Capítulo 37 - O mesmo sangue nas veias
O sol já havia se posto há algum tempo e Serpente, sonolenta, seguia no mais profundo de seus sonhos. Estava realmente cansada, pensou Loenna; Já contavam doze horas desde que a amada havia se deitado.
Talvez lembrando-se dos velhos tempos, onde Serpente nunca deixava seu sono passar das nove da manhã, Loenna decidiu que já era hora de acordá-la. Esgueirou-se para dentro da barraca onde Serpente estava alojada, com um lampião e uma tigela de sopa, pronta para fazê-la despertar.
A antiga mestre era realmente muito bonita, deitada graciosamente no colchão surrado, com os cabelos cobrindo o rosto e um lençol envolvendo o corpo. Parecia absorta em um sonho agradável, sorria enquanto abraçava o próprio corpo. Loenna não pôde deixar de sorrir; Serpente era a única pessoa capaz de fazer seus sorrisos se tornarem costumeiros.
— Bom dia! — Chamou Loenna, levando o lampião e a tigela de sopa ao chão e cutucando Serpente para que acordasse. — Boa noite, aliás, né?
Serpente piscou os olhos cerca de duas ou três vezes; Grunhiu baixinho, esfregou a própria face com as mãos.
— Você está dormindo desde as sete da manhã. — Loenna continuou. — Já está na hora de acordar, não acha?
Serpente deslizou os dedos pelos cabelos e sorriu afetuosamente.
— Você realmente queria ter o prazer de fazer isso, não é? — Ela era linda quando a luz iluminava parcialmente o seu rosto. A cicatriz brilhava sob a tímida claridade do lampião e trazia uma graciosa autenticidade à sua face.
— Pelos velhos tempos. — Loenna lançou-lhe uma piscadinha. — Eu lhe trouxe o jantar. Achei que você iria querer, não comeu o dia inteiro.
Serpente tomou a tigela de sopa em mãos e se pôs a comer. Loenna apenas admirava todos os detalhes dela, cada mísero aspecto de seu ser. Era como se estivesse sonhando; Nem em seus devaneios mais otimistas havia pensado em ter Serpente de volta.
— Estou muito feliz que você está aqui. — Confessou Loenna.
Serpente sorriu, serena.
— Eu também estou feliz de estar com você. — E levou mais uma colherada de sopa à boca. — Senti sua falta... Você nem sabe o quanto.
Loenna se aproximou e Serpente desenhou seu rosto com uma das mãos.
— O que fez durante o tempo em que estive fora? — Questionou ela. Loenna se encolheu e mordeu os lábios.
— Alguns serviços sujos. — Afinal, ela nunca havia se orgulhado daquele emprego. — Para os Eran. Eu matava por dinheiro. Não me orgulho disso...
Ela preferiu esconder Aya do seu relato. A antiga mestre riu e comeu mais um pouco de sopa.
— Se era para os Eran, provavelmente você matou alguns Kantaa... Ou os próprios Eran. — Serpente era sempre muito inteligente e cirúrgica. — E eu não tenho simpatias por nenhuma das duas famílias.
Ainda retraída, Loenna fez que sim.
— Não foi para isso que você me treinou. — Ela estava verdadeiramente envergonhada. — Eu decepcionei você. Eu servi aos Eran.
— Eu te treinei para que você fosse a lutadora que sempre sonhou em ser — O sorriso não abandonava seu rosto. — O que você faz com isso não me interessa. Quanto a me decepcionar... Você já me trouxe muito orgulho, Loenna, não duvide disso.
Loenna corou e emitiu um sorriso tímido.
— E você? — Ela devolveu a pergunta. — O que fez no tempo em que estivemos separadas?
— Ah, mil coisas. — Com uma colherada, Serpente terminou seu jantar. — Estive por aí, entre indas e vindas. Conheci lugares novos, experiências novas, pessoas novas...
— Você... — Loenna mordeu o lábio inferior. — Você esteve com alguma outra mulher nesse meio tempo?
Serpente ergueu uma sobrancelha e exprimiu um sorriso travesso.
— Isso importa?
Loenna riu baixinho e balançou a cabeça horizontalmente. Já sabia a resposta, mas ela própria tinha os seus segredos.
