu sei, desculpa, sempre pensam o pior sobre a minha relação com as crianças, mas eu juro que não faço nada.
- Tá tudo bem, não precisa se explicar para mim.
- É que...- Michael deu um suspiro - Eu nunca pude ser criança...
Roberto ficou calado.
- Desde pequeno, eu e meus irmãos tivemos que virar adultos muito cedo, ficamos no topo do mundo, todas as pessoas queriam ficar perto de nós. Queriam ser nossas amigas.
- Pessoas aproveitadoras.
- Sim, e isso piorou quando eu cresci e fiz a minha carreira, as pessoas não me deixavam em paz.
- Deve ter sido horrível...
- Era horrível, as únicas pessoas que não se aproximavam de mim por interesse eram as crianças, elas realmente queriam ser minhas amigas, e eu pude experimentar amizades verdadeiras por um tempo.
- Eu imagino, senhor Michael...
- Sim, mas depois as pessoas interesseiras conseguiram estragar até a única coisa boa na minha vida, pais pedindo dinheiro de mim para que eles não contassem coisas que nunca fiz com elas, era demais pra mim...
- E agora você vive aqui, morto para o mundo.
- Basicamente.
- É uma pena que tenha sido assim, você realmente faz falta no mundo.
- Eu não sinto falta do mundo - os olhos de Michael estavam marejados - Pela primeira vez na vida, estou livre.
- Quando eu era mais novo - Roberto se ajeitou no banco para contar a história - Meu pai me levava em algumas viagens dele de caminhão, certa vez, estávamos num restaurante no fim do mundo com os amigos dele, e todos estavam conversando muito alto sobre vários assuntos diferentes. Na tv passava o jornal, e certo momento, o âncora anunciou que naquele dia estreava seu novo videoclipe.
- Qual? - perguntou Michael, curioso.
- Aquele que aparece o menino de "Esqueceram de Mim".
- Ah, o Macaulay, eu sinto tanta falta desse garoto. O clipe era "Black and White".
- Sim! Era esse mesmo!
- Continue.
- Ah sim, então, o jornal exibiu o clipe, e todas as pessoas pararam para assistir. Foi algo surreal, todas as pessoas no restaurante, do homem de terno ao bêbado de roupa rasgada, todos pararam para assistir você.
- Deve ter sido incrível - Michael sorria.
- Foi sim, e assim que o clipe acabou, as pessoas continuaram o que estavam fazendo antes, é uma das minhas lembranças favoritas da juventude.
- Me sinto honrado de fazer parte da sua juventude.
Roberto deu um sorriso, no fundo achava estranho estar tão tranquilo naquele momento, pouco tempo atrás, estava com o próprio diabo sentado no lugar de Michael. A viagem foi tão legal que ambos nem perceberam que já estavam quase chegando no destino final.
- É logo ali na frente - disse Michael.
Alguns segundos depois, Roberto pôde ver a entrada do terreno de Michael, ele parou bem na frente do portão. Roberto finalizou a corrida no aplicativo.
- São R$ 71,48, senhor Michael.
Michael tirou uma nota de 100 do bolso.
- Pode ficar com o troco.
- Muito obrigado.
Michael abriu a porta e saiu do carro. Andou em direção ao banco da frente, entrou e sentou ao lado de Roberto.
"Estou tendo um déjà vu", ele pensou.
- Você vai me fazer três perguntas?
- Como adivinhou? - perguntou o surpreso Michael.
- Só um pressentimento - respondeu.
- Entendi.
- Pode fazer.
- De quem você sente mais falta?
- Do meu pai - Roberto não hesitou em responder.
- Entendo - Michael sorriu.
- E a segunda pergunta?
- Claro... Do quê você sente mais falta?
- Hum... Acho que sinto falta de voltar a ser caminhoneiro, viajar pelo Brasil, passando por novas experiências, coisas assim...
- Eu imagino - Michael acenou levemente a cabeça, reflexivo.
- Sua última pergunta, senhor Michael.
- Porque não volta a fazer o que ama?
- Eu já vivi bastante, senhor Michael, já passei por coisas demais para uma pessoa normal, apesar de amar a velha vida de caminhoneiro, existem pessoas que precisam de mim agora, minha mãe, meus cachorros...
Roberto continuou:
- Um dia eu quero casar, ter filhos, formar uma família, não posso ter isso se continuasse com aquela vida, meu pai era feliz, mas vivia doente e cansado, tanto que já nos deixou, eu também estava indo nesse caminho e vi que ia acabar do mesmo jeito.
Michael sorriu.
- Você é um bom homem, Roberto - ele diz, saindo do carro.
- Você também, senhor Michael.
- Apareça aqui qualquer dia, Roberto, traga sua mãe, posso apresentar vocês ao Cazuza.
- Ele já me conhece, senhor, não gosta muito de mim.
- Então apareça para vocês fazerem as pazes.
- Pode deixar!
Michael acenou para Roberto e entrou pelo portão. Roberto deu meia volta e começou sua jornada para voltar a cidade. Ele já estava decidido a ir para casa depois dessa corrida, mas algo estranho aconteceu: quando Roberto se deu conta, viu que seu GPS estava o guiando para uma corrida.
- Ué, mas eu não aceitei nenhuma corrida...
Quando ia apertar para cancelar, o botão não obedecia. Depois de uns dois minutos tentando cancelar a viagem, Roberto chutou o balde e decidiu aceitar o serviço.
- Essa sim vai ser a última da noite...
E lá foi Roberto em direção ao seu próximo passageiro.
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