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Novembro, 5
Já era noite na fazenda. Ao longe, dava para ouvir os bichos estranhos cantarem, o lobo (cachorro gigante do vizinho) uivar e visualizar os insetos sobrevoarem a lâmpada de luz rala da nossa varada. Tudo estava calmo, apesar do ronco dos animais e objetos, como a geladeira que rangia com o motor quase falecido e o pingo desenfreado da torneira frouxa.
Eu acendia o meu último baseado sentada na cadeira velha que vovó costumava se acomodar para fazer seus tricôs, os quais eram vendidos baratinhos no centro do condado. A luz piscava freneticamente. Eu estava vendo a hora em que a maldita se apagaria de vez. Peguei o meu celular, cuja tela estava trincada, e liguei a lanterna. Virei-o para cima, para iluminar a parte onde eu estava, enquanto acendia o cigarro.
Marcava apenas cinco horas no relógio. Na Escócia, sobretudo naquela época do ano, os dias tendiam a acabar rápidos. Amanhecia tarde, mas escurecia cedo, uma completa antonímia. Eu não me preocupava, afinal estava de "férias" na casa da minha família e não pretendia ir a nenhum lugar, ou fazer muitas coisas que precisassem de tempo.
Só tinha um assunto a tratar com uma única pessoa.
Se tudo funcionasse como o esperado, eu só queria fumar, assistir à uma série, passear pelos campos e transar com as minhas amigas de infância. Era tudo demasiadamente equilibrado.
— Eu posso? — A voz recentemente grossa de Hugh me saltou aos ouvidos. Ele apontava para o cigarro. Eu sabia que vovô, ainda conservado, enchia o copo da molecada com whisky barato sem que os pais vissem. Mas eu não daria moleza.
— Você pode sentar. Pode olhar para as estrelas. Pode ouvir o barulho dos animais. Mas não pode fumar — respondi com um sorriso extremamente cordial.
Hugh Oston sacudiu os ombros ossudos e abaixou-se no chão, muito bem acomodado entre a poeira que não havíamos varrido mais cedo. Ele tinha um cabelo grande, levemente encaracolado, mas com a franja mais lisa do que uma parede lixada. Os fios vinham em um castanho-claro, as pontinhas ganhando um ruivo natural.
Ele não era meu irmão de sangue. Papai, um dos fazendeiros frustados de Lockton, casara-se novamente e tivera o meu irmão mais novo, Bardolf. Já somava-se seis filhos, contando comigo. E aí, para a alegria de Gallard que gostava de gente cuidando da fazenda sem ter de pagar, a sua nova esposa também tinha outros dois filhos do primeiro casamento. Nisso, somara-se oito no total, sem pôr os dois e meu avô na conta.
Era uma bagunça, mas ainda bem que eu morava em Edimburgo e vinha pouco para Glasgow, a cidade natal propriamente dita. A maior da Escócia e a terceira mais populosa do Reino Unido. Ocupava-me bem em qualquer lugar, sobretudo com umas ideias que vinha martelando há tempos.
— Vovô deixaria. — Emburrou-se o garoto de quatorze anos.
— Ainda bem que sou jovem e mulher, logo não sou ele — falei sem encará-lo.
Hugh era um bom garoto, embora teimoso. Dormia tarde, acordava tarde, mas era responsável também. Eu o conhecia desde pequenininho, por volta dos três, quase quatro anos, por isso o protegeria de tudo.
— Por que você veio pra cá? — perguntou ele.
Fitei-o sem entender. Ele não era lá muito esperto, mas, às vezes, soltava umas questões que deixavam até eu mesma confusa.
— Como?
— Você nunca vem pra cá.
— Estava com saudades — falei, dando de ombros. Traguei do cigarro devagar e fingi que aquilo era uma verdade absoluta.
— Mentira. — Enfrentou-me com um sorriso maroto. — Você não tem saudades da gente.
— Calúnia! — repreendi-o, rindo. Eu podia vir pouco ao vilarejo, mas meus assuntos em Edimburgo eram muito mais urgentes para justificar aquilo. Eu fazia muitos plantões. — Eu sempre ligo, mando mensagem, envio coisas. Eu sinto saudades.
— Você se importa. Isso não é saudade. — Hugh piscou. Meu Deus! Ele tinha quantos anos, afinal?
— E qual a diferença, ancião?
— Não sei, mas tem. Você é muito... Qual a palavra? — Hugh olhava para cima à procura de algo em seu vocabulário. — Você é uma pessoa que só faz algo se tem um motivo por trás.