— De forma alguma. — E se lançou para cima da amada.
E, com essa declaração, roubou de Serpente um beijo quente. A mestre envolvia seu corpo com as mãos enquanto Loenna brincava com sua língua.
Serpente então partiu o beijo e encostou a boca bem perto do ouvido da parceira:
— Você sabe do que eu mais senti falta durante todos esses anos? — Sussurrou ela, com malícia. Loenna devolveu o sorriso travesso.
— O que? — Sua melhor estratégia era fingir inocência.
Serpente levou suas mãos para dentro da blusa de Loenna, apalpando seus seios com delicadeza. Imediatamente pôs seus lábios lascivamente no pescoço dela, beijando-o e sentindo o cheiro doce da garota. Loenna suspirou e gemeu baixinho; Eram cinco anos sem o toque e o corpo de sua amada, cinco anos desde a última vez que as duas compartilharam a mesma cama. Quando sua blusa foi ao chão, a garota ainda conseguia sentir os lábios de Serpente descendo até o colo de seus seios...
E foi neste momento que ambas foram interrompidas por uma voz deveras familiar.
— Loenna. — Fowillar chamava de fora. — Eu vou precisar de você aqui!
Serpente imediatamente parou suas atividades e encarou Loenna como se perguntasse a ela de que maneira deveria proceder. Esta fez um sinal para que a amante permanecesse em silêncio; Imaginou que, se Fowillar não conseguisse ouvi-la, ele chegaria à conclusão de que ela não estava ali.
— Não adianta se fazer de desentendida. — Ele parecia impaciente, como sempre. — Eu sei que você está aí e sei exatamente o que você está fazendo. Consigo ver sua sombra.
Maldito lampião, pensou ela. Loenna bufou em descontentamento, mas sua parceira apenas se pôs a rir baixinho, divertindo-se com a situação.
— O seu marido é meio empata-foda. — Disse, ao passo em que ela se vestia.
— Ele é chato. — Reclamou Loenna. Estava se acostumando com o jeito rabugento de Fowillar aos poucos, mas aquele momento definitivamente não contaria pontos ao seu favor.
— Ah, ele me parece ser uma boa pessoa. — Serpente deu de ombros. — E é seu aliado, pelo que me conta.
A garota fez que sim. Fowillar era rabugento, ranzinza e impaciente, mas ainda assim era fiel, inteligente, um bom amigo e um valiosíssimo aliado. Ela tinha momentos em que nutria simpatias por ele, como a pessoa sincera e parceira que era.
Contudo, aquele não era um deles. O rapaz seguia reclamando da demora lá fora e Loenna queria apenas xingá-lo por interromper seu momento com a amante que não via há cinco anos.
— Você me acompanha? — Perguntou Loenna. Serpente sorriu.
— Eu faço o que você quiser. — E deu-lhe um selinho nos lábios.
Loenna sorriu timidamente e, fazendo um sinal para que Serpente a acompanhasse, levou a amante para fora da barraca. Fowillar estava lá, como esperado, mas parecia mais preocupado que o normal; Andava em círculos de uma ponta a outra, impaciente; Aquilo parecia ser extremamente importante.
— Finalmente você está aí. — Resmungou o rapaz. — Achei que nunca fosse aparecer.
— Me diz o que você quer. — Loenna estava visivelmente irritada; Serpente, no entanto, se divertia com as suas caras e bocas.
—Tem um de nós morrendo na cabana de Aya. Achei que você precisava vê-lo em seus momentos finais. — Disse Fowillar. — Eu acho que é meu primo.
— Morrendo? Como assim? — Loenna franziu a testa. — Eu não organizei nenhum ataque.
— Bem, parece que alguns de nós não ligam muito pra isso. — O rapaz deu de ombros. — Atacaram um Kantaa sem que a gente soubesse. Sim, eu sei, foi muito estúpido.
Loenna xingou, furiosa e incrédula que seus seguidores haviam se posto em risco gratuitamente daquela forma, mas Serpente parecia atenta a outra coisa.
— Seu primo?
Fowillar fez que sim.
— Tem um de nossos discípulos que é um Saphira também. — Respondeu ele. — Ele renunciou ao sobrenome e a família, diz que está aqui para vingar a morte da irmã. É meu primo de primeiro grau, sou filho de Triard Saphira. Ou era, no caso. Ele é filho de Lohun Saphira, irmão de meu pai.
Serpente mordeu o lábio inferior, apreensiva. Loenna tomou a frente, mas a antiga mestre parecia mais ansiosa que ela. Andava a passos largos, a respiração era pesada. Claramente havia alguém na família de Fowillar que a deixava preocupada, por mais que Loenna jamais houvesse tomado conhecimento deste alguém.
Chegando na barraca de Aya, Serpente foi a primeira a puxar a lona. Cerca de três outros homens também machucados se punham em pé do lado de fora, e Aya estava lá, cuidando do enfermo: um homem de uns trinta e cinco anos, com a marca dos Saphira no braço; Baixinho, careca, magricelo e muito, muito ensanguentado. Parecia ter levado uma surra pesada, de cinco homens ao mesmo tempo... Ou de um Kantaa.
Loenna reconhecia ligeiramente o ferido, mas Serpente...
— RHEMI! — Berrou ela, ao assimilar as feições do homem. Imediatamente tapou a boca e se pôs a chorar como Loenna nunca tinha visto.
Ela correu em direção ao colchão onde o homem se deitava, em prantos. Rhemi estava com os olhos fechados, seus lábios estavam quase sem cor e sua respiração já não era regular. Ele estava deixando este mundo.
— O que aconteceu com ele? — Perguntou Loenna, do lado de fora, aos três homens que se encontravam prostrados em pé.
— Nós estávamos somente mapeando o local quando encontramos três Kantaa. — Disse um dos homens. — Tentamos atacá-los, mas eles são muito fortes e estávamos desarmados. Rhemi tomou a frente e acabou sendo severamente espancado.
— De quem diabos foi essa ideia estúpida? — Questionou ela, claramente indignada. — Não era óbvio que seria um total desastre?
Os homens deram de ombros.
— Nós apenas o seguimos. Aparentemente os homens estavam fazendo troça de Gillani Gaspez e isso deixou Rhemi irado. — Respondeu um segundo homem. — Mas a roupa dele rasgou no processo e descobrimos que ele é um Saphira, então acho que fomos piedosos demais em trazê-lo até aqui. Bem que eu desconfiei que era suspeito o fato dele sempre andar de mangas compridas...
Loenna bufou em desaprovação e teria até separado um tempo para passar um sermão aos homens, mas a verdade é que estava mais preocupada com o choro intenso de Serpente. Era a primeira vez que Loenna a via chorar; Algo estava acontecendo ali, ela tinha certeza. Antes que se desentendesse com os homens, adentrou novamente a barraca, com o coração apertado.
— Ele vai ficar bem? — Balbuciou Serpente. — Por favor, me diz que vai ficar tudo bem.
Aya balançou a cabeça negativamente.
— Ele perdeu muito sangue. Seus órgãos não estão funcionando direito — Disse ela. — Eu tentei salvá-lo, mas sua morte é questão de tempo.
Incrédula, Serpente balançou a cabeça em negação. Não parava de chorar. Sentou no colchão em que Rhemi estava deitado e segurou sua mão com muita força; O homem parecia praticamente desfalecido.
— Me desculpe. — Suas palavras eram como murmúrios sôfregos de dor. — Eu deveria ter te tratado melhor quando estava vivo.
Rhemi não respondeu. Já estava inconsciente há muito tempo.
— Você está morrendo por mim e eu nunca te dei valor. — Serpente acariciou a testa nua de Rhemi. — Sempre fui uma péssima irmã. Tudo o que você queria era ser parte da minha família, e eu nunca me abri para isso. Eu nunca me abri para o seu amor.
A respiração de Rhemi estava prestes a cessar. Seus batimentos cardíacos estavam cada vez mais fracos.
— Antes que você vá embora, Rhemi, eu gostaria de dizer... — Serpente limpou as próprias lágrimas. — Que você é e sempre será meu irmão.
A sua respiração finalmente foi interrompida. Era como se ele estivesse esperando aquela declaração para finalmente falecer. Seu corpo todo parecia em uma paz eterna; Ele finalmente havia partido.
Aya tomou o pulso do enfermo em mãos, analisou-o por alguns segundos e, pesarosa, respirou fundo.