— Interesseira? Você está me chamando de interesseira? — Ri e assoprei a fumaça de propósito contra o seu rosto corado.
— Talvez. — Riu-se, sozinho. Ele era muito sincero para o meu gosto, mas também o acompanhei na animação do fim da tarde, que já era noite. Glasgow era realmente confusa, mas eu também. — Eu só quero saber. Me conta, por favor. Eu não vou falar para ninguém. Mamãe e papai nunca saberão de nada.
Contorci os lábios em um sorriso de canto. Ele podia me ler muito bem, porque passava tempo demais se comunicando apenas com o olhar com as meninas da igreja local, no meio da missa. Mas eu tinha uma boca comparada a um túmulo. Eu não soltaria minhas ideais que vinha martelando há seis meses para um adolescente que podia abrir a boca a qualquer momento. Para qualquer pessoa.
— Quem sabe um dia? — limitei-me a dizer. Não era o seu dia de sorte.
Uma aparição soturna me fez abrir ainda mais o sorriso tímido. Genevieve Welch, dona do cachorro descomunal que ficava atrás das nossas galinhas, apareceu de supetão na varanda. Eu a havia chamado para uma conversa, mas não esperava vê-la tão cedo. Cheguei naquela tarde e quase não cumprimentei nenhum dos vizinhos mais simpáticos.
— Hugh. Maddie — falou com seus olhos bonitos e redondos.
Era a hora da minha retirada. Peguei o meu celular, desligando a lanterna, e saí da cadeira de balanço. O cigarro estava no fim, mas não sugaria a ponta. Joguei-o longe ainda aceso. Hugh sorria para jovem, mas não disse nada antes de mim.
— Eu vou dar uma volta, Hugh. Avise nossos pais que não estarei aqui para o jantar, ok? Compenso no almoço — pedi e observei o menino concordando.
Eu não poderia fazer o que desejava na frente do meu irmão mais novo. E nem falar — o que era mais importante naquele contexto, o motivo de quase toda a minha viagem ao interior. Eu não estava sacrificando toda as minhas "férias" em um lugar barulhento, apesar de reconfortante, apenas para sentar à mesa com a minha família.
— Está bem — Hugh respondeu. Eu fui na frente de Welch, mas ainda pude ouvir o meu irmão: — Bom te ver, Genevieve.
Assisti a jovem de pele achocolatada e cabelos trançados sorrir para o menino. Ela era bondosa até demais, mas muito assertiva quando precisava. Era exatamente por aquilo que a escolhi para confidenciar os meus segredos, porque ela era boa conselheira e íntegra demais para falar algo aos demais.
— Eu esperava uma recepção mais calorosa — brinquei. Na verdade, eu não esperava nada além de alguns tapas, porque a deixei no escuro por muito tempo. A vida em Edimburgo podia ser bastante agitada. — Como vai?
Ela só me fitou. Havia divertimento em sua expressão. Puxou-me pelo pulso e, no segundo seguinte, estávamos dentro do celeiro escuro nos beijando. Puxei o seu casaco para baixo e senti a pele fria contra minha palma. O clima não era propício para retirar a roupa no meio do nada, mas eu tencionava levar ao chão o máximo de peças possíveis. Genevieve Welch abria a guarda (abria-se toda), então eu tinha de aproveitar.
Coloquei-a sentada em um monte de feno e me sentei em suas pernas, esfregando-me. Ela gemeu e afundou os lábios carnudos e avermelhados no meu pescoço, o qual não parava de pulsar. Segurei sua cabeça para trás, ainda que gostasse das marcas que ela eventualmente deixaria pela extensão da minha pele, mas queria moldar outro beijo.
Welch subiu as mãos para meus seios e apertou sem nenhum pudor. Remexi-me mais sobre seu corpo, procurando pelo atrito entre minhas pernas, procurando pelo temperatura alta. Ela mordeu meu lábio inferior e o soltou apenas para curvar seu corpo contra o feno. Via-a revirar os olhos e mover a cintura abaixo das minhas nádegas. Ela também procurava por mim.
— Você... — Ela suspirou. Fechou a mão no tecido da minha blusa, trazendo-o para frente. Eu sentia a costura pedindo arrego.— Estava dizendo algo?
Era uma provocação evidente. Eu gostava daquilo nela. Se não fosse a vida me levando para longe, possivelmente eu e ela acabaríamos juntas. Mas havia muitos empecilhos, como sua família conservadora que já me demonizava pelo estilo de vida que eu tinha, e todas as outras questões sombrias que se perpetuavam na minha cabeça.