— Ele se foi. — Garantiu a enfermeira. — Este homem não está mais entre nós.
Um novo mar de lágrimas se formou nos olhos de Serpente. Loenna teve a impressão de que ela se culpava pela morte do irmão.
— Que mal eu lhe pergunte... - Aya parecia intrigada com alguma coisa. — Quem é você e por que é irmã deste Saphira? Não vejo marcas em seu braço...
— Meu nome é Erimar Lahem. — Disse, chorosa. — Rhemi era filho de Lohun Saphira, mas era bastardo. Somos irmãos por parte de mãe.
— Entendo. — Compadeceu-se Aya. Não fez mais perguntas, pareceu convencida. — Bem, eu sinto muito pela sua perda. Eu sou Aya Gaddard. Prazer em conhecê-la, Erimar.
— Você pode me chamar de Serpente. — Disse Serpente, cumprimentando Aya.
— Prazer em conhecê-la, Serpente. — E sorriu timidamente. — Eu vou me retirar agora, porque tenho outras coisas para fazer, mas tome o tempo que precisar. Sei o quão doloroso é perder uma pessoa amada.
E, dito isso, Aya deixou Serpente e o corpo sem vida de Rhemi para trás. Serpente era incapaz de ter outra reação que não fosse chorar; Loenna pediu para que os três homens deixassem as imediações — E eles obedeceram. — e se aproximou da amada, que se acabava nas próprias lágrimas.
A garota sentou-se ao lado de Serpente e a abraçou com ternura e afeto.
— Não sabia que ele era seu irmão. — Disse ela. — Eu espero que você fique bem. Também perdi o meu, eu sei o quanto dói.
— Nunca te contei sobre Rhemi... — As lágrimas de Serpente pingavam sobre a gola da blusa alaranjada de Loenna. — Porque eu verdadeiramente nunca o considerei parte da minha família. Eu simplesmente não queria vínculos com ele.
— E por quê? — Perguntou Loenna.
— Me revoltava o fato dele ter sucumbido ao sistema e aceitado viver uma vida no luxo, enquanto eu lutava para sobreviver nesse mesmo sistema. — Serpente resfolegou. — Talvez, no fundo, eu tivesse inveja porque ele cresceu com um pai e uma família, enquanto que eu tive que lutar sozinha desde que minha mãe morreu. Meu pai jamais me acolheria como o dele fez.
— E quem é seu pai?
Desta vez, Serpente preferiu se esquivar da resposta. Não era um assunto muito caro a ela; Haviam coisas que deveriam ser mantidas no limbo de onde vieram.
— No entanto, ele nunca desistiu de mim. — Serpente emitiu um sorriso. — Eu não sabia que ele havia renegado ao sobrenome depois de minha suposta morte. Ele só queria ser meu irmão, no final das contas. Rhemi me amava... — E suspirou fundo. — Agora, ele está morto porque tentou vingar minha morte. E eu nunca fui capaz de reconhecer o que ele, em vida, seria capaz de fazer por mim.
— Eu vou fazer questão que ele seja sempre lembrado. — Garantiu Loenna. — Rhemi Saphira foi um homem tão valente que lutou contra um Kantaa sozinho para fazer valer seus ideais. Um homem tão valente que renegou sua família e seu sobrenome para defender a honra de uma irmã. Um homem que merecia muito mais do que uma morte estúpida. Vou pedir para que façam uma homenagem a ele amanhã.
Serpente abraçou Loenna com força. De seus olhos ainda caíam brilhantes e salgadas lágrimas, mas ela não sabia mais se eram lágrimas de tristeza ou de alegria.
— Obrigada, Loenna. — Serpente deu-lhe um beijo na bochecha. — Muito obrigada...
***
Oi, pessoal! Infelizmente descumpri com minha promessa e demorei de novo. Não fiquem bravos comigo, por favor. Os capítulos vão sair, só estou passando por algumas coisas chatas somadas a fim de semestre. Mas vai passar!
Obrigada por estarem acompanhando até aqui e fico muito feliz aos guerreiros que suportaram todas as demoras (hahaha) eu vou fazer o máximo para manter o ritmo semanal e sábado vou tentar trazer mais! Obrigada pelo carinho e até!
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