— Pare — falei, mesmo que meu corpo continuasse em movimento. A região de baixo já estava sob fogo. Então eu mesma me brequei, senão não conseguiria dizer o que pretendia. — Parei.
— Estou vendo — Genevieve Welch observou, rindo. Retirei-me do seu colo para me sentar ao lado, mas a apertei comigo. Seu cheiro de bolo caseiro, cravo e canela me deixavam excitada, mas me segurei. — Diga. Diga logo.
— Senti sua falta — admiti. Eu não queria começar com assuntos sérios sem dizer algo do coração. Meu irmão já havia alegado que eu nem tinha sentimentos. — Você sentiu minha falta?
— Claro que sim. Você sabe. Por que não me escreveu? — Ela desenhou algo com o dedo em cima do meu braço. Eu estava virada na direção de seus ombros e apoiava o queixo em um deles. — Que houve?
— Roux — murmurei e senti seu corpo retesar. Era um sobrenome quase proibido, porque era o mesmo de abrir várias feridas recentemente cicatrizadas. — O que mais seria?
— Você a viu? — perguntou em um sussurro. Genevieve sabia que precisava ter tato para falar sobre o assunto comigo.
— Na televisão. Eu estava na plateia — contei. Meus olhos amarelos já ganhavam um teor duro, marejado. — Queria ver de perto.
— Ela está reabrindo a Alquimia Roux, não é? Pilantra! — exclamou. Ainda bem que ela me entendia naquela profundidade a ponto de odiar quem nunca a fez mal. — Pensei que estava evitando notícias desse tipo.
— Não. Eu planejei tudo. Planejei vê-la no programa, olhar de perto e ter certeza de que ela pretende fazer o mesmo novamente — disse com um amargor.
Welch me libertou momentaneamente. Ela me conhecia muito bem para saber que algo estava fora do lugar. Tirando a parte acadêmica, eu não planejava nada. Nunca planejei. Sempre me deixei levar pelos momentos, pelas oportunidades. Ainda era controladora, sim, mas só fazia rotinas etc. com o que tinha no momento. Nunca procurei algo além.
— O que você vai fazer?
— Estou predestinada a derrubá-la, Genevieve — sussurrei de volta. Meu tronco estava extremamente ereto. Entendia sua preocupação agora visível em suas íris escuras, mas não dava para voltar atrás. — Consegui alguns contatos em Glasgow. Eles me ajudarão. Nos últimos meses, deixei tudo alinhado para que funcionasse. Vai funcionar.
Para ser sincera, eu não tinha ninguém, mas precisava mentir a Genevieve para que ela colocasse fé em mim. Era o único jeito.
— Como vai? — Ela mordeu os lábios. Parecia querer segurar o choro. — Você é a pessoa mais inteligente que conheço. Mais inteligente que Glasgow inteira. Mas... Mas essas pessoas, Maddie... — Sua hesitação em completar a frase me doía na carne. — Por favor, não faça isso. Não vá para o covil.
Segurei suas mãos trêmulas. Ela era muito sensível, mas aquilo era o nosso extremo. Acariciei seu rosto com a esquerda livre, igualmente atrás do que dizer. Eu queria abrir as caixinhas do meu corpo, mas precisava prepará-la.
— Eu pedi demissão. Não tem mais volta. O hospital não vai me receber assim — falei já percebendo seu humor piorar. Juntei-a no meu colo. — E eu... Bem, fui aceita pela segunda vez na Universidade de Glasgow.
Apertei os olhos para receber sua reação. Por um segundo, Genevieve Welch travou no próprio eixo, as mãos mais gélidas do que duas pedras de nitrogênio. Noutro, seus orbes castanhos traçaram todos os detalhes do meu rosto atrás de alguma evidência que eu estava mentindo. Ela entendia todas as reticências e letras minúsculas daquela confissão.
A Universidade de Glasgow era o instituto mais importante da nossa cidade. De lá saíam pessoas influentes, famosos, intelectuais de última linha. Muitos britânicos extremamente ricos procuravam a faculdade para aumentar ainda mais seus patrimônios líquidos, porque o local era considerado o palco para o sucesso. Era financiado por diversos patrocinadores diferentes, mas uma em questão era dona de um programa — Alquimia Roux — que selecionava os indivíduos destaques do ano para uma carreira sólida de conquistas.
A Alquimia pagava tudo: bolsas em qualquer lugar para mestrados, doutorados e afins, viagens, pesquisas, contratos com lugares diversos dependendo da sua preferência de estudos. Era um banco, e nem precisávamos devolver o dinheiro, perfeito para artistas independentes.
Mas, há sete anos, o programa precisara ser fechado. A fundadora e seus sócios se envolveram em escândalos que custaram rios de dinheiro, precisando fechar as portas antes de mais danos. No entanto, mais tarde, Genesis Roux queria reabrir o motivo da sua quase ruína. E eu tinha dezenas de razões pessoais para que, finalmente, conseguisse acabar de vez com uma grande farsa.
— Eu não acredito nisso! Você está mesmo jogando todos os anos assíduos de estudo, Madison? — Genevieve se irritou de verdade.
Eu queria mantê-la próxima, mas ela saiu das minhas amarras em dois passos. Parou em pé, os braços cruzados e a cara fechada, mostrando com clareza todo o seu descontentamento.
— Eu continuo sendo médica, Genevieve.
— Que não vai exercer a profissão, salvar vidas. — Ela jogou na cara, puta como nunca vi antes. — Sabe o quanto seus pais lutaram para que você conseguisse uma passagem para cidade grande, Madison, para que você viajasse para estudar? Você é egoísta! Quer jogar tudo para o alto por causa de uma vingança.
— Bem, sim... — Rangi os dentes.
— Não! Você está jogando a inteligência que Deus lhe deu no lixo! — gritou. Eu abaixei a cabeça, pois sabia que ela tinha muita propriedade para falar algo assim. — Você entrou em uma das melhores faculdades do Reino Unido com a porra de treze anos. A mais nova a se formar em Medicina na Universidade de Glasgow do século! Tem noção disso? E agora... agora quer entrar na faculdade de novo para fazer o quê?
— História.
— Patético! — reclamou mais um pouco.
Talvez ela não estivesse achando História ruim, mas sim a minha ousadia de largar tudo para trás com a incerteza se vou ou não derrubar o império de uma escritora e empresária multibilionária. Eu esperava arquitetar a desordem sísmica mundial durante o um ano em que estivesse na Universidade de Glasgow, porque, no final do ano letivo, tinha de ser escolhida para o célebre grupo destaque para ingressar na Alquimia Roux.
Assim eu entraria em sua mansão e aguardaria o momento certo para o bote. Uma vez lá dentro, descobriria todos os seus podres com mais facilidade, ganhando sua confiança e trabalhando infiltrada no seu círculo consagrado. Antes que ela pudesse recuar, o seu castelo de barro estaria se desmanchando.
— Vai funcionar — garanti.
— Não, você não sabe. Você ainda pode acabar se machucando, Maddie. — Seu tom de voz era dolorido. Eu não queria vê-la de tal forma, mas precisava prosseguir. — Assim como seu avô... E sua mãe.
Eu sacudi a cabeça sem forças para debater sobre aquilo. Sentia que só possuía toda a sabedoria daquele momento, nascendo especial ainda por cima, porque precisava destronar uma pessoa muito ruim. Deus havia me encaminhado para que eu chegasse naquele instante cheia de certezas inexploradas, mas com confiança inabalável. Eu tinha os meios.
— Eu vim aqui pois precisava te contar pessoalmente. E porque você vai ficar responsável por todo o meu dinheiro caso algo aconteça comigo. Não posso prever, né? — falei, cabisbaixa.
Genevieve Welch estava prestes a me esmurrar.
— Eu não acredito.
— Por favor. Eu não tenho merda de milhões, mas é o bastante para que meus irmãos tenham o mínimo para estudar. Eu soube investir, organizar. Não sou estúpida. Você acha que não sei que a principal fonte de renda da minha família sou eu? Eu não deixaria ninguém na mão — disse com um pouco de irritação também. — Por isso precisava de alguém confiável. Você. Você é a mais confiável para cuidar de tudo. E inteligente. Por favor, Genevieve.
— Não. — Welch foi seca. Seus braços permaneciam um em cima do outro. — Eu não vou cuidar de merda nenhuma para vê-la cometer suicídio. Sou inteligente mesmo, Madison.
Dizendo aquilo, a única vizinha que poderia me ajudar a derrubar uma penca de ricos desgraçados, deu-me as costas, retirando-se do celeiro.
Eu tinha de começar a pensar em mais de uma opção dentro dos meus planos.
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Por muito, mas muito pouco que os dias não coincidiram aqui fora e dentro do livro. Eu não planejei nada! Mas seria legal, né? Destino, então.
Ainda não vou falar nenhuma impressão minha, nenhuma opinião, porque elas jamais serão parciais. Então deixo para vocês! Votem, comentem, divulguem. Como toda obra minha, tenho muito amor e cuidado.
Até segunda-feira, pessoal. Entrem no meu Instagram (lilymduncan_) para mais bate-papos!
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